A história do Direito Penal Internacional é rica de ironias e incongruências. A invasão russa na Ucrânia é uma delas. Me parece irônico que tenham sido líderes russos os arquitetos do, nas palavras de Joe Biden, ‘episódio mais significativo no mundo, em termos de guerra e paz, desde a Segunda Guerra Mundial’ quando um jurista soviético, Aron Trainin, foi um dos principais responsáveis pela introdução de ‘crimes contra a paz’ no Estatuto do Tribunal de Nuremberg. Oito décadas depois, Estados e especialistas mais uma vez se questionam sobre as melhores alternativas para julgar penalmente os responsáveis por crimes cometidos no contexto de uma invasão militar, agora cometida por nacionais russos.
O presente ensaio foi dividido em quatro perguntas centrais acerca do tema: Pode o Tribunal Penal Internacional (TPI ou Tribunal) julgar crimes cometidos na Ucrânia por nacionais da Rússia, ambos Estados não partes do Estatuto de Roma? Quais crimes pode o TPI investigar e julgar? Quando podemos esperar condenações no TPI? Ante as limitações deste Tribunal, a criação de uma corte ad hoc seria uma alternativa viável?
1 Pode o TPI julgar crimes cometidos na Ucrânia por nacionais da Rússia, ambos Estados não partes do Estatuto de Roma?
Tanto a Ucrânia, quanto a Rússia não são partes do Estatuto de Roma. Contudo, nos termos do Artigo 12(3) do Estatuto, um Estado não parte pode apresentar uma declaração aceitando a jurisdição do TPI. A Ucrânia exerceu este direito duas vezes. Na primeira declaração, o governo da Ucrânia denunciou ao Tribunal os crimes cometidos no território ucraniano entre 21 de novembro de 2013 e 22 de fevereiro de 2014, período da ‘Euromaidan’. A Ucrânia submeteu uma segunda declaração em 8 de setembro de 2015, concedendo jurisdição ao TPI em relação ‘aos atos cometidos no território da Ucrânia desde 20 de fevereiro de 2014’. Relevante destacar que esta segunda declaração não possui termo, fundamentando a jurisdição do Tribunal em relação ao território ucraniano por tempo indeterminado desde a indicada data.
Segundo o Artigo 12(2)(a) do Estatuto de Roma, as duas declarações da Ucrânia alicerçam a jurisdição do TPI vis-à-vis todos os crimes da sua competência cometidos em solo ucraniano, independentemente da nacionalidade dos perpetrados. Esta regra abarca até mesmo os nacionais de Estados não partes do Estatuto. Com isso, o Tribunal pode julgar os crimes cometidos por russos na Ucrânia desde 21 de novembro de 2013, incluindo aqueles perpetrados no contexto da invasão desde fevereiro de 2022. Contudo, veremos abaixo que essa conclusão não se aplica à invasão em si enquanto crime de agressão.
2 Quais crimes pode o TPI investigar e julgar?
O TPI possui jurisdição sobre quatro categorias de crimes internacionais: crimes de guerra; crimes contra a humanidade; genocídio; e agressão. Sabendo que o genocídio possui elementos muito específicos que, conforme o relatado até o momento, aparentam não estar presentes no conflito na Ucrânia, este crime não será analisado aqui.
Quanto aos crimes de guerra, definidos no Artigo 8 do Estatuto de Roma, estes consistem em sérias violações do Direito Internacional Humanitário, o conjunto de normas internacionais dedicadas a regular os conflitos armados. Episódios relatados pela mídia internacional indicam que certos ataques russos podem configurar tais ofensas: a morte ou lesões corporais a civis pode constituir os crimes de guerra de homicídio doloso e grande sofrimento intencional; disparos contra edifícios e áreas residenciais podem configurar os crimes de guerra de atacar civis e objetos civis; ataques a hospitais podem constituir o crime de guerra de atacar objetos protegidos; bombardeios indiscriminados a cidades podem configurar os crimes de guerra de mortes, lesões ou danos acidentais excessivos e ataques a locais indefesos.
Por sua vez, crimes contra a humanidade são ofensas particularmente hediondas que, diante de sua gravidade, vitimizam a humanidade como um todo. Na formulação mais técnica do Artigo 7 do Estatuto de Roma, crimes contra a humanidade consistem em graves violações ‘cometidas no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil’. Para que um ataque seja considerado generalizado, ele deve ser dirigido contra um grande número de pessoas ou implementado geograficamente em larga escala. Trata-se de elemento quantitativo que mede a amplitude do ataque e a envergadura dos meios utilizados. O caráter sistemático exige que o ataque seja organizado e tenha uma repetição regular e não acidental ou aleatória. Relevante destacar que uma mesma conduta pode qualificar como ambos, um crime de guerra e um crime contra a humanidade, desde que os respectivos critérios sejam satisfeitos (Caso Ongwen, paras 2818-2821).
Quanto ao crime de agressão, o Artigo 8bis(1) do Estatuto de Roma define este delito como ‘o planejamento, preparação, início ou execução, por pessoa em condições de exercer efetivamente o controle ou dirigir a ação política ou militar de um Estado, de um ato de agressão que, por seu caráter, gravidade e escala, constitua uma violação manifesta da Carta das Nações Unidas’. Por sua vez, o Artigo 8bis(2) do Estatuto conceitua o elemento central do crime de agressão — um ‘ato de agressão’ — como ‘o uso de força armada por um Estado contra a soberania, integridade territorial ou independência política de outro Estado, ou em qualquer outra forma incompatível com a Carta das Nações Unidas’.
É difícil negar que a invasão da Ucrânia pela Rússia se enquadra na definição de crime de agressão. Focando a análise em Vladimir Putin, os seguintes critérios devem ser provados além de qualquer dúvida razoável: (i) Putin, na condição de perpetrador, planejou, preparou, iniciou ou executou um ato de agressão contra a Ucrânia; (ii) devido a sua posição de Presidente e Comandante Supremo das Forças Armadas russas, Putin efetivamente exerceu controle ou dirigiu as ações políticas e militares das Forças Armadas russas envolvidas na invasão; (iii) ante a ausência de um ataque armado prévio pela Ucrânia contra a Rússia ou uma autorização pelo Conselho de Segurança (Artigos 51 e 39 da Carta das Nações Unidas), a incursão armada russa no território ucraniano constitui um ato de agressão, na forma do Artigo 8bis(2) do Estatuto de Roma. Nota-se que nenhuma das justificativas apresentadas por Putin para a invasão encontram respaldo no direito internacional, sendo que uma delas — a alegação de que a Ucrânia estaria cometendo genocídio contra populações russas — foi recentemente contestada pela Ucrânia na Corte Internacional de Justiça; (iv) Putin tinha conhecimento de que a invasão é incompatível com a Carta das Nações Unidas; (v) pelo seu caráter, gravidade e escala, a invasão russa pode ser considerada uma ‘violação manifesta’ da Carta das Nações Unidas; e (vi) Putin tem conhecimento das circunstâncias fáticas que estabelecem esta ‘violação manifesta’.
Contudo, ainda que configurado o crime de agressão, o exercício de jurisdição pelo TPI sobre este delito possui uma regulamentação diferenciada no Estatuto de Roma. Este ensaio focará apenas nos aspectos mais relevantes à presente discussão. O Artigo 15bis(5) do Estatuto de Roma determina que o TPI não pode exercer jurisdição sobre qualquer ato de agressão cometido por nacionais ou no território de um Estado não parte do Estatuto. Trata-se de uma controversa exceção à regra geral contida no Artigo 12(2)(a) do Estatuto, segundo a qual o TPI tem jurisdição vis-à-vis crimes cometidos no território de um Estado parte, independentemente da nacionalidade dos perpetradores. Assim, enquanto as declarações ucranianas servem de base para que o Tribunal julgue crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos por nacionais russos em solo ucraniano, elas não são aptas a garantir jurisdição ao Tribunal acerca do ato de agressão russo. Uma alternativa para que o ataque russo seja julgado pelo TPI como um crime de agressão seria uma denúncia ao Procurador pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, nos termos do Artigo 15ter(1) do Estatuto de Roma. No entanto, considerando o poder de veto da Rússia enquanto membro permanente do Conselho, essa possibilidade se revela irreal.
Em conclusão, o TPI pode investigar e julgar os crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos na situação da Ucrânia, mas não a agressão russa em si.
3 Quando podemos esperar condenações no TPI?
Responder com uma data precisa seria nada menos do que um palpite especulativo. Procedimentos no TPI são complexos e morosos, com sua duração condicionada a vários elementos internos e externos, em particular o nível de cooperação dos Estados com o Tribunal. Além disso, sem obter a custódia dos acusados, o TPI se mantem inoperante, já que, segundo o Artigo 63 do Estatuto, o Tribunal não pode realizar julgamentos à revelia.
Um estudo conduzido pelo autor revelou que, nas últimas três condenações em primeira instância no Tribunal (Dominic Ongwen, Bosco Ntaganda e Jean-Pierre Bemba Gombo), o tempo total para a investigação da situação pelo Procurador, emissão do mandado de prisão, confirmação das acusações, instrução criminal e emissão do veredito e sentença foi aproximadamente 7, 10 e 9 anos, respectivamente, para uma média geral de aproximadamente 9 anos. Esta cifra reflete apenas os estágios do procedimento sob o controle dos órgãos do Tribunal e não inclui o período em que o réu estava foragido, isto é, o período entre a emissão do mandado de prisão e o momento em que o suspeito foi submetido à custódia do TPI. Contudo, até mesmo esta média geral deve ser vista com cautela ante as circunstâncias de cada caso.
Relevante destacar que a Procuradoria do TPI vem analisando a situação no território da Ucrânia desde abril de 2014. A análise preliminar foi concluída pela ex-Procuradora, Fatou Bensouda, em dezembro de 2020, com a conclusão de que há, nos termos do Artigo 15(3) do Estatuto, ‘fundamento suficiente para abrir um inquérito’. No entanto, ante ao fim de seu mandato em junho de 2021, Bensouda adiou para seu sucessor a decisão se um inquérito deveria ser iniciado. Destaca-se que nas situações submetidos ao TPI por um Estado não parte do Estatuto de Roma (como foi o caso da Ucrânia), um inquérito apenas pode ser iniciado pelo Procurador, em sequência à análise preliminar, se o Juízo de Instrução do Tribunal o autorizar, conforme o Artigo 15(3) do Estatuto. Este procedimento de autorização normalmente demora 4 meses.
Karim Khan tomou posse em junho de 2021 como sucessor de Bensouda, mas nenhuma decisão em relação à Ucrânia foi tomada nos meses seguintes. A invasão russa foi motivo suficiente para que uma decisão fosse finalmente adotada. Em 28 de fevereiro (quatro dias depois do início da invasão russa), Khan informou que solicitaria ao Juízo de Instrução a abertura de um inquérito em relação aos crimes anteriormente analisados por Bensouda, mas também ‘quaisquer novos crimes sob a jurisdição do [TPI] que sejam cometidos por qualquer parte do conflito em qualquer parte do território da Ucrânia’. Khan também informou que, como meio de acelerar os procedimentos, um Estado parte do Estatuto poderia denunciar a situação na Ucrânia ao Procurador, nos termos do Artigo 14 do Estatuto, o que tornaria a autorização do Juízo de Instrução não mais necessária. Em resposta, 39 Estados partes apresentaram tal denúncia, a mais amplamente apoiada até o momento. Em 2 de março, Khan anunciou a imediata abertura do inquérito. O extraordinário número de Estados envolvidos na denúncia, bem como a destreza de Khan ao aludir o Artigo 14 do Estatuto, se revela um promissor desenvolvimento para garantir a efetividade do TPI e justiça às vítimas.
Não deve ser menosprezado o desafio técnico e político que Khan terá ao conduzir o inquérito na situação na Ucrânia. Como atualmente se encontra, o contexto já se mostra desafiador, em especial devido a certa recusa da Rússia de cooperar em tal inquérito. Porém, a possível derrota da Ucrânia e a instalação de um novo governo pró-Rússia no país complicaria substancialmente as atividades do Procurador. Diante disso, Khan corre contra o relógio, a fim de coletar o máximo de provas antes de uma possível brusca e desfavorável mudança política na Ucrânia.
4 Ante as limitações do TPI, a criação de um tribunal ad hoc seria uma alternativa viável?
Devido a impossibilidade do TPI julgar o crime de agressão russo, doutrinadores, políticos e outros sugeriram a criação de um tribunal penal internacional ad hoc especificamente para investigar e julgar os responsáveis pela agressão contra a Ucrânia (cf. aqui, aqui, aqui). Trata-se de proposta controversa.
A favor do tribunal, pode-se indicar os seguintes argumentos: (i) o tribunal garantirá que a agressão russa não fique impune, suprindo a lacuna do TPI em relação a este crime; (ii) sendo uma jurisdição internacional, o tribunal poderá julgar oficiais russos abarcados pela imunidade criminal ratione personae em cortes nacionais estrangeiras, especialmente Putin e Sergey Lavrov; (iii) ainda que o tribunal não obtenha a custódia de suspeitos imediatamente, mudanças políticas internas podem viabilizar maior cooperação pela Rússia no futuro; (iv) alternativamente, assim como o Tribunal Especial do Líbano, o tribunal poderia realizar julgamentos à revelia; (v) a Ucrânia parece não ter condições para realizar julgamentos tão complexos em sua jurisdição interna, tal como evidenciado pela submissão das duas declarações outorgando jurisdição ao TPI; (vi) o tribunal terá um forte e poderoso componente simbólico, enviando uma clara mensagem à Rússia e a outros agressores de que atos de agressão não serão tolerados; (vii) também terá um papel simbólico ao evitar a repetição de impunidade em relação a atos de agressão no passado, em especial a invasão do Iraque em 2003; (viii) o tribunal será um relevante precedente para a criação de novos tribunais ad hoc ou até mesmo um tribunal permanente para agressão no futuro.
Contrário ao tribunal, alega-se (cf. aqui, aqui): (i) a criação do tribunal usurparia da Ucrânia a oportunidade de processar os líderes russos em seus tribunais domésticos; (ii) muito provavelmente o tribunal não será capaz de cumprir seu mandato, ante a incapacidade de coletar evidências e obter a custódia de suspeitos devido à ausência de cooperação pela Rússia. Esse argumento se tornaria ainda mais evidente se um novo governo pró-Rússia for instalado na Ucrânia; (iii) a não operacionalidade do tribunal pode propagar a mensagem de que o sistema internacional é incapaz de punir atos de agressão, em particular por Estados influentes; (iv) julgamentos internacionais à revelia em casos de tamanha significância teriam uma utilidade duvidosa; (v) o valor agregado de tal tribunal como um símbolo de que agressão não será tolerada seria mínimo, já que a intensa condenação internacional das ações russas já possui este efeito simbólico; (vi) a criação do tribunal incorreria em substanciais custos financeiros, valores que poderiam ser melhor empregados na reconstrução da Ucrânia; (vii) o tribunal pode danosamente competir com o TPI; (viii) uma eventual mudança política na Rússia, na qual o novo governo patrocinaria a punição internacional da agressão à Ucrânia, pode tornar o tribunal proposto desnecessário, já que a Rússia poderia apenas deixar de impedir, por meio de seu veto, que o Conselho de Segurança denuncie a situação ao TPI. Uma outra alternativa seria a Rússia ratificar o Estatuto de Roma e apresentar uma declaração aceitando a jurisdição do TPI sobre o crime de agressão com efeitos retroativos (Artigo 12(3) do Estatuto); (ix) a criação de um tribunal específico para a agressão russa, enquanto a invasão do Iraque por Estados ocidentais em 2003 permanece impune, revelaria uma seletividade arbitrária da comunidade internacional.
Em balanço, os argumentos contrários superam os favoráveis. Apesar de bem-intencionada, a proposta de criar este tribunal insiste em um paradigma de institucionalização internacional que já se encontra saturado, como evidenciado nas fracassadas tentativas de criar cortes criminais internacionais para a pirataria no Chifre da África, a queda do voo Malaysia Airlines 17 e os crimes do Estado Islâmico. Ainda que o tribunal seja criado, a sua operacionalidade seria dificultada ou até mesmo inviabilizada enquanto uma eventual mudança de regime não acontece na Rússia. Se tal mudança política eventualmente ocorrer, há alternativas menos custosas e mais eficazes para julgar a agressão russa do que criar mais um tribunal criminal internacional (por exemplo, uma denúncia da situação ao TPI pelo Conselho de Segurança).
Reitera-se que esta conclusão não afeta, de forma alguma, a necessidade de que os crimes russos sejam punidos de forma eficiente e transparente. Nesse sentido, a invasão da Ucrânia revela, talvez acima de tudo, que o projeto de justiça penal internacional ainda possui diversas deficiências institucionais e normativas a serem superadas.
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Doutorando em Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais. Research Fellow no Max Planck Institute Luxembourg for Procedural Law