Harmonização forçada e o Efeito Bruxelas – Os efeitos da harmonização unilateral sobre a regulação da inteligência artificial no Brasil

A história se repete: primeiro como uma tragédia, depois como uma farsa. Ou, adaptando à nossa temática, inicialmente de forma culposa, mas posteriormente intencional. É precisamente isso o que nos parece da atual normativa para regulação de sistemas de inteligência artificial na União Europeia com o Regulamento para Harmonização das Regras sobre Inteligência Artificial (doravante, “AI Act”), recentemente aprovado pelo Parlamento Europeu, no dia 13 de março de 2024, estando ainda sujeito à revisão final de texto e aprovação formal pelo Conselho da União Europeia.

Não seria esta a primeira vez que a Comissão Europeia utilizaria da sua influência para ditar as regras e padrões de abrangência universal, particularmente diante do ocorrido com o Regulamento Europeu de Proteção de Dados (doravante, “RGDP”). Tratar-se-ia o AI Act de uma nova tentativa de “harmonização forçada”, dirigida por valores exclusivamente europeus, mas com pretensão de estabelecer regras universais?  

Isto posto, nesse artigo, nós analisamos brevemente a influência extraterritorial dos regulamentos e diretivas europeias para identificar se a história do Efeito Bruxelas se repete no AI Act e verificar como a posição brasileira é influenciada pelas normas Europeias aplicáveis à regulação da inteligência artificial.

O que é o Efeito Bruxelas?

O Efeito Bruxelas – referência à cidade-sede da Comissão Europeia – ocorre quando a União Europeia adota instrumento normativos que, em razão das suas peculiaridades, induzem empresas e participantes do mercado de fora da Europa a se adaptarem às particularidades regulatórias europeias para que possam não somente competir em solo europeu, mas também para manter relevância mundialmente.

Termo cunhado por Bradford, em 2012 (Bradford), o Efeito Bruxelas pode ser descrito tanto como um tour de force (uma manifestação indireta de poder), quanto como uma corrida ao topo em termos regulatórios em benefício aos consumidores. 

De uma forma ou de outra, o Efeito Bruxelas representa um processo regulatório de facto unilateral europeu e eurocêntrico de harmonização forçada de standards em áreas de interesse estratégico europeu.

O Efeito Bruxelas do RGDP

A análise da promulgação do RGDP fornece um claro e forte exemplo do Efeito Bruxelas em pleno vigor. Elaborado com base no imenso acquis europeu na temática da proteção de dados, oriundo do Artigo 8º da Convenção Europeia de Direitos Humanos e posteriormente desenvolvido por inúmeros instrumentos normativos e pelo conjunto de decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre o tema (Kuner), o RGDP naturalmente reflete diretrizes e valores europeus, tais como transparência, limitação de propósito, minimização da coleta de dados, que repercutem uma visão tecnocrática e procedimentalizada do tratamento de dados pessoais em solo europeu.

No entanto, o RGDP, em seu Artigo 3º, apresenta um escopo territorial de aplicação ampliadíssimo, sendo aplicável em três situações: (i) quando o processamento de dados é realizado por uma entidade localizada na União Europeia (Art. 3(1)); (ii) quando a entidade deseja oferecer bens ou serviços a titulares de dados na União Europeia, independente do lugar a partir do qual são oferecidos bens ou serviços (Art. 3(2)(a)); e (iii) quando a entidade visa monitorar comportamentos que ocorrem na União Europeia (Art. 3(2(b)).

A hipótese (ii), constante do Artigo 3(2)(a) é aquela que nos traz preocupação. Combinando o texto do dispositivo com a linha interpretativa do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) acerca do direcionamento de bens e serviços eletronicamente (historicamente expansiva, exigindo, essencialmente, que o provedor restrinja o acesso a europeus para que seja considerado que os bens e serviços não são direcionados ou oferecidos a europeus), este dispositivo exige que toda e qualquer empresa esteja ao menos observante e, se possível, obedeça diretamente as regras europeias de tratamento de dados pessoais. Um exemplo é o aviso que o jornal Washington Post recebeu da Autoridade de Proteção de Dados Britânica por não permitir que os usuários fizessem o opt-out de cookies, muito embora o jornal não direcionasse expressamente os seus serviços para europeus.

Argumentar-se-ia que a observância de parâmetros mais restritivos de regulação, embora faça com que as empresas incorram em custos regulatórios adicionais, serviria a função de aumentar a proteção do consumidor. 

Este argumento é válido, mas é apenas uma meia-verdade por, ao menos, dois motivos: (i) as normas regulatórias costumam ser parcial ou completamente conflitantes quando comparadas entre diferentes sistemas jurídicos, exigindo que as empresas obedeçam concomitantemente a requisitos regulatórios locais e europeus discrepantes; e (ii) os valores regulatórios da regulação-base (nesse caso, valores eurocêntricos) nem sempre se refletem ou se traduzem em valores mantidos pelos sistemas jurídicos que são alvo da harmonização forçada. 

O Efeito Bruxelas proposto pelo AI Act

A Proposta de Regulamento Europeu consubstanciada no AI Act apresenta semelhante abrangência extraterritorial, sendo aplicável a: (i) entidades que colocam serviços de inteligência artificial no mercado europeu, independente de localização; (ii) usuários de serviços de inteligência artificial localizados na UE; e (iii) entidades, independente de localização cujo resultado produzido pelo sistema de inteligência artificial é utilizado na UE.

Nesse caso, é possível argumentar que a Proposta de AI Act é ainda mais ambiciosa do que o RGDP, visto que cuida também do resultado produzido por sistemas de inteligência artificial. Ressaltamos, entretanto, que a proposta ainda está sendo discutida em solo europeu e pode ser oportunamente alterada.

O que não parece que será alterado, a nosso ver, é a inclinação europeia de harmonização top-down, hierarquizada, com base em sua força regulatória determinada pelo (imenso) tamanho do mercado consumidor europeu.

Ocorre que o AI Act é um instrumento normativo particularmente criticável, seja pela definição de sistemas de inteligência artificial adotada, por seu viés extremamente tecnocrático ou por sua abordagem extremamente formalista e pró-mercado (Novelli, Veale, Laux). A crítica do instrumento normativo europeu é objeto da minha tese de doutoramento em construção.

Como consequência das falhas do AI Act, pondera-se a necessidade de se discutir: esse efeito regulatório uniformizante, mas ao mesmo tempo hierárquico, é de alguma utilidade para a nossa comezinha realidade brasileira? 

Harmonização top-down?

Nos parece uma contradição em termos aceitarmos a ideia de harmonização hierarquizada (top-down). Muito embora o establishment comercial aprecie a uniformidade proposta pelas tentativas de harmonização forçada, ela vem acompanhada do desrespeito à cultura jurídica local e, como asseveramos, não traz consigo necessariamente uma maior segurança jurídica em virtude dos conflitos regulatórios locais com o normativo (supostamente) harmonizante internacional.

O Efeito Bruxelas nos parece o reflexo de uma mentalidade colonial europeia pacificadora dos brutos ou o direito internacional como Gentle Civilizer of Nations (Koskenniemi). Como nós, colonizados, somos incapazes de nos governar propriamente, os europeus, civilizados por definição, nos transmitem as regras mais adequadas. Não importa que estas regras sejam resultado de experiências particularmente experimentadas em solo europeu ou que derivem de regras ditadas por um Tribunal com sede no Grão-Ducado do Luxemburgo: elas são civilizatórias e devem ser seguidas pelos brutos para que eles alcancem o desenvolvimento e possam andar juntos (ou melhor, um pouco atrás, se possível) dos bondosos reguladores europeus.

A superação da pobreza regulatória

Mas o que fazer a partir disso? No momento, as propostas brasileiras de regulação de sistemas de inteligência artificial atuais são tão pouco meritórias que não merecem citação. Aparenta-se que todas, sem exceção, estão em compasso de espera para ver o que será decidido em solo europeu. Não seria melhor seguir o caminho da civilização ou aceitar o efeito de facto que os normativos europeus causam nas empresas brasileiras de ambição multinacional?

Nos parece evidente que não. Não há sentido na importação de regras dissociadas da realidade jurídico-econômica-social do ambiente regulatório alvo destas regras. Há de se lutar por uma regulação brasileira nata adaptada ao uso e desenvolvimento de sistemas de inteligência artificial brasileiros.

Não propomos um ufanismo regulatório exagerado com a rejeição a todo o estrangeiro. Há também que se aprender com a experiência alheia, assim como há benefício em buscarmos nacionalmente a harmonização com regras internacionais relevantes. Mas entendemos que não se aprende pela mera cópia e reprodução de institutos jurídicos pensados a uma realidade estrangeira. Parafraseando Paulo Freire, se a regulação não é libertadora, o sonho do regulado é se tornar opressor.

Propõe-se a rediscussão regulatória, envolvendo partes interessadas e sociedade civil, para a construção de um panorama jurídico brasileiro de regulação da inteligência artificial. Isso, entretanto, é o que aspiro, mais do que espero.

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