A restituição de bens culturais coloniais como reparação por injustiças históricas

Cerca de seis anos após o incêndio que destruiu grande parte do seu acervo, o Museu Nacional do Rio de Janeiro reabrirá parcialmente em junho de 2024. Dentre os itens a serem expostos, encontra-se o Manto dos Tupinambás (assojaba tupinambá) cuja restituição ao Brasil foi anunciada pela Dinamarca em 2023. Segundo a direção da instituição, são os Tupinambás quem decidirão como o Manto será exposto.

Para além de se caracterizar como um marco histórico, o caso levanta relevantes questões acerca dos personagens envolvidos em disputas sobre a titularidade de bens culturais coloniais. Tradicionalmente, essas disputas são concebidas como tendo dois protagonistas: os Estados colonizados e os Estados colonizadores. O presente comentário, contudo, busca oferecer um olhar para além dessa dicotomia, argumentando que as comunidades indígenas também devem ser elevadas à posição de protagonistas. O assunto apresenta especial importância para os Estados ex-colônias, porquanto a sua atuação nesses cenários pode transformá-los em neocolonizadores. Em sentido similar, o tema também se afigura relevante para a conjuntura mais ampla do direito internacional, pois evidencia a necessidade de se revistar a sua lógica Estado-cêntrica e territorial, em muito responsável pelo papel secundário que é assumido pelas comunidades indígenas nos cenários examinados.

Para tanto, inicia-se contextualizando brevemente a problemática. Após, são analisados casos concretos ocorridos no contexto brasileiro, incluindo o caso do Manto dos Tupinambás.

Os parâmetros da dicotomia: da apropriação à restituição

Entre os séculos XV-XX, o mundo testemunhou a concretização do projeto europeu de controle e dominação conhecido como colonialismo, o qual legitimava a apropriação do patrimônio cultural dos colonizados e a sua posterior exportação para a Europa. Atualmente, as consequências dessas práticas podem ser constatadas pelo grande número de pedidos de restituição de bens culturais

“Restituir”, conforme definido por Félwine Sarr e Bénédicte Savoy em seu famoso relatório, significa “retornar um item ao seu ‘dono legítimo’”. Na maior parte das vezes, no entanto, os Estados não dispõem de seus bens de forma espontânea, o que pode acarretar longas disputas que irão desgastar as relações das partes litigantes.

Há, de outra perspectiva, espaço para que o processo restituitório seja uma oportunidade para que os Estados colonizados e colonizadores melhorem as suas relações. Isso porque, se o colonialismo implicou a realização de injustiças históricas juridicamente legítimas, a reconciliação com um passado colonial traumático e abusivo necessariamente perpassa a reparação dessas, com a devolução do controle aos povos colonizados sobre o significado e a mobilidade dos seus bens culturais. 

Os tratados internacionais, contudo, não abordam diretamente a questão e são irretroativas, tendo, pois, uma aplicabilidade limitada. Dentre eles, merece destaque a Convenção da UNESCO Relativa às Medidas a Serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedades Ilícitas dos Bens Culturais de 1970, a qual apresenta critérios para determinar a nacionalidade de um bem cultural em seu artigo 4º. Ainda, aponta-se a Convenção da UNIDROIT sobre Bens Culturais Furtados ou Ilegalmente Exportados de 1995, a qual, em seu artigo 5º (3), estabelece quando que um bem cultural deve ser “devolvido” pelo Estado requerido ao Estado requerente. Trata-se de um catálogo de critérios que pode ser utilizado para auxiliar na determinação de qual destino deve ser conferido a um bem cultural colonial (retenção pelo Estado colonizador, restituição ou adoção de soluções alternativas).

Ambas as Convenções, no entanto, são passíveis de muitas críticas, sendo a mais importante delas para os fins deste comentário o seu excessivo Estado-centrismo. Consequentemente, esses instrumentos reforçam o protagonismo estatal e a tradicional dicotomia referidos. 

No ponto, registra-se que não se ignora que a maior carga de deveres de salvaguarda dos bens culturais ainda incumbe aos Estados sob a ótica do direito internacional. Por outro lado, também é necessário levar em consideração: (i) o fato de que uma verdadeira reparação por injustiças históricas pressupõe o envolvimento de todas as coletividades que sofreram com os efeitos adversos do colonialismo; e (ii.) que o Estado não necessariamente representa e defende os interesses das diversas comunidades que vivem dentro dos limites geográficos de seu território. A seção seguinte busca demonstrar como esses dois elementos podem ser observados em situações concretas, a partir da análise de casos ocorridos no Brasil. 

Desafiando a dicotomia: o contexto brasileiro

No contexto brasileiro, o caso do Manto dos Tupinambás é um dos mais famosos. O Manto é um artefato considerado sagrado pela etnia Tupinambá, a qual habita o estado brasileiro da Bahia. Ao todo, estima-se que existam onze exemplares do Manto, os quais se encontravam sob a guarda de museus europeus. O exemplar mais conhecido consiste naquele que estava exposto no Museu Nacional da Dinamarca, supostamente levado para a Europa em 1644 pelo então governador da capitania-hereditária de Pernambuco. 

Manto Tupinambá na coleção da Biblioteca Pinacoteca Accademia Ambrosiana em Milão (Italia). (C) Lucas Lixinski 2023

De lá para cá, o Manto havia retornado para o Brasil uma única vez para integrar a “Mostra do Redescobrimento” nos anos 2000. Desde então, os membros da comunidade Tupinambá manifestaram diversas vezes o seu desejo de que o objeto fosse restituído.

Finalmente, em 2023, a Dinamarca anunciou que iria restituir o Manto ao Brasil sob a veste jurídica de uma doação. A ideia, como referido, é que o bem seja exposto na reabertura parcial do Museu Nacional do Rio de Janeiro, cujo acervo vem sendo recomposto com a participação ativa de povos indígenas e comunidades quilombolas, segundo os canais oficiais

A postura adotada pelo Museu Nacional, no sentido de atribuir um controle parcial sobre o bem a um ator não estatal, é merecedora de elogios. Isso porque, sendo a cultura um recurso poderoso (tanto em termos econômicos, quanto sociais), aquele que exerce o controle sobre bens culturais também o faz com relação à identidade cultural e política de uma coletividade e a eventuais benefícios monetários oriundos daqueles. A título ilustrativo, vale referir a comunidade indígena brasileira Yawanawá, a qual vem obtendo significativos lucros que permitiram a sua revitalização mediante a comodificação de sua cultura no âmbito de parceiras firmadas com as marcas Farm, Pantys, Chilli Beans, La Lampe, dentre outras. 

De outra perspectiva, a afirmação feita também demonstra o perigo de o controle sobre bens culturais ser atribuído exclusivamente aos Estados ex-colônias. Trata-se, em suma, da referida possibilidade de esses assumirem um papel de neocolonizadores, apropriando-se de bens culturais, atribuindo-lhes novos significados e impondo-os às coletividades das quais esses bens são originários.

Conquanto esse cenário possa parecer mais comum no contexto de regimes totalitários, o próprio Brasil já assumiu a postura de neocolonizador, interna e externamente. Neste último campo, cita-se como exemplo a negativa do Brasil de restituir o canhão El Cristiano ao Paraguai, obtido como troféu após a Guerra do Paraguai, evento bastante traumático para este país. 

Internamente, os exemplos também são fartos – é mais fácil identificar as situações nas quais o controle sobre bens culturais foi atribuído a comunidades indígenas do que o contrário. A razão para tanto reside em questões estruturais da legislação brasileira sobre patrimônio cultural, a qual se centra no reconhecimento constitucional deste como uma prioridade estatal e na utilização de mecanismos do direito administrativo que colocam o Estado na posição de seu principal protetor. No âmbito federal, essa proteção incumbe mais especificamente ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), autarquia vinculada ao Ministério da Cultura. Em suma, tem-se uma arquitetura legislativa formada pela Constituição Federal (especialmente art. 215 e seguintes), que valida a participação das comunidades indígenas na formação do patrimônio cultural brasileiro, e por diversas leis e atos infralegais esparsos (particularmente portarias e instruções normativas), que, contudo, não disciplinam como se dará essa participação.

Apesar dos apontamentos feitos, é possível identificar outro caso no qual uma comunidade indígena também foi elevada à condição de protagonista. Trata-se da disputa envolvendo a machadinha (kàjré) da etnia indígena Krahô, que habita o estado brasileiro do Tocantins. O objeto integrava o acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo, possivelmente em virtude de “doação” realizada pelo etnólogo gaúcho Harald Schultz na década de 1940. Em 1986, os Krahô decidiram solicitar a devolução da machadinha ao museu, e, após meses de negociações, a instituição concordou com o retorno do bem. Conforme os termos acordados, a machadinha ficaria sob a custódia dos Krahô no Tocantins, onde se encontra até hoje, mas a sua propriedade permaneceria com o museu até o artefato ser declarado patrimônio nacional pelo IPHAN, o que ainda não se tem notícia se efetivamente ocorreu. O caso, embora possa ser descrito como exitoso, corrobora o anteriormente afirmado: os Estados ex-colônias não se confundem com as diferentes comunidades que o habitam.

Considerações finais

Em suma, portanto, percebe-se que o reconhecimento de um país ex-colônia como sendo o “dono legítimo” de um bem cultural colonial, com a sua subsequente restituição, é um passo importante no caminho da reparação de injustiças históricas, mas que se afigura insuficiente por si só. Para que o destino final desse caminho possa ser efetivamente alcançado (se é que há um), faz-se necessário que o direito internacional (e nacional) vá além da dicotomia Estados colonizados e colonizadores e passe a levar em conta a presença de outros atores não estatais, como as comunidades, garantindo que a restituição de bens culturais coloniais também considere os interesses dessas. 

Nesse sentido, verifica-se que o contexto brasileiro pode oferecer alguns insights interessantes sobre como efetivar essa inclusão no plano internacional. Em primeiro lugar, os casos examinados demonstram que a inclusão dessas comunidades envolve a sua atuação paralela ao ente estatal – e não somente por intermédio deste- em processos decisórios sobre bens culturais. Em segundo lugar, evidenciam a importância de se pensar nos bens culturais coloniais como pertencentes antes às suas comunidades originárias do que ao patrimônio nacional de um país ex-colônia. Ou seja, a superação da lógica Estado-cêntrica e territorial do direito internacional (geral e do patrimônio cultural) é pressuposto para a reparação por injustiças históricas. 

Por fim, o contexto brasileiro revela a insuficiência de leis (lato sensu) com meros efeitos declaratórios. Isto é, não basta apenas reconhecer direitos – é preciso concretizá-los mediante o emprego de instrumentos jurídicos adequados. Assim, conclui-se que o protagonismo das comunidades indígenas no âmbito dos processos restituitórios não prescinde de uma mudança institucional mais profunda, para a qual as considerações feitas no presente comentário podem se apresentar como um ponto de partida. 

  • Mestranda em Direito Europeu e Alemão na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Membro do Núcleo de Pesquisas em Direito Comparado e Internacional -CNPq.

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