Adeus ao mestre do diálogo e do respeito à identidade cultural: Prof. Dr. Dr. h. c. multi Erik Jayme (08.06.1934-01.05.2024)

Carinho e agradecimento ao mestre de toda uma geração de jus-privatistas internacionais e comparatistas, o querido Professor Erik Jayme da Universidade de Heidelberg, que com sua obra e brilhantismo iluminou, inovou e ajudou a muitos, entre as quais me incluo. 

Agradeço emocionada ao orientador de uma vida toda por sua obra e visão, em especial, obrigado por sua genuína amizade e carinho pelo Brasil e pela família de países lusitanos. Nascido em Montreal em 1934 de pai alemão ‘Huguenot’, com origem francesa, e mãe norueguesa, logo após a guerra retornaram para Darmstadt, onde seu pai se dedicou, como engenheiro químico, à fabricação de celulose e a uma impressionante coleção de arte. Estudou Direito em Munique, onde também estudou história da arte e iniciou sua famosa coleção privada. Realizou seus estudos de graduação, mestrado e Doutorado em Direito em Frankfurt, Munique, Pavia (Itália) e Berkeley (Estados Unidos). Já aos 27 anos completava o seu doutorado sobre o direito de família na Itália e na Alemanha. [1] O Direito de família internacional inspiraria também sua habilitação ou Tese de Titularidade, em 1971. [2]

Foi Diretor do Instituto de Direito Comparado, Direito Internacional Privado e Direito Econômico da Universidade de Heidelberg, recebeu muitas homenagens no mundo [3] e no  Brasil [4], incluindo a Medalha ‘Cruzeiro do Sul’, a mais alta condecoração brasileira concedida a personalidades estrangeiras por sua contribuição ao diálogo e  cooperação acadêmica entre Alemanha e o Brasil, em 2008  e o doutorado honoris causa na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 2003. [5] Foi Vice-Presidente do Curatorium da Academia de Haia com Boutros Boutros-Ghali. Recebeu além da UFRGS, o titulo de doutor honoris causa das Universidades de Budapest (Hungria), Ferrara (Itália), Montpellier (França) e Coimbra (Portugal). Erik Jayme, sem dúvida alguma, era um dos mais renomados e inovadores doutrinadores do mundo. [6] Seus quatro cursos de Haia dão testemunha deste legado de ideias e renovação. [7]

O Direito Internacional Privado estava, assim, em seu sangue e alma. Não, porém, o ‘conflito’ das leis e sim sua comunicação, seu diálogo, teoria que criou de forma renovadora em suas belas aulas na Academia de Haia, em 1995 [8] e que tive a chance de seguir com os seus ‘alunos’ e hoje colegas Yuko Nishitani (Kyoto), Diego Fernandez Arroyo (Science-Po, Paris), Juan Cerdera e Maria Blanca Noodt Taquela (UBA). Todos ficamos impactados com sua visão de mundo, em que o renovado e humanizado Direito Internacional Privado passava a fazer parte do esforço para a paz mundial, tendo como novo fundamento não mais a ‘comitas gentium’ ou os interesses em conflito, mas o respeito às identidades culturais de todos, pessoas e países do norte e sul global, em harmonia e iguais. 

Visão pós-moderna, que renovava a esperança e utopia [9] de uma igualdade formal e do respeito aos direitos humanos, dando efetividade e coerência aos valores e normas em diálogo. Erik Jayme era assim, via a todos como iguais, sem soberba, ao contrário, com inteligência e compreensão para a fraqueza e vulnerabilidade humana. Dizia sempre que se deve procurar ‘ver’ o outro e o entender, nas suas diferenças, e que estes – os mais fracos – são os que nos fazem entender melhor o mundo e nos ‘ajudam’ no futuro. [10] Seus trabalhos lutavam por proteção da família e das crianças; por autonomia, inclusive dos mais fracos, como os consumidores e estrangeiros; [11] por um direito comparado que permita o respeito às regras religiosas [12] e à identidade cultural diferente daqueles que imigram. [13] Erik Jayme possuía uma visão superior do cenário internacional e das pessoas na globalização, assim construiu uma ponte entre o Direito Internacional Público e o Direito Internacional Privado para a paz global. [14]  

Um mestre é aquele que vê mais adiante, que leva todos mais adiante e que respeita os que antes contribuíram para esta evolução. Assim era Erik Jayme, com sua cultura humanística, o domínio de 8 línguas e da Arte, com um impressionante conhecimento de história e dos grandes mestres do Direito. Via a sociedade como ela é, plural e diversa, globalizada e fragmentada. Olhava ‘o mal nos olhos’ e nos surpreendia a todos com caminhos novos e úteis para a solução dos conflitos!  

“Diálogo das fontes” é a expressão visionária deste grande mestre, Erik Jayme, [15] que tem recebido significativa recepção no Brasil. [16] Em seu Curso Geral de Haia, de 1995, Erik Jayme, ensinava que, em face do atual “pluralismo pós-moderno” de um direito com fontes legislativas plúrimas, ressurge a necessidade de coordenação entre as leis no mesmo ordenamento, como exigência para um sistema jurídico eficiente e justo. [17] Uma belíssima expressão semiótica do mestre de Heidelberg: di-alogos (duas lógicas), a permitir a aplicação simultânea, coerente e coordenada das plúrimas fontes legislativas convergentes, cujos campos de aplicação ratione materiae e ratione personnae não mais são totalmente coincidentes, logo não há que falar de revogação, ab-rogação e sim de aplicação simultânea orientada pelos valores dos direitos fundamentais no caso. [18]

A Associação Luso-Alemã de Juristas, a DLJV (Deutsch-Lusitanische Juristenvereinigung), por ele fundada, homenageou seu Presidente de Honra com versos de Camões: 

“-Quem me chama? 

-Uma memória nova e nunca ouvida. 

De um que trocou finita e humana vida. 

Por divina, infinita e clara fama. (Luis Vaz de Camões, Sonetos)”

Luis Vaz de Camões, Sonetos

Generoso e um pouco tímido, nosso brilhante mestre não parecia ter muito apego a fama, que fortemente merecia, tanto que não podia caminhar tranquilo na ‘Hauptstrasse’ ou almoçar na sua querida Heidelberg, sem que um aluno ou colega viesse e o cumprimentasse. Todos queriam o seguir, conversar, ouvi-lo e com ele aprender.   

Como afirmou Hans-Peter Mansel, um encontro com o Prof. Dr. Dr. h. c. multi Erik Jayme deixava a todos mais sábios, mais ricos em conhecimento, em vivências e visão do mundo e das pessoas. Seu brilhantismo, impressionante cultura, arrebatador conhecimento jurídico, seu humanismo e seu sofisticado e inteligente senso de humor com leve ironia, encantavam a todos. Um grande mestre, dedicado e solidário, que ajudou e guiou a muitos: um mestre do Direito Internacional Privado, do Direito Comparado, da História do Direito, do Direito das Artes, da Propriedade Intelectual e do Patrimônio Histórico. Um mestre renovador do Direito, do Diálogo intercultural e do respeito aos Direitos Humanos. [19]

Foi com muita tristeza, que recebi a notícia do falecimento do grande mestre de Heidelberg, Prof. Dr. Dr. h. c. multi Erik Jayme, em 2 de maio de 2024, este mês tão triste para os gaúchos. Não poder mais encontrar o querido professor, que me deu a honra de orientar meu doutorado e mais tarde meu pós-doutorado é uma grande perda. Perdemos todos. Ao amigo e orientador, só posso agradecer ao mestre, por todas as ajudas e profunda solidariedade, ele que era um grande amigo do Brasil e de seu povo.  [20]

Querido ‘Professor Jayme’, receba todas as honras e nossos profundos agradecimentos: teve uma vida plena de quase 90 anos, contribui muito, ajudou a tantos, renovou e humanizou o Direito no mundo inteiro, especialmente no Brasil e na América Latina. Enfim, lutou a boa luta…que os versos de Camões se realizem…ao grande, querido e brilhante mestre Erik Jayme: divina, infinita e clara fama!

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[1] JAYME, Erik. Spannungen bei der Anwendung italienischen Familienrechts durch deutsche Gerichte, Gieseking 1961. 

[2] JAYME, Erik. Die Familie im Recht der unerlaubten Handlung. Berlin:Alfred Metzner Verlag, 1971.

[3] MANSEL, H. P. Festschrift für Erik Jayme, vol. 1 e 2, Sellier, 2005.

[4] Veja MARQUES, Claudia Lima; ARAÚJO, Nádia. O Novo Direito Internacional: Estudos em Homenagem à Erik Jayme. Rio de Janeiro: Renovar, 2015.

[5] Veja a publicação especial da celebração, Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito (UFRGS), Volume 1, Número 1, Março de 2003, acessível in https://seer.ufrgs.br/index.php/ppgdir/issue/view/2235.   

[6] Veja In Memoriam Erik Jayme (1934-2024) – Conflict of Laws. E, em português, https://www.conjur.com.br/2024-mai-02/morre-erik-jayme-um-dos-maiores-nomes-do-direito-internacional-privado/ 

[7] Veja JAYME, Erik. In Recueil des Cours: tomo 177 (1982),  ‘Considérations historiques et actuelles sur la codification du droit international privé’, tomo 251(1995), ‘Identité culturelle et intégration: le droit international privé postmoderne’, tomo 282 (2000), Droit international privé millénaire: la protection de la personne humaine face à la globalisation’, e  tomo 375 (2015) ‘Narrative norms in Private International Law: the Example of Art Law’. Veja também Hommage à Erik Jayme | Académie de droit international de La Haye (hagueacademy.nl)

[8] Assim afirma JAYME, Erik. Identité Culturelle et Intégration: Le droit international privé postmoderne. Cours général de droit international privé. Recueil des Cours. T. 251.Haia: Martinus Nijhoff Publishers, 1996, p. 259 : “ Dès lors que l’on évoque la communication en droit international privé, le phénomènele plus important est le fait que la solution des conflits de lois émerge comme résultant d’un dialogue entre les sources le plus hétérogènes. Les droit de l’homme, les constitutions, les conventions internationales, les systèmes nationaux:toutes ces sources ne s’excluent pas mutuellement; elles « parlent » l’une à l’autre. Les juges sont tenus de coordonner ces sources en écoutant ce qu’elles disent”. Em tradução livre: “… a solução dos conflitos de leis emerge como resultado de um diálogo entre as fontes as mais heterogêneas. Os Direitos Humanos, as Constituições, as Convenções internacionais, as sistemas nacionais: todas estas fontes não se excluem mais mutualmente; elas ‘dialogam’ umas com as outras. Os juízes ficam obrigados a coordenar estas fontes  ‘escutando’ o que elas dizem.”

[9] Veja MARQUES, Claudia Lima. Laudatio a Erik Jayme: Memórias e Utopia, in Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito (UFRGS), 2(4), 2016p. 53 acessível (PDF) Laudatio para Erik Jayme – Memórias e Utopia (researchgate.net) .

[10] Na entrevista que concedeu a Revista Trimestral de Direito Civil, na seção Diálogo com a Doutrina, Erik Jayme testemunhava sua paixão pelo Direito Comparado e o Direito Internacional Privado, suas disciplinas de especialidade, afirmando: “0 que me prende é a realidade, o destino humano (Schicksale), os caminhos e problemas dos indivíduos.” Veja Revista Trimestral de Direito Civil -RTDC, ano 1, vol. 3 jul./set. 2000, p. 289.

[11] Veja por todos, JAYME, Erik. Zugehörigkeit und Kulturelle Identität – Die Sicht des Internationales Privatrecht, Wallstein Verlarg, Göttingen, 2012, p. 52-53.

[12] Veja, por todos,  JAYME, Erik. Visões para um teoria direito comparado pós-moderno, in Revista dos Tribunais, vol. 759/1999, p. 24 – 40, Jan / 1999.

[13] JAYME, Erik. Kulturelle Relativität und Internationales Privatrecht, in JAYME, Erik. Gesammelte Schriften, Band 6, Heidleberg: C. F. Müller, 2022 p. 136 (p. 135-153).

[14] JAYME, Erik. Identité Culturelle et Intégration: Le droit international privé postmoderne. Cours général de droit international privé. Recueil des Cours. T. 251.Haia: Martinus Nijhoff Publishers, 1996, p. 247. 

[15] JAYME, Erik. Identité Culturelle et Intégration: Le droit international privé postmoderne. Cours général de droit international privé. p. 9-268. In: Recueil des Cours: Collected courses of the Hague Academy of International Law. Tomo 251. Haia: Martinus Nijhoff Publishers, 1996, p. 259.

[16] No site do Superior Tribunal de Justiça, encontram-se, em 12.05.2024, 50 acórdãos e 2889 decisões monocráticas com a teoria do diálogo das fontes e ainda 6 acórdãos e 873 decisões monocráticas que citam diretamente o renomado professor de Heidelberg, Erik Jayme, veja in https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp?preConsultaPP=&pesquisaAmigavel=+%3Cb%3E%27Erik+Jayme%27%3C%2Fb%3E&acao . Veja também MARQUES, Claudia Lima. O ‘diálogo das fontes’ como método da nova teoria geral do direito: um tributo a Erik Jayme, MARQUES, Claudia Lima, (Org.) Diálogo das fontes. Do conflito à coordenação das normas do direito brasileiro. São Paulo: Ed. RT, 2012, p. 19 e seg. E BENJAMIN, Antônio Herman; MARQUES, Claudia Lima. A teoria do diálogo das fontes e seu impacto no Brasil: Uma homenagem à Erik Jayme, in Revista de Direito do Consumidor, vol. 115/2018, p. 21 – 40, Jan – Fev / 2018, p. 20 e seg.

[17] JAYME, Erik. Identité Culturelle et Intégration: Le droit international privé postmoderne. Cours général de droit international privé. p. 9-268. In: Recueil des Cours: collected courses of the Hague Academy of International Law. Tomo 251. Haia: Martinus Nijhoff Publishers, 1996, p. 60 ss.

[18] Assim também a visão da jurisprudência brasileira: ” A antinomia aparente entre o artigo 185-A, do CTN (que cuida da decretação de indisponibilidade de bens e direitos do devedor executado) e os artigos 655 e 655-A, do CPC (penhora de dinheiro em depósito ou aplicação financeira) é superada com a aplicação da Teoria pós-moderna do Diálogo das Fontes, idealizada pelo alemão Erik Jayme e aplicada, no Brasil […] a fim de preservar a coexistência entre o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código Civil. […] Com efeito, consoante a Teoria do Diálogo das Fontes, as normas gerais mais benéficas supervenientes preferem à norma especial (concebida para conferir tratamento privilegiado a determinada categoria), a fim de preservar a coerência do sistema normativo.”(STJ, REsp 1184765/PA, Rel. Ministro Luiz Fux, j. 24/11/2010, DJe 03/12/2010).

[19] Veja MARQUES, Claudia Lima. Kulturelle Identität und Quellendialog im brasilianischen internationalen Adoptionsrecht nach Inrafttreten des neuen brasilianischen Zivilgesetzbuches von 2002. In: MANSEL, H.-P. et alii. Festschrift für Erik Jayme, v. II, p. 505-526, Sellier, 2003, p. 505 e seg.

[20] Veja seu belo discurso, JAYME, Erik. Festvortrage ‚Brasilien – Ein Rechtssystem der Zukunft – Der Dialog der Quellen‘, Giessen: „Zurück nach Brasilien: Mit Hilfe der Methode des Dialogs der Quellen, werden in den Entscheidungen Gegensätze und Antinomien vermieden. Das Ziel ist es zugleich, den Streit der Parteien beizulegen. Dies geschieht aber nicht in Form einer  bloßen Schlichtung, wie sie in europäischen Verfahrensordnungen vielfach auftaucht, deren Ziel manchmal nur darin besteht, dass sie die Gerichte entlasten soll.  In Brasilien werden  Rechtsgrundsätze  klar und unmissverständlich als Bezugspunkte artikuliert. Es sind aber die Gesetze selbst, die entscheiden; die Richter teilen nur mit, was sie vernehmen.  Das brasilianische Recht ist, wenn Sie mir diesen Ausdruck gestatten, „sinnlicher“ in jeder Hinsicht, d.h. leichter erfahrbar,  als das deutsche Recht mit seinem Hang zur Abstraktion und seiner Liebe zum Detail.“ 

  • Profª Drª Dr. h. c. Claudia Lima Marques é Diretora da Faculdade de Direito da UFRGS(2020-2024), Professora Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Professora Convidada em multiplas Universidades no mundo. É autora de diversas obras que tratam de temas afetos aos direitos econômicos e sociais e à proteção dos vulneráveis, especialmente sobre os temas da proteção internacional dos consumidores, superendividamento, serviços e contratos complexos na sociedade de massas, informação e sociedade de crédito. Relatora-Geral da Comissão de Juristas do Senado Federal para a atualização do Código de Defesa do Consumidor. Presidente do Comitê de Proteção Internacional do Consumidor da International Law Association, Londres. Membro da Sociedade Latino-americana de Direito Internacional. Diretora da Associação Luso-Alemã de Juristas (DBJV, Berlin) e da ILA-Branch Brazil. Ex-Presidente da Associação Americana de Direito Internacional Privado (ASADIP), Asunción e do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon). Coordenadora brasileira da Rede Alemanha-Brasil de Pesquisas em Direito do Consumidor (DAAD-CAPES). Foi Professora na Academia de Direito Internacional de Haia, em 2009, e Árbitra do Mercosul e jurista-colaboradora da SENACON-MJ na OEA e Conferência de Haia.

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