A Alemanha e o Direito Penal Internacional: reflexões à luz de desenvolvimentos recentes

Em seu comentário de novembro de 2023, a Alemanha informou à Comissão de Direito Internacional sua opinião de que a não aplicabilidade da imunidade funcional no direito penal internacional stricto sensu constitui uma norma emergente de direito internacional costumeiro.  Contudo, em uma sentença de 2021, o Tribunal Federal de Justiça da Alemanha concluiu que a imunidade funcional não é aplicável, “pelo menos” em casos contra funcionários públicos subordinados, em virtude de norma consuetudinária existente no direito penal internacional stricto sensu. O presente ensaio explica a conjuntura por trás dessa notável dualidade alemã em uma questão fundamentalmente importante do direito internacional e situa os comentários do governo alemão de novembro de 2023 no contexto de seu atual posicionamento em relação ao julgamento dos crimes de agressão contra a Ucrânia. A partir dessa contextualização, fica evidente uma mudança na política alemã em relação ao direito penal internacional stricto sensu quando comparada à abordagem adotada durante as negociações do Estatuto do Tribunal Penal Internacional e aos princípios basilares do Código Alemão de Crimes contra o Direito Internacional.

A inaplicabilidade da imunidade funcional no direito penal internacional stricto sensu como uma questão de direito internacional consuetudinário

Em 30 de setembro e 1º de outubro de 1946, nascia, na sala de julgamento 600 do Palácio de Justiça de Nuremberg, o direito penal internacional stricto sensu: o Tribunal Internacional Militar (TMI), instituído pelas potências vitoriosas da Segunda Guerra Mundial, proferiu o seu veredito no julgamento dos principais criminosos de guerra alemães. Foi necessário muito tempo para que a Alemanha fizesse as pazes com o legado deixado por Nuremberg, que emergiu como uma resposta do direito penal internacional ao capítulo mais sombrio da sua própria história. Mas na segunda metade da década de 90, o país passou por uma notável mudança de posição e tornou-se um dos defensores mais empenhados do direito penal internacional. Quando o Tribunal Penal Internacional (TPI) foi fundado em 1998, a Alemanha esteve na vanguarda daqueles que eram fortemente a favor de um tribunal mais eficaz possível. Em seguida, o parlamento alemão seguiu internamente o novo curso favorável ao direito penal internacional, adotando, por unanimidade, o Código Alemão de Crimes contra o Direito Internacional (Völkerstrafgesetzbuch). Por meio desse Código, que entrou em vigor em 2002, a Alemanha faz uso da permissão existente no direito internacional para exercer jurisdição universal sobre genocídio, crimes contra humanidade e crimes de guerra. Durante todo esse processo, a Alemanha não foi dissuadida pelo fato de a França, a Grã-Bretanha e os EUA terem se distanciado de aspectos fundamentais do legado de Nuremberg. Recentemente, contudo, a política de direito penal internacional do Governo alemão tem sido mais complacente em relação as preferências desses três Estados em particular. Esse toque recente de ‘realpolitik’ se torna evidente quando considerada a posição do Governo alemão no debate sobre a criação de um tribunal especial para investigar os crimes de agressão russos contra a Ucrânia, e em sua posição em relação à questão de se os funcionários estatais (atuais e antigos) gozam de imunidade funcional de jurisdição penal estrangeira com relação a seus atos oficiais, ainda que eles sejam suspeitos de terem cometido um crime internacional.  Em relação a esse último aspecto, o julgamento de Nuremberg determinou o seguinte:

“O princípio de direito internacional que, sob certas circunstâncias, protege os representantes de um Estado, não pode ser aplicado a atos que são condenados como crimes pelo direito internacional. Os autores desses atos não podem se abrigar atrás da sua posição oficial a fim de se livrar da punição em um processo apropriado. A própria essência da Carta é de que os indivíduos têm deveres internacionais que transcendem as obrigações nacionais de obediência impostas pelo Estado individual. Aquele que viola as leis da guerra não pode obter imunidade enquanto estiver agindo em conformidade com a autoridade do Estado, se o Estado, ao autorizar a ação, agir para além de sua competência de acordo com o direito internacional”.

Com essas palavras, o TMI rejeitou a objeção da defesa de que os réus gozavam de imunidade como antigos funcionários do Estado. Não é coincidência que essa declaração esteja no centro do início da história do direito penal internacional stricto sensu. Pois, foi demonstrado, no banco dos réus de Nuremberg, que a criminalização de guerras de agressão, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, diretamente sob o direito internacional consuetudinário, foi destinada, sobretudo, à conduta oficial de funcionários estatais. Não foi o caráter internacional dos procedimentos conduzidos em Nuremberg que foi invocado como justificativa da rejeição da imunidade funcional. Em realidade, o julgamento de Nuremberg vinculou a inaplicabilidade da imunidade funcional ao próprio conceito de crime perante o direito internacional. Seguindo esse mesmo raciocínio, em List e outros, ou seja, em um dos procedimentos que se seguiram à Nuremberg, o Tribunal Militar dos EUA expressou a convicção de que:

“Um crime internacional é um ato universalmente reconhecido como criminoso, uma questão grave de interesse internacional e que, por razões validas, não pode ser deixado a jurisdição exclusiva do Estado que teria controle sobre ele em circunstâncias normais.”

Na sentença do caso Ministries, outro caso subsequente a Nuremberg, o Tribunal Militar dos EUA declarou, em relação aos crimes contra paz, que atualmente são chamados de crimes de agressão:  

“Permitir tal imunidade é envolver o direito internacional em uma névoa de irrealidade. Nós rejeitamos e sustentamos que aqueles que planejam, preparam, iniciam e empreendem guerras de agressão e invasões, e que nelas participam, consciente e ajuizadamente, violam o direito internacional, podendo ser julgados, condenados e punidos por seus atos.”

Em 1962, a Suprema Corte de Israel deu a esse legado de Nuremberg a sua expressão mais completa e sucinta até os dias atuais, através de seu julgamento no caso contra Adolf Eichmann. Notoriamente, a passagem relevante conclui que, se a imunidade funcional fosse aplicada em processos envolvendo crimes de direito internacional costumeiro, “as disposições penais do direito internacional seriam um escárnio”.

Existem razões convincentes para reconhecer que a inaplicabilidade da imunidade funcional em processos criminais com base em alegações de crimes perante o direito internacional tenha se tornado parte do direito internacional consuetudinário juntamente com o nascimento do próprio direito penal internacional stricto sensu em 1946, quando a Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) afirmou os “princípios de direito internacional” reconhecidos pelo tribunal de Nuremberg.  Contudo, mesmo aqueles que pedem por mais provas da prática Estatal baseada na convicção legal correspondente, necessária para identificação do costume internacional nesse sentido, encontrarão tais provas. Ainda no contexto das negociações de paz de Paris, após a Primeira Guerra Mundial, que formaram o prólogo para o surgimento do direito penal internacional stricto sensu no cenário global, os representantes dos Estados claramente indicaram suas convicções de que não havia lugar para imunidade funcional no julgamento dos crimes de guerra alemães. Nuremberg, portanto, não surgiu como um big bang. Pelo contrário, ele seguiu um caminho que já havia se prenunciado em negociações multilaterais anteriores. Essas negociações, por si só, fornecem-nos expressões significativas por parte dos Estados de suas convicções legais em relação à inaplicabilidade da imunidade funcional no caso de crimes perante o direito internacional. Posteriormente, além da confirmação por parte da AGNU, a sentença de Nuremberg foi corroborada pelo tribunal de Tóquio, que julgou os principais criminosos de guerra japoneses. Inúmeros processos nacionais subsequentes, em diversos Estados, contra órgãos estatais alemães e japoneses, consolidaram ainda mais a prática estatal nesse sentido.  Em 1929, as quatro Convenções de Genebra chegaram a estabelecer uma obrigação de exercer jurisdição universal sobre graves violações da lei aplicável a conflitos armados internacionais em casos em que a extradição não seja oportuna. Tendo em vista que a suspeita do cometimento de crime de guerra é tipicamente dirigida a soldados, ou seja, órgãos estatais fardados, o regime de violações graves deve ser entendido como uma expressão da convicção de que os suspeitos de crimes de guerra não gozam de imunidade funcional. Tudo isso confirma que a não aplicação da imunidade funcional em direito penal internacional já era uma norma costumeira quando a justiça penal internacional ressurgiu na década de 1990, levando a um aumento dos julgamentos nacionais de crimes internacionais (aqui, comentário ao Artigo 98). Em 1997, a Câmara de Apelações do Tribunal Penal Internacional para ex-Iugoslávia confirmou isso no julgamento histórico do caso Blaškić.

A Comissão de Direito Internacional em águas turbulentas

Diante desse cenário, seria de se esperar que a Comissão de Direito Internacional (CDI) codificasse, sem grandes dificuldades, a inaplicabilidade da imunidade funcional em processos penais envolvendo crimes internacionais em seu trabalho sobre imunidade de jurisdição penal estrangeira.  No entanto, isso ainda não ocorreu. Com efeito, a Comissão adotou em 2022, em primeira leitura, um projeto de Artigo 7 declarando que a imunidade funcional não se aplicará em processos criminais por genocídio, crimes contra humanidade e crimes de guerra. No entanto, não ficou claro se a intenção era codificar ou desenvolver progressivamente o direito internacional. Ademais, em um voto contencioso, alguns membros da Comissão rejeitaram o dispositivo. Soma-se a isso o fato de que o projeto de Artigo 7 ainda não obteve o apoio unânime dos Estados membros da ONU. De modo geral, no que tange essa questão, o trabalho da Comissão não tem sido dos mais afortunados. Roman Kolokin, o primeiro Relator Especial, adotou uma posição firme a favor da imunidade e, ao fazê-lo, ignorou essencialmente o distinto desenvolvimento do direito penal internacional stricto sensu desde 1945. Com a transferência da responsabilidade para Concepción Escobar Hernández como segunda Relatora Especial, a maré mudou. No entanto, nem a linha de raciocínio envolvendo o desenvolvimento do direito penal internacional foi apresentada de forma detalhada, nem a teleologia que sustenta esse desenvolvimento foi articulada com a maior clareza possível. Além disso, a persuasão do projeto de Artigo 7 foi prejudicada por dois fatores: por um lado, a sua lista de crimes não inclui o crime de agressão, apesar de ter sido o centro dos tribunais de Nuremberg e Tóquio. Por outro lado, a lista inclui apartheid, tortura e desaparecimentos forçados quando cometidos fora do contexto de crimes contra a humanidade, o que, do ponto de vista do direito costumeiro, ainda está aberto para um sério debate. Ao incluir esses três últimos crimes na sua lista, sem especificar se a base legal é de natureza convencional ou consuetudinária, a CDI forneceu um excelente alvo para os Estados que desejam contestar a inaplicabilidade da imunidade funcional no direito penal internacional strito sensu. Esse grupo de Estados inclui não apenas a China, Federação Russa, Arábia Saudita e Irã, que estão interessados em retornar a uma noção tradicional de soberania do Estado sob o direito internacional; mas também inclui Israel e os EUA e – embora com nuances consideráveis – Reino Unido e a França. O que era verdade quando do nascimento do direito penal internacional em Nuremberg, continua sendo verdade na luta atual pelo futuro do direito penal internacional: a questão da imunidade funciona se encontra no centro do debate.  

O Judiciário e o Governo alemães tomam uma posição

Em vista de sua ambição, conforme declarado na segunda metade da década de 1990 e confirmado em várias ocasiões desde então, a Alemanha deveria defender os fundamentos do direito penal internacional stricto sensu – e esse é, de fato, o caso do judiciário alemão. É verdade que o Ministério Publico Federal alemão estava, inicialmente, bastante hesitante em ativar o potencial do Código de Crimes contra o Direito Internacional. No entanto, já há alguns anos, os promotores de Karlsruhe têm enfrentado essa tarefa desafiadora juntamente com investigadores do Departamento Federal de Polícia Criminal com vigor e experiência. Tendo em vista que o escopo do direito penal internacional na atualidade também se estende a conflitos armados não internacionais, eles frequentemente lidam com grupos armados não estatais, em relação aos quais imunidade não é relevante. Contudo, quando pertinente, os funcionários estatais do outro lado do conflito sempre foram investigados por uma questão de princípio. Ficou evidente quão central a questão da inaplicabilidade da imunidade funcional é para a legitimidade da realização da justiça internacional pela Alemanha quando o Tribunal Federal de Justiça alemão discorreu sobre o fundamento da norma no direito internacional, durante o julgamento de um antigo membro das forças armadas afegãs. Peter Frank, o então Procurador Geral da Alemanha, que posteriormente foi eleito juiz do Tribunal Constitucional Federal, não apenas apresentou uma argumentação profundamente ponderada sobre a questão no decorrer do processo criminal, como também publicou posteriormente a sua essência em alemão e inglês. Quanto ao conteúdo do argumento, o Procurador-Geral Federal discorreu enfaticamente contra um obstáculo processual baseado na imunidade funcional em processos por crimes internacional. O Tribunal de Justiça essencialmente concordou com esse raciocínio em sua sentença histórica de janeiro de 2021. Na sentença, o mais alto tribunal penal alemão observou atentamente a controvérsia gerada pelo trabalho da CDI, mas, em última instância, não ficou impressionada por ela (aqui, p. 18-21). Na opinião do tribunal, a convicção legal expressa por uma série de Estados nos últimos anos de que a proteção conferida pela imunidade funcional também deveria abranger o direito penal internacional stricto sensu ainda não ganhou suficiente peso para alterar a norma oposta, anteriormente estabelecida no direito internacional costumeiro. No entanto, o Tribunal Federal de Justiça cautelosamente limitou o ratio decidendi da sua sentença ao precisar que a imunidade funcional não se aplica em procedimentos envolvendo crimes de guerra cometidos por um funcionário estatal subordinado.

Talvez essa cautela seja parcialmente explicada pelo fato de a posição do Governo alemão sobre imunidade funcional não ser clara à época do julgamento. Em 2016, o Governo alemão havia declarado, em seus comentários destinados a CDI, contendo referência explícita ao legado deixado por Nuremberg, que “a história nos revela que há crimes em relação aos quais a imunidade não pode ser sustentada”. No espírito de sua abordagem decididamente favorável ao direito penal internacional desde o final da década de 90, o Governo ainda acrescentou que a Alemanha “sempre foi e sempre será uma firme apoiadora desse desenvolvimento normativo”. Entretanto, apenas um ano depois, essa convicção do Governo Federal alemão não estava mais presente em sua declaração à Comissão. Em vez disso, havia agora sérias dúvidas quanto à possibilidade de provar a existência de exceções à imunidade funcional de natureza consuetudinária. O Tribunal Federal de Justiça acenou educadamente à inconsistência do comentário do Governo Federal alemão, mas não se deixou influenciar pela incerteza dele decorrente. Pouco tempo depois, os tribunais penais alemães ganharam grande reputação internacional pelo exercício da jurisdição universal sobre genocídio, crimes contra humanidade e crimes de guerra. Duas sentenças proferidas pelo Tribunal Regional Superior de Koblenz, em 2021 e 2022, contra ex-funcionários do serviço de inteligência do regime sírio de Assad, pelo cometimento de crimes contra a humanidade, destacaram-se em especial. Em ambos os casos, os réus atuaram como funcionários do Estado em sua capacidade oficial, o que significa que os processos só poderiam prosseguir diante de uma rejeição da imunidade funcional. A sentença do primeiro julgamento de Koblenz foi proferida logo após o Tribunal Federal alemão ter clarificado a questão da imunidade e, posteriormente, esse último tribunal confirmou o entendimento nela expresso.  Em uma reunião do Conselho de Segurança da ONU, a França falou em um “procès historic”. O judiciário alemão provou ser, de fato, um forte defensor dos fundamentos do direito penal internacional stricto sensu. Simultaneamente, o Governo Federal alemão tem, desde 2017, dado fortes indícios da sua bipolaridade.

Os comentários do Governo da Alemanha de novembro de 2023 à CDI

Por esse motivo em particular, era de extremo interesse saber como o Governo Federal alemão reagiria ao projeto de artigos sobre imunidade adotado pela CDI em primeira leitura. A reação alemã, que deveria ser submetida até 1º de dezembro de 2023 foi especialmente sensível, pois coincidiu com a fase crítica do debate internacional sobre o crime de agressão em conexão com a guerra de agressão russa contra a Ucrânia. Atualmente, existe uma séria lacuna na responsabilização a esse respeito, uma vez que o TPI está formalmente bloqueado de exercer a sua jurisdição. A Ministra das Relações Exteriores, Annalena Baerbock, tem argumentado repetidamente contra o preenchimento dessa lacuna por meio da criação de um tribunal internacional especial. Em vez disso, a ministra das Relações Exteriores vem promovendo a criação de um tribunal internacionalizado que, em última instância, seja enraizado na jurisdição ucraniana (aqui, aqui e aqui). Tendo em vista que os réus em processos perante tal tribunal provavelmente serão funcionários de alto escalão do Estado russo, o plano de Baerbock só é viável frente ao direito internacional, se as pessoas em questão não gozarem de imunidade funcional perante um tribunal especial ucraniano.

Na resposta do Governo Federal alemão a uma pergunta parlamentar feito pelo deputado dr. Günter Krings, em 21 de novembro de 2023, ficou claro que o Governo Federal é da opinião de que “os funcionários públicos que seriam responsabilizados perante um tribunal especial pelo crime de agressão contra a Ucrânia não poderiam invocar sua imunidade funcional ante o direito internacional costumeiro”. Esse seria o caso “independentemente da questão das modalidades de tal tribunal”. Em vista dessa declaração, seria de se esperar que o Governo Federal tivesse superado as dúvidas que começou a expressar em 2017 com relação a inaplicabilidade da imunidade funcional em processos criminais relativos a crimes perante o direito internacional. No entanto, as passagens relevantes do comentário alemão enviado a CDI, datado de novembro de 2023, mostram um cenário distinto: segundo elas, as exceções à imunidade funcional em relação “aos mais graves crimes perante o direito internacional” são, do ponto de vista do direito internacional costumeiro, “in status (sic!) nscendi”.  Desse modo, o Governo Federal alemão abandonou a posição adotada desde 2017 e voltou a alinhar-se com a posição adotada em 2016, fato que é bem-vindo. Entretanto, o Governo Federal não chegou a fazer uma declaração inequívoca da convicção legal de que a inaplicabilidade da imunidade funcional em processos criminais envolvendo crimes internacionais faz parte do direito internacional consuetudinário existente. Isso levanta sérios questionamentos sobre a consistência da posição do Governo alemão, tendo em vista a convicção legal manifestada, quase simultaneamente, em relação ao possível julgamento de crimes de agressão frente a um tribunal especial ucraniano. Ademais, a ambiguidade do posicionamento do Governo Federal, de um lado, e do Tribunal Federal de Justiça, do outro lado, brilha sutilmente no comentário alemão. De fato, o Governo Federal cita explicitamente a sentença relevante do Tribunal Federal de Justiça em seu comentário e, felizmente, descreve-a como uma importante prática do Estado alemão. No entanto, em vez de abraçá-lo inequivocadamente, o Governo admitiu, apenas, que o julgamento tem ‘uma influência significativa’ em seu posicionamento. Além disso, o Governo não informou a CDI sobre o fato de o raciocínio empregado pelo Tribunal Federal explicitamente deixar margem para a possibilidade de que a imunidade funcional seja inaplicável em todos os julgamentos envolvendo crimes perante o direito internacional, e não apenas naqueles envolvendo funcionários subordinados.

Uma mudança enigmática de ênfase na recente política de direito penal internacional da Alemanha

É de se questionar o que levou o Governo alemão a dar à Ucrânia razões para duvidar da consistência do posicionamento alemão sobre a questão do tribunal especial e por que, ao mesmo tempo, perdeu a oportunidade de finalmente apoiar integralmente o judiciário alemão no seu exercício da jurisdição universal em conformidade com o Código Alemão de Crimes contra o Direito Internacional. Esses questionamentos são ainda mais pertinentes quando considerado que o comentário à CDI – em um retorno a linguagem empregada em 2016 – reconhece, explicitamente, que a inaplicabilidade da imunidade funcional constitui uma ‘condition sine qua non’ para a aplicação do direito internacional penal em nível nacional, e, igualmente, se refere expressamente a parte significativa da prática estatal relevante mencionada aqui anteriormente. Pode-se questionar se o uso, pelo Governo Federal Alemão, do termo decisivo – ‘in statu nascendi’ – poderia simplesmente ter a intenção de reafirmar a convicção de que nem todos os crimes listados no projeto de Artigo 7, em relação aos quais a imunidade funcional não se aplica, podem ser classificados como crimes perante o direito internacional público geral. Nesse caso, porém, o Governo alemão poderia facilmente ter traçado as distinções relevantes em seu comentário, visto que o uso do termo ‘in statu nascendi’ não fornece uma distinção adequada. Uma explicação alternativa poderia ser que a cautela do Governo alemão parte do receio de que um comprometimento claro quanto a inaplicabilidade da imunidade funcional em relação ao direito penal internacional stricto sensu enfraqueceria a posição da Alemanha no caso das Imunidades Jurisdicionais (Jurisdictional Immunities), pendente perante a Corte Internacional de Justiça (CIJ). Esse caso se refere à pedidos de indenização contra a Alemanha, por crimes de guerra cometidos durante a Segunda Guerra Mundial, que vêm sendo pleiteados, com certa tenacidade, na Itália.  Nesse contexto, a Alemanha sempre invocou a sua imunidade estatal ao abrigo do direito internacional consuetudinário. No entanto, em seus comentários destinados a CDI, o Governo Federal enfatizou, com bastante clareza, o que já havia sido expresso pela CIJ, bem como pelo Tribunal Federal de Justiça alemão: que, de acordo com o direito internacional, uma distinção deve ser feita entre imunidade estatal, de um lado, e a imunidade funcional de funcionários do Estado em processos criminais, do outro lado. Diante disso, a razão mais plausível para o tímido ‘in statu nascendi’ é a consideração política do Governo alemão pela França, Grã-Bretanha e EUA, que – como mencionado acima – se distanciaram do seu legado de Nuremberg no que se refere a questão da imunidade funcional. Deve-se presumir que o Governo alemão, ao fazer a sua declaração, fez questão de evitar dar a impressão de uma grande divisão dentro do G7. A referência feita pelo Governo Federal, em sua resposta do dia 21 de novembro de 2023, à outra pergunta parlamentar feita pelo deputado alemão Günter Krings, de que o Governo estava ‘em consultas internacionais’ sobre o assunto, aponta fortemente nessa direção.

Em contraposto ao Governo da Alemanha, a Áustria, Estônia, Holanda, Irlanda, Letônia, Liechtenstein, Lituânia, Luxemburgo, Países Nórdicos, Polônia, Portugal, República Checa, Romênia e Ucrânia mantiverem, em suas declarações mais recentes à CDI, a posição de que a imunidade funcional não possui, na atualidade, espaço junto ao direito penal internacional stricto sensu.  A França, no entanto, reconhece apenas uma tendência apontando nessa direção e que, na opinião do governo francês, não abrange o crime de agressão. O Reino Unido expressou uma visão um tanto cética em relação a exceções sob o direito internacional costumeiro e, os EUA insistiram firmemente na aplicação da imunidade funcional, aceitando excepções apenas em certas situações não definidas. O quadro resultante mostra uma congruência reveladora em relação à forma como as alegações de crimes de agressão associadas à guerra de agressão russa contra a Ucrânia têm sido abordadas. Enquanto inúmeros Estados europeus apoiam a Ucrânia em seu apelo à criação de um tribunal internacional especial, a França, Reino Unido e EUA temem os efeitos do forte precedente que seria estabelecido. Afinal, quando se trata do crime de agressão, esses três Estados estão em desacordo com o legado de Nuremberg, da mesma como estão em desacordo com a inaplicabilidade da imunidade funcional. Consequentemente, apesar da França, Reino Unido e EUA atualmente apoiarem a criação de um tribunal especial, este apoio é condicionado ao ancoramento do tribunal na jurisdição ucraniana. Como mencionado acima, o Governo alemão também apoia essa posição do G7.

Neste ponto, vêm à luz os contornos mais precisos da mudança de ênfase na política de direito penal internacional da Alemanha mencionada no início deste artigo. No decorrer das negociações que levaram à adoção do Estatuto de Roma, no verão de 1998, a Alemanha se afastou significantemente da linha de negociação francesa e britânica, e, no dramático embate final sobre o alcance da jurisdição do Tribunal, mesmo a poderosa pressão exercida pelos EUA foi calmamente resistida. Por meio de seu Código de Crimes contra o Direito Internacional, a Alemanha comprometeu então o seu próprio sistema judiciário criminal a serviço do emergente sistema de justiça penal internacional de forma muito mais determinante que a França, Grã-Bretanha e EUA. Além disso, o Governo alemão persistentemente argumentou a favor de autorizar o TPI a exercer sua jurisdição sobre o crime de agressão, apesar da oposição desses três Estados. Em termos de retórica, o que não faltam são declarações entusiasmadas feitas por políticos alemães do comprometimento do país com o direito penal internacional, mesmo em tempos recentes. Numerosas outras declarações nesse sentido devem ocorrer em breve, quando o Parlamento alemão adotar o “projeto de Lei sobre o desenvolvimento adicional do Direito Penal Internacional”, apresentado pelo Ministro Federal de Justiça Marco Buschmann. Porém, isso não pode acobertar o fato de que o Governo alemão recentemente esteve disposto a fazer concessões significativas com base em realpolitik, com o intuito de assegurar a maior unidade possível dentro do G7. Este é um equilíbrio delicado. Certamente, a unidade dentro do G7 tem um valor político elevado, especialmente diante da delicada situação global atual. Mas no direito penal internacional, a principal moeda de troca é a legitimidade. Assim, o fator decisivo para o futuro do direito penal internacional será saber se uma massa crítica de Estados está preparada para defender vigorosamente os seus princípios básicos, mesmo quando isso seja politicamente inconveniente.

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Texto traduzido para a língua portuguesa por Joana Pacheco, doutoranda da Universidade de Colônia, Alemanha.
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As opiniões veiculadas neste blog não necessariamente correspondem a dos membros da ILA-Brasil.

  • Professor de direito internacional e direito penal. Ele é o diretor do Institute of International Peace and Security Law da Universidade de Colônia. Além de seu trabalho acadêmico, que inclui mais de 200 publicações sobre o uso de força, direito humanitário e direito penal internacional, ele foi membro das delegações da Alemanha nas negociações sobre o Tribunal Penal Internacional entre 1998 e 2017. Em 2019, foi nomeado juiz ad hoc na Corte Internacional de Justiça no caso Application of the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide (Gambia v. Mianmar). Desde 2021, ele tem atuado como consultor especial do Tribunal Penal Internacional sobre o crime de agressão.

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