Governança urbana global: Atores, processos e Direito Internacional

Texto da série “Governança Regulatória Global

Novas dinâmicas globais e transnacionais impactam a estrutura regulatória das relações no ambiente urbano. A governança urbana hoje não é mais apenas uma questão de direito interno. Há um discurso cada vez mais global sobre o significado de ‘boa governança urbana’, como pode ser notado pela atuação de órgãos das Nações Unidas. Esta publicação apresenta um recorte de atores e processos da produção e implementação de política urbana global, como contribuição aos esforços de mapeamento e sistematização da literatura sobre governança regulatória global do Núcleo de Direito Global e Desenvolvimento (NDGD) da FGV Direito SP. A análise é conduzida a partir de elementos descritivos, normativos e críticos, a fim de refletir sobre o papel do Direito Internacional na regulação do ambiente urbano.

Cidades como atores internacionais na regulação do ambiente urbano

As cidades funcionam dentro de um complexo sistema de “governança global”, caracterizado por novas formas de regulamentação que transcendem as atividades hierárquicas tradicionais do Estado e entre Estados[i]. Lida-se com uma multiplicidade de atores – estatais e não estatais, nacionais e subnacionais, civis e governamentais – exercendo influência e poder ao lado de instituições formais de governo e, em alguns casos, no lugar delas[ii]. Mesmo que a “cidade” (também tratada como “localidade”, “governo local” ou “autoridade subnacional” na literatura) não seja considerada formalmente um sujeito de direito internacional, ela é significativamente afetada por expectativas normativas provenientes do plano internacional[iii].

Ao mesmo tempo, autoridades subnacionais tornaram-se participantes ativas em alguns dos processos que impulsionam o desenvolvimento de uma política urbana global[iv]. As cidades e suas associações, i.e redes transnacionais de governos locais[v], posicionam-se como atores relevantes[vi], muitas vezes suprindo uma lacuna de governança criada por estruturas sobrepostas (e ineficazes) do sistema tradicional de governança interestadual[vii].

Pode-se afirmar que há uma atenção cada vez maior para os papéis que as cidades e outras autoridades subnacionais desempenham nos processos de elaboração, aplicação e no cumprimento de normas internacionais[viii].

A boa governança urbana tornou-se parte de um discurso global, envolvendo atores como a ONU, o Banco Mundial e a OCDE, que regulam parâmetros de desenvolvimento urbano. Destacam-se o objetivo de desenvolvimento sustentável (ODS) nº 11 da Agenda 2030 da ONU, a “Nova Agenda Urbana” (NAU) adotada na Conferência III da ONU Habitat em Quito, 2016[ix], e os compromissos assumidos por autoridades subnacionais no Acordo de Paris sobre Mudança Climática (2015). Ainda que a maioria dos instrumentos não possua caráter vinculante no direito internacional, apresentam-se como “aspiracionais” e recomendatórios e criam expectativas normativas.

A inclusão de uma meta urbana nos ODS  da Agenda 2030 das Nações Unidas pode ser vista como o endosso do surgimento de cidades e associações transnacionais de cidades como um novo tipo de ator no cenário internacional.

Processos de governança urbana: metas e indicadores globais

O ODS nº 11 da Agenda 2030 da ONU propõe “tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis”. Este objetivo considera as cidades como autoridades subnacionais que devem estar envolvidas na elaboração, implementação e aplicação do Direito Internacional[x].

A fim de acompanhar o progresso das cidades em relação à implementação dos ODSs e da NAU, o ODS nº 11 estabeleceu 10 metas e respectivos indicadores. Há muita ênfase na necessidade de produzir métricas quantitativas, dados e medições. Em meio a proliferação de estruturas de indicadores, o “urbano global” está sendo escrito e narrado por meio de processos contemporâneos de produção de dados[xi].

O uso de indicadores é uma característica proeminente da governança global contemporânea[xii], no qual elementos de poder e conhecimento estão ligados[xiii]. Os indicadores são usados para comparar e classificar os Estados, para decidir como alocar recursos e para determinar se os Estados cumpriram suas obrigações previstas em tratados. Indicadores afetam, assim, os processos de definição de padrões e a tomada de decisões na governança global[xiv].

A participação de governos locais na implementação de compromissos globais exige sistemas de monitoramento e dados que implicam ir além das estruturas tradicionais de coleta de dados e relatórios[xv]. Diversos atores do setor público e privado embarcaram na geração de dados urbanos comparáveis globalmente, como governos, agências internacionais, instituições de ensino superior, think tanks, grupos da sociedade civil, ONGs, cidadãos, redes de cidade e outros[xvi]. A produção de políticas públicas globais deve ser entendida como fruto de uma interação complexa de estruturas materiais, tecno-políticas e organizacionais dentro das quais o conhecimento estatístico e governamental é produzido[xvii].

Contudo, este impulso em direção à padronização dos dados urbanos para criar um tipo de “linguagem universal” é muitas vezes liderado por instituições sediadas em organizações internacionais, organizações filantrópicas anglo-americanas, institutos de pesquisa sediados no Norte Global e empresas privadas[xviii]. O surgimento da “agenda das cidades” levou não apenas a um papel mais importante para as cidades na política global, mas também a uma reformulação da base de conhecimento que sustenta os compromissos globais e sua implementação[xix].

Política urbana global e Direito Internacional

A criação de dados tornou-se um pré-requisito para a participação ativa dos governos locais na geopolítica da sustentabilidade global[xx]. Grande parte dos dados necessários para monitorar o progresso de metas e indicadores urbanos precisa estar disponível para cada pequena unidade de área, rua ou bairro, de modo a informar as políticas e os investimentos do governo local.

Contudo, há uma limitação da capacidade de coleta de dados em nível nacional[xxi]. Autoridades locais no Sul Global já expressaram preocupação com o número e a diversidade de indicadores sobre os quais se espera que elas tenham ou coletem dados, seja porque não possuem recursos suficientes para isso, seja porque carecem de mandatos legais em termos de suas atribuições de governança[xxii].

Diante de “lacunas de dados urbanos”, o foco na produção de dados padronizados e em larga escala começou a dominar os discursos globais. Esse discurso surge, muitas vezes, desacompanhado de reflexões críticas sobre quem produz essas informações e reflete uma seletividade em termos de quais realidades urbanas são objeto da produção de conhecimento, de como esse conhecimento pode ser usado e por quem[xxiii].

A comparação além das fronteiras nacionais pode ajudar as cidades a elaborar políticas melhores por meio do aprendizado mútuo[xxiv]. As informações quantitativas são úteis e fornecem uma avaliação numérica sintética e comparável de questões políticas específicas, bem como dos progressos obtidos em direção aos objetivos de uma política[xxv]. Por outro lado, as comparações muitas vezes carecem da profundidade e das informações contextuais para entender, por exemplo, como e por que as intervenções são bem-sucedidas ou fracassam[xxvi]. A produção e utilização de métricas e indicadores leva ao risco de descontextualizar e desvalorizar a riqueza e complexidade de contextos sociais urbanos.

No contexto de estudos da governança regulatória global do NDGD da FVG Direito SP, conclui-se a presente contribuição com uma proposta de reflexão sobre os atores e processos narrados à luz do Direito Internacional. A partir do conceito de Direito Internacional como linguagem[xxvii], que media processos políticos de produção e implementação de políticas urbanas à nível global, é possível dialogar e ponderar sobre os questionamentos acima. Propõe-se conceber o direito além da mera estrutura de normas jurídicas, ampliando seu papel como base para mecanismos disciplinares e técnicas de governança em sentido mais amplo.

Diante das atuais dinâmicas de governança urbana global, sugere-se enxergar o Direito Internacional além de seus objetos tradicionais para considerar a presença de sua linguagem na atividade de novos atores e processos que se espalham pelo mundo e atingem a vida cotidiana de cidadãos.


[i] AUST, Helmut Philipp; DU PLESSIS, Anél. Good urban governance as a global aspiration: on the potential and limits of SDG 11. In: FRENCH,  Duncan; KOTZÉ, Louis J. Sustainable Development Goals. Edward Elgar Publishing, 2018.

[ii] FOSTER, Sheila R.; SWINEY, Chrystie. City networks and the glocalization of urban governance. In: AUST, Helmut Philipp; NIJMAN, Janne. Research Handbook on International Law and Cities, Edward Elgar Publishing, 2021.

[iii] Cidades também fazem uso de normas internacionais. Segundo as autoras, algumas cidades norte-americanas alegam rotineiramente intervir nos casos em que os Estados Unidos não ratificam acordos internacionais, como no caso da implementação local de acordos como o Protocolo de Kyoto ou tratados de direitos humanos. Em 2018, a cidade de Nova York se declarou a primeira cidade a informar diretamente às Nações Unidas sobre a implementação local dos ODSs. OSOFSKY, Hari M. Sub-National Actors. In: Lavanya Rajamani, Jacqueline Peel. The Oxford Handbook of International Environmental Law, 2 ed., 2021.

[iv] DU PLESSIS, Anél. SDG 11: Make Cities and Human Settlements Inclusive, Safe, Resilient and Sustainable. In: EBBESSON, Jonas;  HEY, Ellen. The Cambridge Handbook of the Sustainable Development Goals and International Law, 2022.

[v] As redes de cidades globais funcionam como plataformas que conectam cidades além das fronteiras nacionais e regionais, permitindo a participação de prefeitos e líderes locais em instituições internacionais e capacitando as cidades a adotar (e adaptar) políticas para enfrentar desafios compartilhados e ampliar essas políticas para níveis mais altos de governo. FOSTER, Sheila R.; SWINEY, Chrystie. City networks and the glocalization of urban governance. In: AUST, Helmut Philipp; NIJMAN, Janne. Research Handbook on International Law and Cities, Edward Elgar Publishing, 2021, p. 368-70.

[vi] O envolvimento das cidades nos esforços internacionais e transnacionais sobre mudanças climáticas ilustra a evolução do papel de atores subnacionais no direito ambiental internacional, como se observa pela participação do C40 Cities Climate Leadership Group (2005) em cúpulas e conferências internacionais e sua criação de alianças com outros atores, desde o Banco Mundial até grandes atores corporativos. Ver OSOFSKY, Hari M. Sub-National Actors. In: Lavanya Rajamani, Jacqueline Peel. The Oxford Handbook of International Environmental Law, 2 ed., 2021; AUST, Helmut Philipp; NIJMAN, Janne E. The emerging roles of cities in international law – introductory remarks on practice, scholarship and the Handbook. In:  Research handbook on international law and cities. Edward Elgar Publishing, 2021, p. 4.

[vii] Ver AUST, Helmut. Cities as International Legal Authorities – Remarks on Recent Developments and Possible Future Trends of Research. Journal of Comparative Urban Law and Policy: Vol. 4(1), 2020, 82-88.

[viii] Em 2017, a International Law Association decidiu criar um grupo de estudos sobre “O papel das cidades no Direito Internacional”,  coordenado por Janne Nijman, do T.M.C. Asser Instituut, e Helmut Aust, da Freie Universität, Berlin. AUST, Helmut Philipp; NIJMAN, Janne E. The emerging roles of cities in international law – introductory remarks on practice, scholarship and the Handbook. In:  Research handbook on international law and cities. Edward Elgar Publishing, 2021.

[ix] “A Nova Agenda Urbana foi adotada na Conferência das Nações Unidas sobre Habitação e Desenvolvimento Urbano Sustentável (Habitat III) em Quito, Equador, em 20 de outubro de 2016. Ela representa uma mudança de paradigma baseada na ciência das cidades, definindo padrões e princípios para o planejamento, construção, desenvolvimento, gestão e melhoria das áreas urbanas”. In: ONU HABITAT. ONU-Habitat lança Nova Agenda Urbana Ilustrada em português. 10 janeiro 2023. Disponível em: ttps://brasil.un.org/pt-br/214756-onu-habitat-lan%C3%A7a-nova-agenda-urbana-ilustrada-em-portugu%C3%AAs

[x] DU PLESSIS, Anél. SDG 11: Make Cities and Human Settlements Inclusive, Safe, Resilient and Sustainable. In: EBBESSON, Jonas;  HEY, Ellen. The Cambridge Handbook of the Sustainable Development Goals and International Law, 2022.

[xi] ROBINA, Enora; ACUTO, Michele. Global urban policy and the geopolitics of urban data. Political Geography n. 66, 2018.

[xii] DAVIS, Kevin E.; KINGSBURY, Benedict; MERRY, Sally Engle. Indicators as a Technology of Global Governance. Law & Society Review, Vol. 46, No. 1, 2012, pp. 71-104.

[xiii] LÖWENHEIM, Oded. Examining the State: A Foucauldian Perspective on International ‘Governance Indicators’. Third World Quarterly, Vol. 29, No. 2,  Taylor & Francis, Ltd. (2008), pp. 255-274.

[xiv] DAVIS, Kevin E.; KINGSBURY, Benedict; MERRY, Sally Engle. Indicators as a Technology of Global Governance. Law & Society Review, Vol. 46, No. 1, 2012, pp. 71-104.

[xv] ROBINA, Enora; ACUTO, Michele. Global urban policy and the geopolitics of urban data. Political Geography n. 66, 2018.

[xvi] ROBINA, Enora; ACUTO, Michele. Global urban policy and the geopolitics of urban data. Political Geography n. 66, 2018.

[xvii] BANDOLA-GILL, Justyna Sotiria. MARLEE, Tichenor. Governing the Sustainable Development Goals Quantification in Global Public Policy. Sustainable Development Goals Series, 2022.

[xviii] ACUTO, Michele; ROBINA, Enora. Global urban policy and the geopolitics of urban data. Political Geography n. 66, 2018.

[xix] ACUTO, Michele; ROBINA, Enora. Global urban policy and the geopolitics of urban data. Political Geography n. 66, 2018.

[xx] ACUTO, Michele; ROBINA, Enora. Global urban policy and the geopolitics of urban data. Political Geography n. 66, 2018.

[xxi] SATTERTHWAITE , David. Editorial: A new urban agenda? International Institute for Environment and Development (IIED) 3 Vol 28(1), 2016.

[xxii]Ver HANSSON, Stina, ARFVIDSSONA, Helen, SIMONA David. Governance for sustainable urban development: the double function of SDG indicators. Area Development And Policy, Vol. 4, No. 3, 2019.

[xxiii] No caso das atividades das redes internacionais de cidades, preocupa-se como seus interesses podem se concentrar nas principais áreas metropolitanas do mundo, deixando as cidades menores e médias sem representação e, assim reproduzir e aprofundar desigualdades econômicas mundiais. FOSTER, Sheila R.; SWINEY, Chrystie. City networks and the glocalization of urban governance. In: AUST, Helmut Philipp; NIJMAN, Janne. Research Handbook on International Law and Cities, Edward Elgar Publishing, 2021, p. 380.

[xxiv] BANDOLA-GILL, Justyna Sotiria. MARLEE, Tichenor. Governing the Sustainable Development Goals Quantification in Global Public Policy. Sustainable Development Goals Series, 2022.

[xxv] Ver ROBINA, Enora; ACUTO, Michele. Global urban policy and the geopolitics of urban data. Political Geography n. 66, 2018, 76–87.

[xxvi] ROBINA, Enora; ACUTO, Michele. Global urban policy and the geopolitics of urban data. Political Geography n. 66, 2018, 76–87.

[xxvii] Ver HOFFMANN, F. F.. Discourse. In: Jean D’Aspremont; Sahib Singh. (org.). Concepts for International Law – Contributions to Disciplinary Thought. 1ed.Cheltenham: Edward Elgar Publishing, 2019, p. 110; HOFFMANN, Florian. On the Value of Rights. In: Isabel Feichtner, Geoff Gordon (eds.) Constitutions of Value: Law, Governance, and Political Ecology, 1st ed, Routledge, 2023.

  • Gabriela Hühne Porto é estudante de Doutorado em Teoria do Estado e Direito Constitucional na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2023). É Professora de Magistério Superior Substituta de Direito Internacional Público na Universidade Federal Fluminense - UFF (2023-).

CONTEÚDOS RELACIONADOS / RELATED CONTENT:

Compartilhe / Share:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter