Governança Regulatória Global

Do segundo semestre de 2021 ao primeiro de 2022, no âmbito do Núcleo de Direito Global e Desenvolvimento (NDGD) da FGV Direito SP, promovemos um ciclo de leituras e debates sobre governança regulatória global, com o propósito de mapear e sistematizar a literatura sobre o tema, assim como localizar sua relevância para algumas áreas temáticas no Brasil. Ao todo, foram realizados dez encontros que contaram com a participação de professores e pesquisadores de diversas instituições brasileiras.

Ao fim desse ciclo, concluímos que há algumas linhas de maior destaque na literatura sobre governança regulatória global, porém nem sempre é exposto como estas linhas convergem ou divergem entre si. Notamos que, apesar de linguagens e objetos comuns, as linhas estudadas, no limite, assumem pretensões distintas no debate e, assim, diferentes alcances. Então, propusemo-nos a elaborar alguns critérios para construção de um quadro de referências para o que chamamos de uma literatura proeminente sobre governança regulatória global. 

Duas são as razões que nos levaram a estruturar critérios para este quadro: (i) disseminar e compartilhar nossos exercícios de sistematização sobre teorias, evidenciando-se a que se propõem e as suas contribuições para compreensão ou mesmo operacionalização da governança regulatória global; e (ii) incentivar uma interface qualificada e crítica com teorias e autores que vêm protagonizando esse debate, a fim de estimular que o debate não se dê de forma desconectada ou acrítica.

O exercício coletivo de leitura trouxe-nos a constatação de que a literatura de governança global é predominantemente anglófona, matizando, a partir de uma perspectiva própria, os debates desde as ciências sociais até o direito, bem como sendo referenciada por autores situados em países do norte ao sul global.

A constatação do predomínio anglófono reforçou uma inquietação entre os integrantes do grupo no sentido de buscar uma interface qualificada com essas teorias e autores, a partir de questões e problemas próprios do Brasil. Para tanto, o grupo procurou estabelecer diálogo com literaturas de abordagem crítica que, embora não estejam inseridas propriamente no campo da governança regulatória global, também abordam intersecções entre problemas e questões regulatórias no âmbito doméstico em contexto de globalização, promovendo uma interlocução com agendas específicas ao sul global. 

Entendemos, assim, que alguns achados nesse nosso percurso podem ser úteis a pesquisadores/as situados no Brasil que queriam se aprofundar no estudo teórico do tema ou mesmo com ele manter alguma interlocução qualificada a partir de um problema específico de pesquisa.

Contexto da produção acadêmica sobre governança regulatória global

De início, vale notar que este é um campo caracterizado pela interdisciplinaridade entre o direito e outras áreas das ciências sociais e por muitas inconsistências epistemológicas, o que nos traz algumas ressalvas. Nossa primeira escolha foi focar apenas na literatura que tem uma preocupação com o direito e seu papel neste processo de (des)coordenação global. A ideia de “governança regulatória global” expressa um sentido mais amplo de regulação: não restrita ao Estado-nação westfaliano e a uma relação entre soberanias. As regras ou regulações reconhecidas pelo debate incluem fontes pública e privada, a partir da implementação por autoridades ou instituições locais, nacionais, regionais, internacionais e conexões entre estas, em uma dimensão que vem sendo cada vez mais caracterizada como “global” ou “transnacional”. Por essas razões, trata-se de um campo que não é suficientemente capturado pelas lentes do direito internacional público e conecta-se de forma simbiótica com as relações internacionais, em sua dimensão política. Por outro lado, apesar de observar influências transnacionais sob as lentes segmentadas da regulação local, a literatura não dialoga diretamente com a produção sobre áreas especializadas do direito doméstico. Isso tende a gerar um campo descoordenado, “órfão” das áreas tradicionais do direito, tal como ensinado e trabalhado no Brasil; e, ao mesmo tempo, um campo facilmente apropriável por quem trabalha em diferentes áreas.

A noção de “governança global” ganha força na literatura das ciências sociais na década de 1990, impulsionada pelo fim da Guerra Fria, em um processo de maior convergência política e um aumento de escala da economia globalizada (PRAKASH e HART, 2019, p. 3). Essa transição suscitou uma profusão de formulações teóricas, em diferentes áreas das ciências sociais e em especial das relações internacionais, à luz de variadas chaves de análises, abordagens, perfis metodológicos e agendas de pesquisa. Mas, foi apenas no século XXI que passamos a encontrar formulações teóricas no campo do direito, com foco no impacto das novas dinâmicas globais e transnacionais na estrutura regulatória destas relações. Nosso foco de sistematização se concentrou nesta última produção, ou seja, nas teorias com pretensões de compreender a governança regulatória global e o papel do direito, especificamente.

O primeiro desafio enfrentado no NDGD para a sistematização das teorias sobre governança regulatória global foi a diversidade de agendas e denominações das contribuições teóricas sobre o mesmo objeto. Entre as linhas de maior proeminência que mapeamos, estão: Global Legal Pluralism, Transnational law, Transnational Legal Order (TLO), Transnational Private Regulation (TPR), Transgovernmental Networks (TN), Global Business Regulation, Global Administrative Law (GAL), Global Constitucionalism, Third World Approaches to International Law (TWAIL).

Dada a diversidade e o escasso diálogo entre elas, sobrevieram outras perguntas. Por que tantas linhas e denominações? O quanto a abordagem, os pressupostos, as metodologias aplicadas diferem entre estas “teorias”? Seria possível identificar maior adequação ou vantagens comparativas para análise de determinadas situações de uma teoria face às demais? Afinal, a quais critérios devemos recorrer no momento de começar uma pesquisa e analisar um problema específico? 

Sistematizando o caos: em busca de critérios para um quadro de referências teóricas

Em que pese a existência de um campo teórico composto por diferentes formulações teóricas e metodológicas, com perspectivas e questões distintas; a leitura e comparação dessas referências ao longo das reuniões do NDGD nos evidenciou alguns critérios possíveis para organização do campo a partir da construção de um quadro organizador. 

Embora partam de um mesmo “diagnóstico”, as linhas de pesquisa mencionadas se estruturam a partir de questões específicas, algumas mais focadas em compreender os processos e lógicas dessas novas interações pelo direito e outras com foco em questões mais normativas. Entre as suas questões-guia estão: qual é o papel do direito na governança regulatória global? Qual a legitimidade dos atores e instituições que emergem de espaços globais e transnacionais, sejam eles públicos ou privados? Como compatibilizar as estruturas jurídicas nacionais à formação e evolução de espaços transnacionais de tomada de decisão e produção normativa? 

Ao sistematizar as principais formulações acadêmicas oriundas dos debates sobre governança regulatória global, identificamos alguns critérios como relevantes e então elegemos três, os quais subdividimos em algumas qualificações:

  • Chave de análise: i) diálogo com fontes (normas ou costume), ii) diálogo com atores e seus processos (OIs, Estados, ONGs, Empresas, Entidades híbridas, Redes de órgãos nacionais etc) e iii) diálogo com ideias (Realismo, Liberalismo, Marxismo, Construtivismo, Decolonialidade).
  • Proposta metodológicai) dogmática e ii) empírica.
  • Abordagem: i) descritiva, ii) normativa e iii) crítica.

Partindo desses critérios, procuramos compreender as principais formulações teóricas, seus autores, principais trabalhos conceituais e quais respostas os mesmos têm oferecido ao estudo do fenômeno da governança regulatória global.

Como forma de explicitar cada um desses critérios, vale ilustrá-los com algumas teorias. A começar pelo “critério“abordagem”, tem-se o predomínio de abordagens descritivas que procuram descrever os fenômenos normativos no contexto da governança global. Contudo, duas teorias merecem destaque por superarem abordagem descritiva, em direção a uma proposição normativa ou crítica dos fenômenos.

Com pretensão normativa, vale o destaque ao Global Administrative Law Project (GAL). Sua pretensão normativa se evidencia no fato de que o GAL não se limita a descrever um “novo” modus operandi da regulação em âmbito transnacional. Mais do que descrever, o GAL propõe a formulação de um novo campo do direito com pretensões normativas, o Direito Administrativo Global, destinado à definição de procedimentos, mecanismos de revisão e princípios decisórios no intuito de superar questões de déficit democrático, accountability e transparência, buscando promover maior responsabilidade na tomada de decisões pela variedade de órgãos administrativos reguladores globais (KINGSBURY, KRISCH e STEWART, 2005).

Por sua vez, em uma linha crítica, tem-se os debates sobre Third World Approaches to International Law (TWAIL). As abordagens de TWAIL pretendem criticar efetivamente o direito internacional neoliberal ao mesmo tempo em que projetam uma visão alternativa do direito internacional, buscando a transformação interna das condições do Terceiro Mundo (CHIMNI, 2003). Uma corrente, portanto, em que se sobressai uma agenda refundacional do próprio direito internacional na era globalização a partir da valorização de perspectivas terceiro-mundistas. Embora não se situe intrinsecamente no debate da governança regulatória global, as abordagens de TWAIL oferecem um importante instrumental crítico-analítico para pesquisadores/as que queiram manter diálogo com essa literatura a partir de países do sul global. 

Quanto ao critério “chave de análise”, boa parte das teorias de abordagem descritivas aprofundam no diálogo com fontes e com atores e seus processos. Um bom exemplo é o Transnational Legal Orders (TLOs), em que autores Terence C. Halliday e Gregory Shaffer partem de uma perspectiva sociojurídica e descrevem dinâmicas específicas de ordens jurídicas transnacionais em diversos campos distintos (comércio internacional, finanças, saúde e patentes farmacêuticas, padrões em segurança alimentar, direitos humanos, mudanças climáticas, etc.), suas conexões e impactos em sistemas legais domésticos (HALLIDAY e SHAFFER, 2015). Outra corrente, que de certa forma inaugurou a ideia de transnacionalidade, de natureza explicitamente interdisciplinar, é o Transgovernmental Networks (TN), voltada à compreensão dos mecanismos de cooperação regulatória transnacional, a partir do surgimento e desenvolvimento de redes transgovernamentais, conceito difundido com a obra “Nova Ordem Mundial” de Annie-Marie Slaughter (2004; 1997). Quanto ao diálogo com ideias, cabe nova menção às leituras críticas de TWAIL e seu diálogo com ideário decolonial. 

Por fim, quanto ao critério “proposta metodológica”, o livro “Global Law Without a State” de Gunther Teubner (1997) é um bom exemplo de trabalho de perfil dogmático, uma vez que Teubner coloca em discussão pressupostos de validade e características de um direito global diferente da experiência do direito do Estado-nação: limites, fontes, independência e unidade. Ao passo que o Transnational law (TL) por Peer Zumbansen (2021) mescla perfil dogmático com empírico, ao aprofundar análises empíricas de como as empresas multinacionais detêm mais poder e ativos do que muitos Estados-nação.

Um primeiro referencial para futuros saltos nas teorias

Esses são alguns critérios que podem auxiliar o pesquisador em um primeiro contato com o campo da governança regulatória global, ainda que reconheçamos espaços inconclusos entre as teorias ou mesmo inalcançáveis à luz desses critérios. 

Talvez sejam a complexidade e o caráter enigmático do campo que tanto interesse desperta em seus pesquisadores/as. Afinal de contas, diante de tantas abordagens e infinitas possibilidades de investigação, sempre haverá espaço para novas perspectivas e achados no campo da governança regulatória global. 

Os seus achados mais recentes mesclam um entusiasmo por novas linguagens, interações e processos e, ao mesmo tempo, uma angústia pela falta de fronteiras para dizer o que é o direito nesse campo, qual sua coerência sistêmica, quais as deficiências metodológicas, assim como se há novas formas de colonialismo implícitas nessas definições. 

De nossa parte, a partir destas primeiras observações, concluímos que o diálogo com essa literatura tem maiores ganhos quando, ao invés de usar dedutivamente estas teorias, opta-se por partir do problema específico de pesquisa para encontrar subsídios e formulações mais amplas nas teorias para articular conceitos e ancorar conclusões. Ademais, enxergamos com inquietação o desafio de mobilizar uma literatura de marcada predominância anglófona para questões e problemas locais do Brasil e de outros países do sul global; por outro lado, entendemos que uma interface qualificada por pesquisadores/as situados em países do sul global pode buscar inspiração no instrumental analítico desenvolvidos por teorias críticas, como as abordagens de TWAIL. Assim sendo, dentre outros exercícios neste grupo do NDGD, procuramos analisar mais profundamente cada uma das linhas e mesmo trazer o diálogo de uma ou várias linhas diante de um mesmo caso concreto. Em outros artigos oportunos, apresentaremos esses exercícios, de forma a exemplificar a nossa conclusão preliminar.

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Nossos especiais agradecimentos aos pesquisadores: Adriana Mecelis, Ana Claudia Espindola, Ana Hohmann, Anna Caroline Cortellini, Antônio Gonçalves, Amanda Mitsue Zuchieri, Eduardo Leite, Emílio Mendonça Dias, Gabriela Huhne Porto, Giovana Carneiro, Giuliane Bertaglia, Giulia Romay, Guilherme Kruger, Gustavo Jorge Silva, Jorge Vaz de Lima, Luiza Papy, Tiago Megale, Sophia Selleguim, Veyzon Muniz, Viviany Yamaki. Registramos também as valiosas participações dos professores: Vera Thorstensen (FGV), Fábio Morosini (UFRGS), Lucas Carlos Lima (UFMG) e Raquel Pimenta (FGV).

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Referências:

CHIMNI, Bhupinder S. Third world approaches to international law: a manifesto. In: The Third World and International Order. Brill Nijhoff, 2003. p. 47-73.

HALLIDAY, Terence C.; SHAFFER, Gregory (Ed.). Transnational legal orders. Cambridge University Press, 2015.

KINGSBURY, Benedict; KRISCH, Nico; STEWART, Richard B. The emergence of global administrative law. Law and contemporary problems, v. 68, n. 3/4, p. 15-61, 2005.

PRAKASH, Aseem; HART, Jeffrey A. Globalization and governance: an introduction. Globalization and governance, p. 1-24, 1999.

SLAUGHTER, Anne-Marie. The real new world order. Foreign affairs, p. 183-197, 1997.

SLAUGHTER, Anne-Marie. A new world order. Princeton University Press, 2004.

TEUBNER, Gunther et al. (Ed.). Global law without a state. Aldershot: Dartmouth, 1997. 

ZUMBANSEN, Peer C. Transnational law. CLPE Research Paper, n. 09, 2008.

ZUMBANSEN, Peer (Ed.). The Oxford Handbook of Transnational Law. Oxford University Press, 2021.

  • Doutoranda em Direito e Desenvolvimento pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, FGV Direito SP. LL.M. em International Legal Studies pela Washington College of Law, American University, Washington, DC. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Centro de Estudos do Comércio Global e Investimentos (CCGI) da Escola de Economia da Fundação Getúlio Vargas e do Núcleo de Direito Global e Desenvolvimento da FGV Direito SP. Beneficiária da Bolsa Mario Henrique Simonsen e da Bolsa CAPES/PROSUP. Advogada nas áreas de Direito Internacional Econômico, Direito do Comércio Internacional, Direito Administrativo e Regulatório. Email: magalifavaretto@gmail.com / LinkedIn: www.linkedin.com/in/magalifavaretto / Lattes: http://lattes.cnpq.br/1572919051291970 / ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0254-0775

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