Ucrânia leva Rússia à CIJ sobre alegações de genocídio

Em 26 de fevereiro deste ano, a Ucrânia ingressou com uma ação na Corte Internacional de Justiça contra a Rússia, buscando uma condenação desta sob a Convenção para Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, de 1948 (“Convenção contra o Genocídio”), bem como a decretação de medidas provisórias. A ação se inscreve no panorama da guerra entre os dois países, deflagrada por invasão russa do território vizinho dois dias antes. Esta postagem faz alguns comentários iniciais à petição ucraniana, especialmente sobre sua original estratégia para fundar a competência da Corte, e tenta imaginar algumas possíveis respostas da CIJ.

O país autor invocou a cláusula jurisdicional do art. 9º da Convenção contra o Genocídio, da qual tanto Rússia quanto Ucrânia são partes. Entretanto, a argumentação ucraniana emprega a Convenção de uma maneira pouco usual dentre os casos que chegam à Corte. A petição inicial evita denunciar a prática de genocídio pelas tropas russas – o que seria difícil de comprovar, levando em conta o que se sabe até o momento sobre o conflito, bem como a posição restritiva da CIJ em relação à identificação de genocídio em outros casos (Bósnia Herzegovina vs. Sérvia e Montenegro, Croácia vs. Sérvia e Montenegro).

Em vez disso, a Ucrânia manejou a Convenção contra o Genocídio de uma maneira diferente: pediu à Corte uma declaração de que não havia cometido genocídio nas áreas separatistas do Donbass antes da intervenção russa. Durante a invasão, assim como nos dias anteriores, lideranças russas repetiram que Kiev estaria atacando os residentes das repúblicas autoproclamadas de Donetsk e Luhansk, em ações que consubstanciariam o crime de genocídio. Ao trazer tais alegações a juízo, negando-as, a Ucrânia parece querer enquadrar a intervenção russa como uma resposta ao suposto genocídio praticado contra os russófilos no Donbass. De fato, Kiev alega uma violação da Rússia ao art. 1º da Convenção, pelo qual as partes se obrigam a prevenir ou punir o genocídio. Segundo a petição inicial, a invasão russa foi decidida pelo Kremlin como resposta ao alegado genocídio praticado pela Ucrânia. De não haver tal genocídio, toda a operação passa a ser uma prevenção ou punição a um não-genocídio. Por conseguinte, estar-se-ia diante de uma interpretação equivocada do art. 1º e de uma violação do direito da Ucrânia, enquanto Estado parte da Convenção, de não ser punida, sob o rótulo de “genocídio”, por atos que nela não estejam previstos. É por isso que, em seus pedidos iniciais, Kiev pede que a intervenção russa, como resposta ao falso genocídio, seja condenada pela Corte.

O raciocínio esgrimido até o momento pela Ucrânia parece apresentar algumas questões difíceis à CIJ:

  1. Trata-se realmente de uma disputa sobre genocídio?

Parece claro que o intuito da Ucrânia consiste em obter alguma declaração de ilegalidade da intervenção militar russa, bem como decisões cautelares e de mérito ordenando a suspensão das operações daquelas tropas. A Convenção contra o Genocídio foi provavelmente a única via de acesso à Corte que Kiev encontrou em suas relações com o vizinho maior. Não obstante, as teses levantadas pela petição inicial merecem exame, pois se baseiam em repetidas denúncias de genocídio feitas em discursos de autoridades russas com capacidade de vincular o Estado, como o presidente da Federação, o representante da Rússia nas Nações Unidas e o ministro das relações exteriores.

Como as autoridades russas não formalizaram suas denúncias de genocídio em nenhum tribunal ou foro internacional, a CIJ deverá decidir se o termo “genocídio” foi empregado por eles em sentido técnico, de acordo com a definição prevista na Convenção de 1948, ou em sentido figurado, como ocorre frequentemente no debate político. Será interessante ver se a CIJ enveredará pela análise textual dos discursos trazidos aos autos pela Ucrânia. De toda maneira, não se deve perder de vista que se trata de pronunciamentos das mais altas autoridades políticas e diplomáticas feitos imediatamente antes e depois do início das hostilidades (como notado em outro comentário). Uma possível conclusão seria entender que a Rússia mencionou o genocídio para justificar um direito de intervenção, e se encontra vinculada pelas manifestações respectivas.

  1. Existem os direitos alegados pela Ucrânia?

Em sua petição, a Ucrânia alega que seu vizinho teria violado a Convenção em seus artigos 1º (obrigação geral de prevenir e punir atos de genocídio) e 8º (possibilidade de invocar os órgãos da ONU contra atos de genocídio) ao interpretá-los, de má-fé, como permitindo uma ação armada unilateral contra a Ucrânia. Haveria, assim, parafraseando a inicial, um “direito de não ser submetido a uma falsa acusação de genocídio”, e um “direito de não estar sujeita a operações militares de outro Estado em seu território baseadas em um claro abuso do Artigo 1º da Convenção”. É claro que estes direitos são facilmente deduzidos do direito internacional geral. Entretanto, é questionável se eles podem ser encontrados na Convenção contra o Genocídio e, por conseguinte, no âmbito de competência da Corte.

A Convenção de 1948 menciona apenas o dever de punir indivíduos (arts. 4º a 8º), e nada diz sobre a possibilidade de intervir contra Estados que praticam genocídio. Assim, é possível entender que tanto os direitos titularizados pela Ucrânia quanto a alegada conduta da Rússia de intervir para evitar genocídio encontram-se fora do âmbito de aplicação da Convenção contra o Genocídio. A tese “Estados genocidas podem sofrer punição”, a qual estaria sendo manipulada por Moscou, simplesmente não se encontra na Convenção. Nesta ótica, os direitos alegados pela Ucrânia decorreriam do direito internacional geral e da Carta da ONU, mas não da Convenção contra o Genocídio e seriam, portanto, impossíveis de ser reivindicados com base nesse tratado.

Mesmo nessa perspectiva, seria possível defender a competência da CIJ para pronunciar-se exclusivamente sobre as alegações de genocídio proferidas pela Rússia. Seria o reconhecimento de um direito da Ucrânia, enquanto Estado parte da Convenção de 1948, de não ser injustamente denunciada pelo grave crime previsto nesta Convenção. De todo modo, isso deixaria as ações mais belicosas fora do escopo do exame judicial (no mesmo sentido (como notado em alguns comentários a outra postagem).

Outra posição que a CIJ pode tomar partiria da interpretação do artigo 9º da Convenção. Ali, ao estabelecer a CIJ como foro competente, o tratado detalha que podem ser levadas à Corte quaisquer controvérsias sobre “interpretação, aplicação e execução” do mesmo. Não parece necessário haver alegação de descumprimento de algum artigo específico; basta que haja uma discordância sobre a interpretação da Convenção. Logo, a Corte pode compreender a disputa como um conflito de entendimentos sobre a Convenção, em que a Rússia sustenta a ocorrência de genocídio e a licitude de sua resposta armada, e a Ucrânia defende o não cometimento de genocídio e a consequente ilegalidade da intervenção militar. 

A Corte também pode interpretar o termo “aplicação da Convenção” do art. 9º como englobando todas as disputas interestatais que tenham por objeto o genocídio, visto que a Convenção de 1948 é o único instrumento de alcance universal que impõe obrigações aos Estados no tema. Nessa ótica, os direitos alegados pela Ucrânia, de não ser falsamente acusada de genocídio e de não sofrer intervenção militar com base em alegações espúrias de genocídio, podem ser compreendidos como anexos à Convenção de 1948 e passíveis de exame pela Corte sob a rubrica de “controvérsias relativas à interpretação ou aplicação da Convenção”.

  1. Considerando que a Convenção contra o Genocídio seja aplicável à situação, isso permite que a CIJ se pronuncie sobre o conflito armado entre Rússia e Ucrânia?

Se os direitos alegados pela autora como presentes na Convenção de 1948 e violados pela Rússia dependem de alguma análise para serem reconhecidos no caso, a situação é ainda menos clara em relação à possibilidade de que a CIJ exerça jurisdição sobre o conflito armado que se desenrola no país (posição semelhante aqui). Isso porque os pronunciamentos do presidente Putin e de seus representantes, como transcritos pela Ucrânia, não permitem concluir sem margem para dúvidas que o único motivo da ação bélica foi a suposta violação ucraniana da Convenção contra o Genocídio. Logo, se a Corte se pronunciar sobre qualquer motivo alegado pela Rússia que vá além do suposto genocídio no Donbass, ela ultrapassará os limites de sua jurisdição. 

Por outro lado, considerando que a narrativa ucraniana foi construída sobre pronunciamentos oficiais de autoridades russas nos momentos imediatamente anterior e posterior ao início das hostilidades, caberá à Rússia mostrar que, ao mesmo tempo, também alegava outras razões como justificativa do emprego da força. Com isso, ela provavelmente evitará uma manifestação da CIJ sobre a guerra. Porém, caso a CIJ não se satisfaça com a comprovação da existência prévia destas outras razões, ou não se convença de que faziam referência, mesmo que equivocada, ao direito internacional, ela poderá examinar a legalidade da ação da Rússia na Ucrânia a partir da Convenção contra o Genocídio somente, ignorando motivações políticas. Em síntese, parece haver espaço argumentativo para a Corte manobrar e, se entender conveniente, pronunciar-se sobre o conflito como um todo.

  1. Pode a Corte impor um cessar-fogo em sede de medidas provisórias?

De acordo com a jurisprudência da Corte (como ilustrado pelo índice aqui), a decretação de medidas provisórias depende do concurso das seguintes condições: existência de jurisdição prima facie; legitimidade da parte para estar em juízo; plausibilidade do direito alegado; relação entre o direito alegado e a medida requerida; risco de prejuízo irreparável; e urgência.

Em relação ao pedido da Ucrânia para ordenar a suspensão das operações militares russas, o primeiro requisito parece ser o mais problemático. Por outro lado, o exame da existência de jurisdição é mais sucinto nos pedidos de medidas provisórias, e houve ocasiões em que a Corte impôs medidas provisórias e posteriormente, no julgamento do mérito, concluiu que não possuía competência para o caso.

Em Bósnia vs. Sérvia, onde a competência da CIJ também se limitava pela Convenção contra o Genocídio, ela se limitou a solicitar às partes que não cometessem ou encorajassem atos de genocídio, ignorando o pedido por uma suspensão das hostilidades. Portanto, a Corte provavelmente não ordenará a interrupção das ofensivas russas – a não ser que configure todo o caso como uma disputa exclusivamente sobre o cumprimento da Convenção contra o Genocídio.

Uma saída seria afirmar provisoriamente, e em abstrato, o direito da Ucrânia de não ser vítima de qualquer sanção por um suposto descumprimento da Convenção contra o Genocídio. A partir daí, a Corte poderia ordenar a Moscou que se abstenha de fazer uso da força em território ucraniano com base em alegações de resposta a genocídio. Mas é difícil imaginar os magistrados indo além disso.

Conclusão

A ação movida pela Ucrânia contra a Rússia parece mais uma tentativa de país ameaçado pelo emprego da força de mover a Corte em seu favor aproveitando tratados de direitos humanos que não se aplicam perfeitamente a situações de violação do ius ad bellum (outros exemplos estão aqui, aqui, aqui, aqui e aqui). O que parece distinguir o caso presente é que o Estado autor encontrou a base jurisdicional para competência da Corte nas manifestações públicas dos representantes da parte apontada como sua agressora. Assim, por um lado, a Corte deve ter cautela para não permitir um alargamento arbitrário do escopo da Convenção contra o Genocídio, o que pode resultar em perda de legitimidade. Mas, de outra parte, será difícil defender a justiça de uma decisão da Corte que não considere as declarações agressivas da Rússia para afirmar alguma jurisdição sobre a mesma.

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