Sobre o eixo universalismo/particularismo

Este texto integra a série de postagens que apresentam os resultados parciais da pesquisa sobre manuais brasileiros de direito internacional, coordenada por Fabio Morosini e Luiza Leão Soares Pereira no âmbito do grupo de pesquisa CNPQ DGD/UFRGS. A pesquisa analisa e compara os principais manuais de DIP contemporaneamente utilizados no Brasil, identificando seus padrões e características mais marcantes para assim compreender a especificidade do direito internacional ensinado e praticado no Brasil, bem como seu lugar dentro da rede de produção de conhecimento jurídico internacional.

Analisou-se se os manuais exploravam temas particulares ao contexto brasileiro/regional/local, e/ou usavam fontes Brasileiras/regionais/locais. Esse eixo de análise foi batizado de ‘particularismo/universalismo’. O texto a seguir apresenta algumas conclusões preliminares sobre este eixo.

Universalismo versus Particularismo: os conceitos

A noção de universalidade desempenhou e desempenha um papel central na concepção, operação e mobilização do direito internacional [1]. A visão dominante que boa parte dos operadores do direito internacional têm da disciplina é a de um sistema neutro, imparcial, com escopo de aplicação universal (geográfica, cultural e substantivamente), benevolente, “salvador”, disponível e aplicável a todas as nações “civilizadas” [2]. Contudo, longe dos grandes centros de produção de conhecimento, a materialidade e o cotidiano da disciplina expõem reiteradamente uma série de diferenças, contradições e desequilíbrios que põem em xeque esta pretensão, promessa, proposição de universalidade do direito internacional.

Na academia, as críticas ao universalismo do direito internacional encontram expressão nas abordagens críticas do direito internacional,[3] pelo que se busca demonstrar ser o direito internacional baseado em práticas hegemônicas, imperialistas, eurocêntricas, racializadas, e binário-generificadas, desde sua origem. Hoje, cabe também falar no “Ocidentecentrismo”, ou “Angloamericano-centrismo” de uma disciplina que reivindica universalidade, que ainda se crê a “consciência jurídica do mundo civilizado”, mas que, na prática, está sujeita a reproduzir uma série de estruturas de desigualdade, poder e exploração em nível transnacional.

Também os avanços recentes no campo do direito internacional comparado e da sociologia da profissão jurídica internacional jogaram luz sobre o caráter pretensioso do universalismo.[4] Merece menção o estudo de Anthea Roberts, Is International Law International?, que desbancou a suposição de que o(a)s juristas internacionais operam a partir de um “invisible college of international lawyers, demonstrando se tratar, em realidade, de um “divisible college of lawyers”, fragmentado de acordo com cada tradição nacional e respectivas esferas de influência.[5]

O trabalho de Roberts se destaca por descortinar a suposta neutralidade da “comunidade internacional”, demonstrando o predomínio de certas nacionalidades, padrões (de “diferença, dominação e ruptura”), idiomas, abordagens e mentalidades nas instituições internacionais, universidades e demais locais de produção de conhecimento jurídico internacional. No entanto, parece haver um “ponto cego colonial” em Roberts, na medida em que, sendo seu foco o Primeiro Mundo (e os países membros do Conselho de Segurança da ONU), muitas das conclusões a que chega não apresentam efetivamente novidades ao/à jurista versado(a) na crítica jurídica pós-colonial e de Terceiro Mundo ao universalismo. A verdade é que, em um mundo crivado por desigualdades, é necessário desconstruir esta compreensão romântica que os internacionalistas têm de si mesmos e do campo como universal, neutro e objetivo. Diante de fenômenos como a concentração de recursos para pesquisa avançada e publicação, maior prestígio de instituições e academias do Norte global, maior participação e representatividade de acadêmicos e juristas do Norte global nas organizações, resta claro que existe uma maior capacidade de algumas nacionalidades para projetar suas abordagens particulares como universais, estabelecendo a dominação por meio de “regimes de verdade” (expertise tecnocrática) do direito internacional (Kennedy, d’Aspremont).

Por outro lado, é pressuposto que a posicionalidade de um autor ou autora – sua nacionalidade e outras sensibilidades – afeta sua concepção e prática do direito internacional, influenciando na interpretação e aplicação de normas, e determinando o próprio caráter exclusivo ou inclusivo, pluralista ou anti-pluralista da universalidade. Esta posicionalidade tende a se refletir em abordagens singulares, mais ou menos situadas, localizadas, regionalizadas, nacionalizadas da disciplina.

É deste modo que se pode falar em um “eixo”, oscilante entre dois polos: de um lado, o universalismo, representação de projeto global de direito internacional desnacionalizado, língua franca da comunidade internacional, cosmopolita, multilateral, neutro, técnico, de escopo universal (Jus Cogens, erga omnes). Este pode variar entre o “universalismo fiel”, irredutível, hegemônico, anti-pluralista, e um universalismo plural, multicultural, “concreto”. No polo oposto, o particularismo pode ser entendido como uma apropriação estratégica dos institutos do direito internacional clássico, por parte dos operadores do direito (semi)periféricos, em benefício de interesses nacionais ou regionais.[6]

No mundo em desenvolvimento, abordagens universalistas tendem a assimilar e a reproduzir localmente as normas globais universais produzidas em outros espaços (Norte Global). Em contrapartida, abordagens particularistas tendem a fazer uma apropriação estratégica de institutos como a soberania a partir de uma perspectiva histórica e geopoliticamente situada.

Com o enfraquecimento da lógica nacional-desenvolvimentista e modernizadora do século XX e advento da racionalidade neoliberal pós-Guerra Fria, a pretensão de universalidade do direito internacional foi reforçada, em um movimento de retorno ao direito natural que assumiu como valores universais a democracia e os direitos humanos, mas também o mercado global e a competição. Com Gordon: “Universalism, in short, now describes the ubiquity of law in an advancing global marketplace, pervasive in its global reach”. Como resultado, passaram a predominar abordagens mais tradicionais da disciplina, voltadas para a resolução de problemas e para as demandas do mercado; reforçou-se o caráter pragmático e tecnocrático dos operadores do direito internacional, vistos cada vez menos como “estadistas” e cada vez mais como técnicos, experts, managers, agentes desnacionalizados facilitadores do processo de globalização.

Entre universalismo e particularismo: a abordagem brasileira do Direito Internacional

E o Brasil? Como a produção brasileira aparece neste cenário? Considerando o caráter (semi)periférico do Brasil, qual a medida da influência desta posicionalidade nos autores e nas obras analisadas, e na concepção de direito internacional que elas professam? Em que medida se reflete a posicionalidade dos autores enquanto brasileiros, latino-americanos ou terceiro mundistas? É possível falar em uma abordagem tipicamente brasileira do Direito Internacional? Ou, em sentido oposto, está o direito internacional ensinado e aplicado no Brasil alinhado ao universalismo eurocêntrico produzido nos grandes centros? Na resposta a estes questionamentos pode estar o caminho para compreender como são formados(a)s o(a)s juristas brasileiro(a)s e como este(a)s tendem a pensar o direito internacional. Analisamos os principais manuais de Direito Internacional do Brasil para responder estas perguntas.

A questão do universalismo/particularismo aparece nos manuais de diferentes modos: na escolha dos temas (framing), na ênfase em elementos de história regional/nacional da disciplina, reflexões sobre temas regionais como direito internacional americano, integração, desenvolvimento, sobre a questão da internalização do DI no ordenamento nacional, entre outros. Também no uso das fontes do DI pode se revelar um caráter mais ou menos nacionalizado, mais ou menos universalista da abordagem: a autoridade dos argumentos lançados costuma ser fundamentada em tratados multilaterais, regionais ou bilaterais? Em casos domésticos, estrangeiros ou internacionais? Em autore(a)s nacionais (brasileiros), latino-americanos, do Sul ou Norte global? No idioma português, espanhol, inglês ou francês?

Trata-se aqui de um ‘chamado à autorreflexão’ sobre a natureza e o sentido da profissão do(a) jurista internacional brasileiro(a).9 Entendemos que o caminho para a superação das desigualdades globais e para a construção de uma universalidade realmente inclusiva, situada, representativa de todos os povos e classes passa necessariamente por esta autorreflexão. É neste sentido que apresentamos os dados que seguem.

Resultados

IDIOMAS MAIS UTILIZADOS NA SOMATÓRIA DOS MANUAIS

Além dos resultados colhidos já apresentados, é possível analisar, quanto aos idiomas das obras citadas, que a presença do francês chama a atenção, com 33,8% da média das referências de todos os manuais (o português aparece em primeiro (38,7%) e o inglês em terceiro, com 21,2%). Em Amaral Jr., Rezek e Carreau/Bichara, respectivamente, 68,79%, 54,39%, e 69,71% de todas as obras citadas estão no idioma francês.

Uma visão geral sugere que, mesmo apresentando relativo grau de nacionalização em alguns casos, a produção brasileira tende a estar alinhada a visões universalistas, tradicionais e eurocêntricas da disciplina. Alguns manuais apresentaram característica de um “universalismo fiel” (Acciolly/Nascimento/Casella), enquanto outros (Carreau/Bichara, Varella, Salem Nasser) aparecem como universalistas com tendências ao particular (referências esparsas ao DI nacional/regional). Uma outra categoria intermediária compreende obras de caráter mais nacionalizado em termos de fontes, mas que ainda operam a partir de uma lógica eurocêntrica, de importação e assimilação do universal (Rezek, Sidney Guerra, Mazzuolli, Amaral Jr.).

Há ainda autores que abordam a disciplina a partir de uma ótica mais voltada ao Direito Constitucional (Husek), e outros que, inseridos na lógica comercial de apostilas para concurso público, apresentam visão mais pragmática/burocrática, pouco teórica e pouco crítica da disciplina (Varella). Por fim, em outro polo, encontramos a obra de Mello, que apesar do predomínio de referências europeias, conserva forte viés particularista, com foco em temas como história e integração regional, direito internacional americano e direito internacional do desenvolvimento.

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[1] Geoff Gordon. Universalism. In: Jean d’Aspremont, Sahib Singh (eds), Concepts for International Law. Edward Elgar Publishing, 2019.

[2] Anne Orford, Embodying Internationalism: The Making of International Lawyers. Australian Year Book of International Law, v. 19, 1998.

[3] Fabio Morosini; Michelle Ratton Sanchez Badin; Arthur Roberto Campella Giannattasio. Direito Internacional: Leituras Críticas, Almedina, 2019.

[4] Anthea Roberts, Is International Law International? Oxford University Press, 2017; Jean d’Aspremont, Comparativism and Colonizing Thinking in International Law. SSRN Electronic Journal, 2020; Jean d’Aspremont, Tarcísio Gazzini, André Nollkaemper, Wouter Werner. International law as a profession. Cambridge University Press, 2017; Gleider Hernández. E Pluribus Unum? A Divisible College?: Reflections on the International Legal Profession. European Journal of International Law, v. 29, n. 3, p. 1003–1022, 2018; David Kennedy. A World of Struggle: How Power, Law and Expertise shape Political Economy, Princeton University Press, 2018; Jan Klabbers. The Roberts Challenge. Boston University Law Review, v. 99, n. 5, p. 5–8, 2019. Arnulf Becker Lorca. International law in Latin America or Latin American international law? Rise, fall, and retrieval of a tradition of legal thinking and political imagination. Harvard International Law Journal, v. 47, n. 1, p. 283–305, 2006

[5] Anthea Roberts, 2017, p. 2.

[6] Arnulf Becker Lorca, Mestizo International Law: A Global Intellectual History 1842–1933 (Cambridge University Press 2015); Liliana Obregón, ‘Regionalism Constructed: A Short History of “Latin American International Law”’, ESIL Conference Paper Series (2012).

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