As medidas cautelares emitidas pela Corte Internacional de Justiça no caso entre Ucrânia e Rússia e a Convenção contra Genocídio

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A Corte Internacional de Justiça (CIJ), principal órgão judiciário da Organização das Nações Unidas, emitiu no dia 16 de março de 2022 ordem processual outorgando medidas cautelares (provisórias/provisionais/conservatórias) na controvérsia sobre as Alegações de Genocídio sob a Convenção sobre Prevenção e Punição do Crime de Genocídio (Ucrânia v. Federação Russa). Em síntese a CIJ determinou que

  • A Federação Russa deve suspender imediatamente as operações militares iniciadas em 24 de fevereiro de 2022 no território da Ucrânia, por 13 votos a 2;
  • A Federação Russa deve garantir que quaisquer unidades militares ou armadas irregulares que possam ser por ela dirigidas ou apoiadas, bem como quaisquer organizações e pessoas que possam estar sujeitas ao seu controle ou direção, não tomem medidas para promover as operações militares referidas no ponto acima, por 13 votos a 2;
  • Ambas as Partes devem abster-se de qualquer ação que possa agravar ou estender a controvérsia perante a Corte ou dificultar sua resolução, por unanimidade.

A decisão da Corte foi além da demanda ucraniana, a qual se limitava a operações militares operações militares justificadas pela Rússia a partir da prática de suposto genocídio. Ademais, foi uma decisão bastante célere. No passado, a Corte emitiu medidas cautelares em menos de 24 horas. Em outros dois casos recentes, a Corte levou pouco mais de dois meses para emitir uma decisão provisória – um deles envolvendo o Genocídio dos Rohingya. Em menos de vinte dias do depósito da petição inicial, a ordem de medidas cautelares do caso Alegações de Genocídio ganhou corpo e já reverbera nos discursos jurídicos envolvendo o conflito entre Rússia e Ucrânia. A linguagem usada pela Corte, sua celeridade, e a consonância de algumas opiniões individuais parecem revelar um  afinamento em relação ao seu papel como órgão de solução de controvérsias, mas também enquanto responsável pela manutenção da paz e seguranças internacionais.

Nesse ensaio, exploro os argumentos utilizados pela CIJ para emitir sua decisão, bem como chamo atenção para outras pronúncias feitas pela Corte, a título de obiter dicta, as quais merecem destaque pelo seu significado para a construção dos argumentos jurídicos esgrimidos no atual conflito. Inicio pelo exame da posição ucraniana e da defesa russa, para então enfrentar os argumentos da Corte. Após algumas reflexões sobre o significado dessa decisão – certamente histórica – termino o texto questionando qual papel eventualmente caberia ao Brasil e a outros Estados no processo judicial.

A ação ucraniana

A tese central do caso ucraniano é que a justificativa da Rússia de que um genocídio estaria ocorrendo na região de Donbass não poderia legitimar o uso da força armada em seu território, nem justificar o reconhecimento de novos Estados. O centro de gravidade do caso é a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (‘Convenção contra o Genocídio’ ou ‘CcG’), de 1948. Esse tratado internacional não apenas estabelece todas as obrigações as quais os Estados estão submetidos em relação ao não cometimento de genocídio, sua prevenção e quais condutas podem configurá-lo, mas também oferece jurisdição à Corte Internacional de Justiça para decidir sobre controvérsias “relativas à interpretação, aplicação ou execução da presente Convenção” (Art. IX). Em suma, o tratado dá poder à Corte da Haia para decidir uma ampla margem de questões – desde que estejam relacionadas à Convenção contra o Genocídio. Outras análises sobre a ação ucraniana podem ser encontradas nesse blog, bem como as questões relativas ao Tribunal Penal Internacional e à Corte Europeia de Direitos Humanos.

Todavia, a disputa não contou com a presença de ambas as partes durante os procedimentos orais. “Eles não estão aqui, eles estão no campo de batalha. É assim que a Rússia resolve suas controvérsias”, reprovou o representante da Ucrânia durante as audiências relativas às medidas cautelares. As audiências estavam previstas para 7 e 8 de março, mas, em comunicado, Rússia informara que não participaria das audiências – um direito reconhecido aos litigantes. A Corte deliberou em 9 dias.

Em breve síntese, a Ucrânia construiu seu argumento de maneira invertida. Em vez de afirmar a ocorrência de violações da Convenção contra o Genocídio, a Ucrânia tentou demonstrar que nenhum tipo de genocídio ocorria em solo ucraniano, sobretudo nas regiões de Luhansk e Donetsk.

Mas por que, no fim das contas, estaria a Ucrânia empenhada em demonstrar que um genocídio não ocorrera? Porque este seria um dos principais – senão o principal – argumento jurídico empregado por Moscou para justificar o uso da força em território ucraniano. Contudo, ao se examinar quais foram os pedidos nas medidas cautelares, verifica-se que a Ucrânia não deseja apenas uma declaração qualificando a alegação russa como descabida. Segundo os advogados do time ucraniano, o uso da Convenção pela Rússia poderia ser qualificado como “de má fé”, em violação da Convenção, e que todo ato cometido sob essa alegação também estaria contaminado. Requer, assim, que as ações militares russas relativos à justificativa de genocídio cessem.

A defesa russa

A Corte Internacional de Justiça disponibilizou em seu website manifestação do governo de Moscou datada de 7 de março de 2022. Trata-se da mais articulada defesa jurídica da Rússia apresentada até então concernente ao conflito. Apesar de circunscrita aos limites do caso específico perante a Corte da Haia – cujo centro de gravidade é a Convenção contra o Genocídio de 1948 – há na manifestação argumentos que merecem ser examinados.

A defesa russa parte do pressuposto de que a Corte Internacional de Justiça não teria jurisdição sobre a controvérsia, uma vez que aquela não se trata, na realidade, de uma disputa envolvendo a Convenção contra o Genocídio. Segundo Moscou, o caso é apenas uma tentativa mascarada de julgar questões da legitimidade do uso da força da Rússia na Ucrânia e a declaração de independência das regiões de Luhansk e Donetsk. Vez que a competência da Corte para decidir esse caso se assenta unicamente sobre a Convenção, por ela estabelecer em seu artigo IX que as controvérsias sobre o tratado serão submetidas à CIJ, segundo Moscou não haveria base de jurisdição em razão da matéria e o caso deveria ser dispensado.

Mas a manifestação russa revela mais do que apenas a defesa no caso. Por um lado, Moscou parece diminuir o peso dado às alegações de genocídio feitas no discurso do Presidente Putin em 24 de fevereiro. Moscou tenta fazer emplacar a (difícil) tese que a mera referência ao termo “genocídio” não significa invocar a Convenção discutida. Isso revela que a grande justificativa para o uso da força pela Rússia encontra-se na ideia de legítima defesa coletiva, segundo o artigo 51 de outro tratado, a Carta da ONU – além de também se basear em uma frágil menção à ideia de legítima defesa preventiva.

Em teoria, o uso da força por convite constituiria uma defesa mais palatável, vez que existe alguma prática estatal (discutível) a respeito, dentro da lógica da legítima defesa coletiva. Qual é o grande problema da tese de uso da força por convite no presente caso? É o fato de basear-se na tênue autoridade de supostos Estados precariamente constituídos e no convite de suas frágeis autoridades, uma vez que os Estados foram reconhecidos até então somente pela Rússia, enquanto a comunidade internacional rechaçou esse reconhecimento através de Resolução da ONU. Ainda que o Parlamento russo tenha ratificado tratados de assistência mútua com as nascentes repúblicas, tais acordos teriam apenas efeitos inter partes e deveriam estar submetidos às lógicas das regras peremptórias do direito internacional relativas ao uso da força.

Mas a Corte não se manifestou diretamente – e não deveria – sobre a legalidade da invasão russa.

As medidas da Corte

Como se sabe, para a emissão de medidas cautelares nos termos do artigo 41 do Estatuto, é necessário que sejam preenchidos alguns requisitos desenvolvidos na própria jurisprudência da Corte: (a) jurisdição prima facie; (b) a plausibilidade dos direitos e sua conexão com as medidas requeridas; (c) risco de dano irreparável e urgência. A formulação desses requisitos por vezes pode variar, e em determinados momentos, a depender dos argumentos solevados, a Corte se sente mais ou menos inclinadas a deter-se sobre outra questão como, por exemplo, a existência de uma controvérsia.

(a) Quanto à jurisdição prima facie, ou seja, a verificação preliminar de que a Corte possuiria jurisdição para decidir o mérito do caso, a Corte basicamente concentrou-se em dois argumentos. A existência de uma controvérsia, e a base para a jurisdição, essencialmente centrada no artigo IX da Convenção contra o Genocídio.

Esta parte foi fundamental para o raciocínio da Corte vez que a alegação da Rússia sustentava-se sobre a inexistência de uma controvérsia em relação à Convenção contra o Genocídio. Para superar esta barreira, a Corte identificou uma série de declarações russas alegando a prática de genocídio. Em seguida, adotou uma postura bastante liberal em relação à necessidade de expressa menção à Convenção. Entendeu que bastaria que as trocas entre as partes referiram-se ao tema do tratado ou da cláusula jurisdicional (para. 44). Assim sendo, existindo a possibilidade do vínculo jurisdicional (Art. IX CcG) e uma controvérsia, estaria cumprido o requisito da jurisdição prima facie.

(b) Toda a lógica regendo o poder da Corte em emitir medidas cautelares baseia-se na proteção dos direitos que a Corte decidirá a respeito no mérito – daí a necessidade de investigar a plausibilidade de direitos, um argumento bastante recente na jurisprudência da Corte. Ademais, deve existir uma conexão entre esses direitos e as medidas requeridas perante a Corte. Nesse ponto, o raciocínio da Corte gravitou em torno da obrigação do Artigo I da Convenção contra o Genocídio, segundo a qual Estados devem prevenir e punir o crime de Genocídio.

Contudo, a Corte recordou que para prevenir e punir o genocídio, existem diversos meios institucionais, e recordando sua jurisprudência no caso Genocídio Bósnio (Bósnia e Herzegovina v. Sérvia e Montenegro) “todo Estado só pode agir dentro dos limites permitidos pelo Direito Internacional” (para 57). Aqui, a Corte preferiu não adentrar numa afirmação de que qualquer ato russo seria contrário aos limites do Direito Internacional. Fez uma observação sobre os princípios da Carta (Art. 1. C.ONU) e observou que “a Corte não possui provas substanciando a alegação da Federação Russa que genocídio ocorreu no território ucraniano” (para. 59). Ainda assim, a Corte asseverou de forma incisiva que, à luz dos objetivos e propósitos da Convenção para a prevenção e punição do crime de genocídio, é duvidosa a existência de uma autorização para uso da força unilateral.

Concluiu a Corte que “A Ucrânia tem o direito plausível de não ser submetida a operações militares da Federação Russa com o objetivo de prevenir e punir um suposto genocídio no seu território.” (para. 60).

(c) Para comprovar a urgência e possibilidade de dano irreparável aos direitos plausíveis da Ucrânia, a Corte deu ênfase especial à Resolução da Assembleia Geral de 2 de março de 2022; em especial às considerações da Assembleia sobre as mortes de civis, a crise humanitária, ataques a alvos não militares como hospitais e grupos vulneráveis. É particularmente digno de nota que a Corte use como fundamento da urgência outro documento do sistema ONU lidando com o conflito. Se em alguns momentos há quem diminua o valor de uma resolução da Assembleia Geral, no caso em tela a resolução provou-se fonte importante de legitimidade das ações da corte, bem como ancoradouro no requisito da urgência e dano irreparável.

Preenchidos os requisitos processuais para a emissão de medidas, a Corte então tratou de defini-las, recordando sua jurisprudência de que não necessariamente está obrigada a emitir as medidas requeridas. Este foi o caso, porquanto determinou medidas mais amplas – e decisivas – do que aquelas requeridas pela Ucrânia.

Haveria algo nas entrelinhas?

Acusada no passado de silêncio diante de graves situações, de inércia perante as grandes potências e até mesmo de esquivar-se em argumentos processuais, a decisão de medidas cautelares da Corte Internacional de Justiça mostra uma Corte decidida a desaprovar a operação militar russa. A Corte observou que a “não aparição de uma das partes possui um impacto negativo na boa administração da justiça, vez que priva a Corte da assistência que a parte poderia ter oferecido a ela” (para. 21), assim como reforçou o fato de estar “profundamente preocupada com o uso da força pela Federação Russa na Ucrânia, o que levanta questões muito sérias de direito internacional.” (para. 18).

Sabe-se quais são os riscos de decisões particularmente duras contra Estados, assim como a Corte tem em mente que o cumprimento de suas decisões – especialmente em caráter preliminar – depende quase exclusivamente do Estado envolvido. O recurso ao Conselho de Segurança não é uma opção à mesa. O risco de desrespeito à medida cautelar é alto enquanto um acordo não for chegado pelas partes. Ainda assim, a Corte optou por ultrapassar os pedidos ucranianos, não conectando a suspensão das atividades militares às alegações de genocídio.

A razão pelas quais a Corte o fez são bastante claras. De forma contrária, bastaria à Rússia continuar em sua estratégia de alegar a legalidade do uso da força sem conexão com a Convenção do Genocídio (algo que apareceu em sua manifestação, mas também na curiosa declaração do Presidium do Ramo Russo da International Law Association). A estratégia da Corte de conceder medidas mais amplas, talvez criticável em rigorismo, provou-se bem-vinda para a finalidade última de acrescentar adicional camada de juridicidade a todo o conflito.

Esse debate aparece nas entrelinhas das opiniões individuais dos juízes. Em relação aos juízes que votaram contra, o juiz russo Gevorgian enfatizou em sua opinião que as razões que levavam ao seu dissenso parcial eram firmadas em “puramente por um fundamento jurídico substancial”. Já a juíza chinesa Xue, também voto contrário em relação às duas primeiras partes operativas, adotou o argumento de que a Corte estaria decidindo sobre a legalidade do uso da força, e não sobre a Convenção do Genocídio, inexistindo conexão entre ambos. Terminou seu voto colocando em dúvida a efetividade de uma medida do gênero no meio de um conflito.

Mas a questão da dubiedade dos argumentos da Corte não aparecem nos votos contrários. O juiz Bennouna registrou sentir-se compelido a votar com a maioria, diante da situação trágica na Ucrânia, mas que não se sentia convencido que a Convenção do Genocídio poderia ser usada de tal forma pela Ucrânia. Já o juiz ad hoc Daudet endossou substancialmente a ordem, e criticou o terceiro ponto do dispositivo, indicando que as medidas deveriam ser apenas direcionadas à Rússia, dada a agressão caracterizada pela Assembleia Geral. Apenas o juiz Robinson tentou explicar a relação entre a medida concedida e os pedidos, enfatizando a necessidade de não agravamento da controvérsia.

É possível ler nas entrelinhas das frases cuidadosamente escolhidas pela Corte e nas opiniões individuais mais mensagens do que uma simples ordem de medidas provisórias pode decretar. Apesar daquilo que se pode tentar ler nas entrelinhas, esses argumentos não foram suficientes para derrubar o caso prima facie. É um problema jurisdicional menor, provisório. Todas essas questões serão muito provavelmente levantadas no julgamento de mérito ou em objeções preliminares à jurisdição da Corte. O esmero da diplomacia de Moscou perante os casos perante a Corte sempre foi alto. Em relação a esse caso, será significativo indício de quanto a Rússia está ainda engajada no sistema judicial da ONU.

 Resta a conclusão que a manifestação do principal órgão judicial da ONU contribui em termos jurídicos a solapar uma defesa para os atos de uso da força ilegítimo que ocorrem em território ucraniano. Ao mesmo tempo em que une-se às vozes que clamam o fim do conflito.

E o Brasil?

Diante da decisão da Corte, todo e qualquer Estado que apoie a continuidade da operação militar russa estará violando o direito internacional. Essa é também uma obrigação decorrente da Resolução da Assembleia Geral de 2 de Março de 2022, a qual contou com o voto brasileiro. O apoio dos Estados à decisão da Corte é fundamental para reforçar alguma espécie de rule of law no Direito Internacional. Poder-se-ia questionar se não seria o caso de uma nota do governo brasileiro tomando ciência e acolhendo a decisão da Corte da Haia.

Ainda assim, poderá haver um papel especial para o Brasil no futuro processo perante a Corte já que, tal qual muito se discutiu no caso do genocídio entre Gâmbia e Myanmar (também nesse blog), poderia intervir como terceiro interessado, nos termos do artigo 63 do Estatuto da Corte. As chances de uma intervenção processual do gênero são baixas, bem como pode-se questionar quão efetivamente benéficas elas seriam ao processo – não apenas porque não parecem alinhar-se a uma certa posição de neutralidade brasileira, mas porque o Brasil não tem o costume de intervir em processos judiciais internacionais. Contudo, uma intervenção segundo o artigo 63 seria muito bem-vinda para o Brasil esposar a sua visão sobre a Convenção contra o Genocídio e o uso que dela tem sido feito nos tempos atuais.

  • Professor de Direito Internacional Público da Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais CNPq/UFMG. Membro da Diretoria da ILA-Brasil.

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