Intervenção no caso Gambia v. Myanmar?

Em dezembro de 2019, a Grande Sala de Justiça da Corte Internacional de Justiça (C.I.J.) recebia as audiências das medidas provisórias do caso Gâmbia v. Myanmar. Por enquanto, apenas a demanda inicial e aspectos preliminares tocantes às medidas provisórias foram analisados pela C.I.J. Contudo, existe a possibilidade de que mais procedimentos incidentais se multipliquem nos próximos meses. Um dos procedimentos possíveis é a intervenção de Estados terceiros (cf. aqui e aqui).

Concretamente, três Estados manifestaram, através de notas diplomáticas, a sua propensão a intervir no caso: Canadá, Países Baixos e Maldivas. A questão que se coloca nesse contexto é: caso aconteça, quais os caminhos possíveis para que esses Estados intervenham no processo? Este ensaio procura explorar de forma breve os caminhos processuais disponíveis a eles, analisando as condições a serem observadas, as diferentes consequências e implicações processuais, e as dificuldades de cada cenário.

O Estatuto da Corte possui dois dispositivos sobre intervenção, os artigos 62 e 63, (complementados pelos artigos 81 a 86 do Regulamento da Corte) abrindo portas a três caminhos processuais para a intervenção, caminhos estes baseados na jurisprudência da Corte na matéria e não no texto literal do Estatuto e Regulamento. Artigo 62

Sob a égide do artigo 62, um Estado pode intervir em um caso contencioso desde que demonstre o seu interesse de natureza jurídica no mesmo. A jurisprudência da C.I.J. desenhou uma distinção entre, de um lado, uma intervenção sob o artigo 62 enquanto não-parte ao processo, e, de outro, uma intervenção enquanto parte ao processo.

O aspecto mais relevante desta distinção reside na necessidade de demonstrar ou não um vínculo jurisdicional em relação aos outros Estados parte ao processo. De fato, o Estado interventor almejando a intervenção enquanto parte precisaria respeitar o princípio do consentimento e da reciprocidade. Em termos processuais seria necessário que o interventor pudesse, por exemplo, levar o caso à Corte mesmo numa instância independente, através de um dos meios acordando competência a Corte, quais sejam uma cláusula compromissória, a cláusula facultativa do artigo 36 §2 do Estatuto, um compromis ou pelo instituto do forum prorogatum. O interventor precisa, assim, demonstrar que possui uma base conferindo jurisdição à Corte sobre sua controvérsia em relação aos outros Estados. Ainda cumpre à Corte esclarecer se esse vínculo jurisdicional seria exigido entre o interventor e os dois Estados parte ao processo, ou apenas em relação ao Estado fazendo parte da defesa.

Se um Estado solicita a intervenção enquanto parte ao processo, é necessário demonstrar seu interesse de natureza jurídica, e, além disso, uma base de jurisdição. Já para intervir enquanto não-parte, o Estado não precisa de uma base de jurisdição, mas apenas um interesse de natureza jurídica no caso.

A segunda distinção essencial reside no fato de que o interventor que se tornasse parte no processo ver-se-ia vinculado pela força obrigatória da decisão sob a égide do artigo 59 do Estatuto. A contrario, um Estado intervindo enquanto não-parte não será vinculado pela decisão e pelo artigo 59.

Uma intervenção enquanto parte ao processo nunca ocorreu na C.I.J. O único pedido deu-se pela Honduras no caso da Disputa Territorial e Marítima entre Nicarágua e Colômbia em 2011, o qual não logrou êxito. Desta forma, um exemplo prático de intervenção enquanto parte ainda não existe.

É essencial destacar que esta distinção é jurisprudencial. Em nenhum momento o Estatuto ou o Regulamento da C.I.J. estabelecem a diferença entre a intervenção enquanto parte e não-parte pelo caminho do Artigo 62.

O artigo 81 do Regulamento exige a demonstração de uma base de jurisdição por todo Estado almejando intervenção com fundamento no Artigo 62. No entanto, o artigo 81 precisa ser interpretado à luz da jurisprudência, isto é, a exigência de uma base de jurisdição é afastada no caso de pedidos de intervenção enquanto não-parte.

A distinção jurisprudencial entre intervenção enquanto não-parte e enquanto parte foi estabelecida na sequência de uma discussão relativamente difícil. A Corte não autorizou a intervenção de Malta em 1981 no caso da Plataforma Continental entre Tunísia e Líbia. A Corte também não autorizou a intervenção da Itália no caso da Plataforma Continental entre Líbia e Malta em 1984, em razão do escopo do objeto da intervenção tal qual qualificado pela Itália. Apenas no ano de 1990 a C.I.J. autorizaria a intervenção pela primeira vez, sob a égide do artigo 62, quando a Nicarágua formulou um pedido para intervir no caso da Delimitação Marítima entre El Salvador e Honduras. Neste caso, a Corte desenha a distinção entre intervenção enquanto parte e não-parte. A Corte confirmou essa distinção jurisprudencial entre as modalidades de intervenção sob a égide do artigo 62 no §31 da decisão sobre o pedido de intervenção da Grécia no caso das Imunidades Jurisdicionais dos Estados, entre Alemanha e Itália.

Na hipótese de intervenção no caso Gâmbia v. Myanmar, considerando que o Canadá, os Países Baixos e as Maldivas não formularam reservas ao artigo IX da Convenção do Genocídio de 1948, que confere competência à Corte para a solução de controvérsias relativas à interpretação e aplicação da Convenção, ambos os caminhos (enquanto não-parte ou enquanto parte) são teoricamente possíveis.

O interesse de natureza jurídica deveria ser demonstrado pelos Estados almejando intervenção em ambos os casos (enquanto não-parte ou enquanto parte). Em princípio, Canadá, Países Baixos e Maldivas, assim como todos os outros 149 Estados partes à Convenção do Genocídio, teriam interesse jurídico, tendo em vista o reconhecimento do caráter erga omnes partes das obrigações contidas na Convenção, por exemplo, no caso entre Bélgica e Senegal de 2012. As obrigações da Convenção do Genocídio são devidas a todos os Estados parte em seu conjunto. Um Estado não precisa ser, por exemplo, especialmente afetado pela violação.

Além disso, vale observar que, pela via do direito costumeiro, todos os Estados teriam em tese um interesse jurídico em ver respeitada a proibição do genocídio. A C.I.J. admitiu que a proibição da genocídio cria obrigações oponíveis erga omnes desde 1970 no conhecido caso Barcelona Traction, entre Bélgica e Espanha. De fato, esse caso pode ser indicado como um locus classico na matéria, uma vez se tratando da primeira vez em que a Corte reconhece expressamente que algumas obrigações são devidas a determinados sujeitos de direito internacional, enquanto que outras são devidas à comunidade internacional como um todo, sendo, neste ínterim, oponíveis erga omnes e podendo ser reclamadas por qualquer Estado. Além disso, a proibição do genocídio figura entre as regras do direito internacional amplamente reconhecidas como jus cogens (cf. aqui, aqui, aqui).

Artigo 63

A terceira possibilidade de intervenção representa uma via processual completamente diferente daquela prevista no artigo 62. Segundo o artigo 63, um Estado tem a faculdade de intervir em um processo quando está em jogo a interpretação de um tratado do qual este Estado também é parte. Contrariamente às hipóteses anteriores, um potencial interventor não precisa provar um interesse de ordem jurídica caso opte pela intervenção do artigo 63. É necessário apenas que o Estado demonstre ser parte do tratado em questão e cumpra os requisitos formais do artigo 82 do Regulamento. Além disso, este tipo de intervenção terá seu escopo limitado à interpretação do tratado em questão. O Estado interventor à luz do artigo 63 será vinculado à interpretação dada pela Corte exclusivamente em relação aos dispositivos do tratado objeto do julgamento. Por exemplo, no caso da Caça à Baleia na Antártica, opondo a Austrália ao Japão, a Nova Zelândia depositou um pedido de intervenção sob a égide do artigo 63 e participou do caso no tocante à interpretação da Convenção Internacional de 1946 para Regulamentação da Pesca da Baleia, da qual a Nova Zelândia também é parte.

Observa-se ao longo da jurisprudência da C.I.J. relativa escassez de casos de intervenção com fundamento no artigo 63 (um pedido não logrou êxito na C.P.J.I., três pedidos sem êxito na C.I.J. e apenas um pedido bem sucedido supramencionado da Nova Zelândia em 2014). Hugh Thirlway (p. 178) caracteriza este fenômeno como um sintoma da resistência dos Estados de se verem vinculados à interpretação da C.I.J. a dispositivos convencionais, preferindo preservar certa margem de liberdade quanto à interpretação de tratados.

Os Estados partes da Convenção do Genocídio teriam a prerrogativa processual de intervir no caso Gâmbia v. Myanmar com base no artigo 63, tendo em vista que a única base de competência no caso é o Artigo IX da Convenção e que o litígio versará sobre a interpretação da mesma. A vantagem desta via reside no fato de se tratar de uma prerrogativa, podendo ser exercida sem a necessidade de apreciação pela C.I.J. de qualquer interesse jurídico. Pode-se afirmar, assim, ser a via de acesso mais simples, na hipótese em que, como é o caso, o Estado seja parte a um tratado sendo interpretado na espécie.

Uma intervenção de terceiros sem precedentes?

É necessário acompanhar de perto os desenvolvimentos no caso Gambia v. Myanmar nos próximos meses para verificar se as especulações quanto à intervenção verão de fato a luz do dia. Enquanto isso, a análise jurídica aponta para uma certeza: a intervenção é teoricamente viável no caso e há a possibilidade de que os Estados encontrem portas abertas tanto pela via do Artigo 62, quanto pelo Artigo 63. A decisão quanto ao escopo do pedido de intervenção cabe, obviamente, aos próprios Estados. Além da questão jurídica, interesses políticos e de estratégia contenciosa também estarão em jogo. Caso um pedido de intervenção enquanto parte fosse formulado, a Corte teria a oportunidade de embarcar em águas até agora inexploradas e clarear os perímetros desta arena processual.

  • Doutoranda em Direito Internacional Universidade de Paris II Panthéon-Assas Pesquisadora do Max Planck Institute for International Procedural Law

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