Um ano de conflito armado na Ucrânia: as violações sob as lentes do Direito Internacional Humanitário

Em 24 de fevereiro de 2023 completou-se 1 ano desde que as forças armadas russas invadiram o território da Ucrânia, naquilo que foi inicialmente chamado pelo governo de Moscou de “operação militar especial”. O esforço continuado do Presidente Putin em evitar a todo custo, e até proibir o uso da palavra “guerra”, foi visto com estranheza pela comunidade internacional, uma vez que o mundo testemunhava naquela data o início de uma ofensiva em larga escala, conduzida através de bombardeios, colunas de blindados e tropas adentrando o território tanto ao norte, quanto ao leste e sul. Assim, é diante desse cenário de condução de hostilidades, que o Direito Internacional Humanitário (DIH) se mostra no centro das discussões acerca da legalidade das ações tomadas pela Rússia e Ucrânia, mostrando suas possibilidades, mas também falhas estruturais.

A intenção russa era impor uma rápida derrota à Ucrânia, o que acabou não acontecendo. O aparato bélico de Moscou enfrentou diversos problemas logísticos e operacionais logo no início do conflito, além de uma inesperada e firme reação ucraniana – consideravelmente reforçada pelo auxílio de seus aliados ocidentais. Hoje, o arrastar da guerra produz um cenário de brutalidades, vistas sob as lentes do DIH como um lamentável palco de violações aos seus documentos mais caros.

Nessa perspectiva os regimes jurídicos aplicáveis especificamente a esta guerra, destinados a limitar a condução das hostilidades, são aqueles que incidem sobre os Conflitos Armados Internacionais (CAIs), previstos nas Convenções de Genebra de 1949 e, especificamente, no seu Protocolo Adicional I, sendo que tanto a Rússia quanto a Ucrânia são partes desses tratados. Além disso, há também normas costumeiras, notadamente aquelas materializadas nos Tratados de Haia e seus Regulamentos, as quais são consideradas amplamente aceitas pela comunidade internacional e, portanto, obrigatórias a todas as partes envolvidas.

Adicionalmente, atenção especial deve ser dada à incidência da IV Convenção de Genebra, isso porque o referido documento se presta a proteger pessoas sob ocupação na seção 3 do seu 3° título. Sua aplicação, conforme define o Artigo 2, se dará em todos os casos de ocupação total ou parcial do território de uma Parte Contratante, ainda que não encontre resistência militar. Esse status de ocupação parcial é verificado no leste da Ucrânia, sobretudo na região do Donbass, onde estão localizadas as autoproclamadas Repúblicas de Donetsk e Lugansk, que foram declaradas pela Rússia, ao lado de Kherson e Zaporizhzhia, parte do seu território poucos dias antes da invasão. Hoje a Rússia exerce verdadeiro controle sobre essas partes do leste. 

Decorre ainda dessa realidade o fato de que a potência ocupante tem a responsabilidade e o dever de proteger os civis sob o seu jugo, fazendo-o em estrita observância ao regime especial disposto na IV Convenção de Genebra e nos Regulamentos do Tratado de Haia, pois, do contrário, a Alta Parte Contratante estará sujeita a responsabilização por crimes de guerra, caso sejam verificadas graves violações a estes documentos.

Nesse contexto, o relatório elaborado pela Human Rights Watch de 24 de fevereiro de 2023, após um ano de notícias preocupantes, confirmou o esperado: diversas violações ao Direito Internacional Humanitário aconteceram e estão acontecendo no conflito, demonstrando o descaso às regras atinentes aos conflitos armados, principalmente no que se refere à proteção da população civil. Essa situação suscita discussões acerca da real efetividade das normas de DIH e da sua implementação nos dias de hoje, mas também de como se dariam futuras responsabilizações. Abaixo, destacamos alguns pontos abordados pela organização.

Em relação à proteção de civis, sendo estes considerados aqueles que não fazem parte das forças armadas do Estado ou de grupos armados, destacam-se os ataques indiscriminados, que vêm causando a morte de centenas de pessoas em cidades como Donetsk e Kharkiv, assim como ferindo inúmeras outras, inclusive crianças. Entre essas investidas que causaram inúmeras mortes de civis, encontram-se também os enormes danos causados por bombas e outros projéteis contra a infraestrutura de hospitais e regiões residenciais, ameaçando a segurança da população abrigada na região.

Entre as violações apuradas pela Human Rights Watch, foram identificados cenários ainda mais graves, como aqueles da cidade de Bucha, onde evidências apontam para a ocorrência de execuções sumárias, mortes irregulares, além de desaparecimentos e torturas, crimes esses que se repetem também em outros locais ocupados no sul. Outra violação apurada nas regiões ocupadas é o deslocamento forçado de civis para a Rússia, decorrente de um “processo de segurança” aplicado pelo exército Russo, chamado de “filtragem”.

Segundo o DIH, é uma obrigação das partes envolvidas no conflito realizarem a distinção entre civis e combatentes, bem como entre os objetivos civis e militares, observando assim o Princípio da Distinção e protegendo a integridade da população afetada e seus bens. Nesse aspecto, considera-se que, em caso de dúvida sobre a classificação do indivíduo, este deve ser considerado um civil e protegido como tal – benefício que não tem sido aplicado à população ucraniana pelo exército russo, pois ataques indiscriminados têm acontecido desde o início do conflito, nos quais cidades inteiras são bombardeadas sem qualquer distinção para com os civis. Ademais, tais ataques violam o Princípio da Proporcionalidade, pois a guerra urbana tem causado perda excessiva de vidas civis em relação à vantagem militar concreta e direta prevista pelas forças russas. 

O conflito armado moderno, em cenários urbanos e com novas tecnologias bélicas, é muito mais propício a excessos e violações. Exatamente por ocorrer no meio de cidades, torna-se cada vez mais preocupante o uso de armas com efeitos discricionários, por conta de serem incapazes de distinguir civis de combatentes, ao passo que não são direcionadas a um único objetivo. 

As munições de dispersão (cluster munitions), usadas no caso dos ataques à estação em Kramatorsk e ao hospital em Vuhledar, liberam um grande número de submunições explosivas que se espalham por áreas do tamanho de um campo de futebol ou deixam detritos que agem como minas terrestres, representando, portanto, uma grande ameaça à população civil. Em geral, a comunidade internacional condena o uso desse tipo de munição, sendo as partes da Convenção sobre Munições de Dispersão (2008) obrigadas a, sob nenhuma circunstância, utilizar, fabricar ou desenvolver esse tipo de artefato, com a exceção de Rússia e Ucrânia, países que, assim como Brasil, Estados Unidos e China, não são signatários do documento. Porém, mesmo que os países envolvidos no conflito não tenham assinado a convenção, eles ainda sim devem analisar a legalidade do uso da arma sob os princípios do DIH, sendo uma regra importante a do artigo 57 do Protocolo Adicional I, que em seu parágrafo 2(ii) diz que as partes devem tomar todas as precauções possíveis na escolha dos meios e métodos de ataque com vista a evitar e, em qualquer caso, minimizar a perda acidental de vidas civis, ferimentos em civis e danos a bens civis. Portanto, referindo-se à Cláusula Martens, tudo o que não é proibido não é necessariamente lícito na guerra.

Além disso, as minas terrestres também estão sendo utilizadas pelas forças russas e ucranianas, artifícios que igualmente não distinguem seus alvos, causando ferimentos em civis, impulsionando o seu deslocamento, prejudicando a entrega de ajuda humanitária e impedindo as atividades agrícolas. Nesse sentido, desde 1997 a Convenção de Ottawa proíbe o uso, produção, armazenamento e transferência de minas terrestres antipessoais, entretanto, Rússia e Ucrânia também não são partes do documento. Importante notar que, ainda que não vinculadas à nenhuma das Convenções citadas, Rússia e Ucrânia devem obedecer às regras das Convenções de Genebra, atendendo ao Princípio da Distinção e a proibição de ataques indiscriminados a civis, conforme o Art. 51(4)(5) do Protocolo Adicional I. Nesse caso, a desobediência pode ser considerada crime de guerra pelo Estatuto de Roma (art. 8(2)(b)).

Os bombardeios aéreos em áreas civis também são preocupantes e causaram destruição de residências, shopping centers, hospitais, comércio, escolas e igrejas. A infraestrutura geral das cidades foi tão danificada que o acesso à água potável, energia e medicamentos foram comprometidos. Dito isso, importa observar que, assim como os civis, os bens imóveis e móveis da nação ocupada também devem ser protegidos, a menos que sua destruição seja absolutamente necessária (art. 53, IV CG). Além disso, é dever do Estado ocupante providenciar alimentos, tratamento médico e outros serviços para assegurar a dignidade dos civis durante a ocupação.

Destaca-se que as forças russas saquearam e destruíram diversos artefatos culturais e valiosos durante a ocupação, casos que também podem ser considerados crimes de guerra. No geral, toda a infraestrutura e propriedade privada de territórios são protegidos e a sua pilhagem é proibida pelo DIH (Art. 33(2) da IV Convenção de Genebra e Art. 28 da Convenção de Haia).

Por fim, embora cercos não sejam proibidos, caso uma parte beligerante decida fazê-lo, deve cumprir com as regras de DIH, principalmente quanto às regras de conduta de hostilidades e proteção de civis. O cerco russo à cidade de Mariupol de março a maio de 2022 também evidenciou violações ao DIH. Pessoas desabrigadas no meio do inverno, sem nenhum ou pouco acesso à água, alimentos e assistência médica, bem como novos ataques às construções civis, demonstram a falha das forças russas em garantir a sobrevivência básica e também a passagem segura dos civis que desejassem sair da cidade.

Em suma, o Direito Internacional Humanitário no papel de limitar os efeitos deletérios da guerra, dispõe de uma série de previsões legais destinadas a abarcar situações em que a sua ausência representaria sofrimento desnecessário aos combatentes ou perigo à vida de civis que não tomam parte nos conflitos. Somado a isso, a história e a memória, materializadas nas infraestruturas civis e nos seus símbolos erigidos ao longo do tempo, também não são negligenciadas. Mesmo para a guerra existem regras, a vigilância para que elas sejam devidamente implementadas começa justamente pelas próprias partes em conflito, seja durante ou mesmo antes do seu início, a fim de que sejam tomadas medidas voltadas à sua prevenção. Percebe-se a cada conflito armado, e mais ainda quando se fala em um conflito armado internacional, que o DIH ainda é violado drasticamente, sendo necessário que não só as forças armadas dos países sejam treinadas para conduzir hostilidades respeitando a lei internacional, mas que a população civil também seja ensinada sobre as leis da guerra, para que tenham a capacidade de conhecer seus direitos em tempos de conflitos armados e também de denunciar violações cometidas pelas partes beligerantes. Na verdade, respeitar o DIH deveria ser do interesse militar, porque para além da questão ética, uma vitória conquistada à revelia das normas traria a posteriori mais problemas do que “ganhos”, tendo em vista a possibilidade de, que se bem observado o direito internacional, o país, mas também todos os atores envolvidos em casos de graves violações, enfrentariam ao fim do dia o rigor da justiça mas também a sentença moral da humanidade.

  • Bacharela em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS e técnica da UFRGS IHL Clinic.

  • Advogado, graduado em Direito pela Universidade Católica de Salvador. Membro da Comissão de Direito Internacional do Instituto de Advogados da Bahia e técnico da UFRGS IHL Clinic.

  • Estudante de Ciências Jurídicas e Sociais na UFRGS e Coordenadora-Geral da UFRGS IHL Clinic.

  • Bacharela em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS, Editora-Chefe do Jornal “A Toga”, Editora-Executiva da Revista Res Severa Verum Gaudium e técnica da UFRGS IHL Clinic.

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