Proibição de Armas Nucleares: a primeira reunião das Partes Contratantes do TPAN

Coluna “Desarmamento e Não Proliferação de Armas Nucleares”

A Primeira Reunião das Partes do Tratado de Proibição de Armas Nucleares (TPAN) ocorrerá em Viena de 21 a 23 de junho corrente, com a presença dos 61 países que já ratificaram o instrumento e dos 25 cujo processo de ratificação se encontra em andamento. O Brasil, que ainda não o ratificou, terá que comparecer na qualidade de signatário, e não na de membro pleno. No entanto, tem colaborado na elaboração de documentos preparatórios substantivos em virtude de suas credenciais no campo da não proliferação e desarmamento nuclear. Alguns países que não participaram da negociação do TPAN, como Alemanha, Noruega, Suíça e  Suécia, pretendem comparecer como observadores, o que mostra a relevância do Tratado. Aliás, a eventual adesão de países da OTAN ao TPAN é perfeitamente factível: bastaria a esses países dissociar-se dos compromissos que impliquem a possibilidade de recurso a armas nucleares, sem deixar de fazer parte daquela aliança militar. A Reunião será precedida pela quarta edição da Conferência sobre o Impacto Humanitário das Armas Nucleares. [1]

A Reunião deverá tratar, entre outros temas, das obrigações de assistência a vítimas e remediação ambiental, universalização do Tratado, prazos para eliminação de arsenais nucleares e organização de futuras atividades. Outros assuntos importantes serão a estruturação da autoridade internacional, prevista nos artigos 4.1 e 4.6, para a negociação e verificação da eliminação completa e irreversível do armamento nuclear, e a organização de atividades futuras.   

Ao entrar em vigor em 21 de janeiro do ano passado o TPAN proibiu o desenvolvimento, ensaio, produção, fabricação ou a posse ou armazenamento de armas nucleares por outros meios e estabeleceu obrigações de caráter humanitário decorrentes de seu uso, inclusive assistência às vítimas. É também o primeiro tratado internacional que expressamente veda a seus membros abrigar em seu território armas nucleares pertencentes a terceiros estados, preenchendo assim uma importante lacuna do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP).  

Os esforços para a elaboração de um instrumento multilateral para banir armas atômicas vêm ocorrendo desde a fundação das Nações Unidas.  Em 1997 a Costa Rica propôs uma convenção-modelo e propostas semelhantes foram feitas em 2005 e 2007. 

O Documento Final da X Conferência de Exame do TNP, em 2010, exprimiu a “profunda preocupação” com as catastróficas consequências humanitárias de qualquer uso de armas nucleares e enfatizou a necessidade de que todos os estados observem constantemente as normas de direito internacional aplicáveis, inclusive o direito humanitário [2]. Em dezembro de 2015 a Resolução 70/33 da Assembleia Geral estabeleceu um grupo de trabalho de composição aberta para “tratar substantivamente de medidas, dispositivos e normas legais eficazes cuja conclusão seja necessária para atingir e manter um mundo sem armas nucleares”. O Grupo de Trabalho recomendou a convocação de uma Conferência das Nações Unidas para “negociar um instrumento juridicamente vinculante para proibir armas nucleares, que leve a sua total eliminação”. No ano seguinte a Assembleia adotou a Resolução 71/258 convocando a referida Conferência.

Os países possuidores de armas nucleares rejeitaram essas propostas, arguindo que o desarmamento nuclear é um objetivo de longo prazo que somente pode ser alcançado por um processo “passo a passo”, e reafirmaram os termos do artigo VI do TNP. Os proponentes da negociação do TPAN contra-argumentaram que a proibição de armas nucleares é necessária  precisamente devido ao fato de que durante os 50 anos de vigência do TNP o chamado método “passo a passo” não produziu resultados tangíveis e progressivos em cumprimento das obrigações de desarmamento. 

Alguns aliados dos países nuclearmente armados participaram do Grupo de Trabalho em 2016 mas não trouxeram propostas de definição dos passos necessários para a consecução do objetivo. Somente a Holanda, que abriga armas nucleares [3], compareceu à Conferência negociadora em 2017 e argumentou que o projetado tratado é incompatível com o conceito e doutrina de dissuasão nuclear adotados pela aliança atlântica. Após aproximadamente três meses de deliberações o  texto do novo Tratado foi aprovado [4] e em 20 de setembro de 2017 foi aberto à assinatura. O Brasil foi o primeiro estado a assiná-lo e a Santa Sé o primeiro a ratificá-lo.

Após a adoção do TPAN, os cinco países nucleares reconhecidos pelo TNP declararam formalmente que não pretendem aderir ao novo instrumento e que “não haverá mudança nas obrigações jurídicas de nossos países quanto a armas nucleares. Por exemplo, não aceitamos a alegação de que esse tratado reflita o direito internacional consuetudinário”. Essa declaração teve principalmente o objetivo de evitar que o TPAN venha no futuro a ser considerado parte do direito internacional costumeiro e portanto obrigatório para todos os estados, inclusive os não participantes. Afirmaram, igualmente, que o TPAN é incompatível com a doutrina de dissuasão nuclear, a qual em seu entendimento “tem sido essencial para a manutenção da paz na Europa e no norte da Ásia durante mais de 70 anos”.  Por sua vez, o  primeiro ministro do Japão disse na ocasião que um instrumento que torna as armas nucleares ilegais, como o TPAN, “prejudicaria a legitimidade da dissuasão nuclear”[5]. 

Não se pode provar que a ausência de guerras naquelas regiões se deva à existência da doutrina de dissuasão nuclear. Aliás, o atual conflito na Ucrânia coloca em dúvida essa afirmação [6].  Depender da dissuasão significa aceitar viver em um mundo sob ameaça constante de conflagração nuclear ou de acidentes com efeitos catastróficos. A defesa da permanência dessas armas durante tantas décadas é certamente incompatível com o objetivo do desarmamento. Na verdade, a posse de armas nucleares já é illegal para os 184 países não nucleares signatários do TNP e seu uso é contrário às normas do direito internacional humanitário em conflitos armados [7].

 Ao longo das décadas registram-se inúmeros exemplos de acidentes com armas nucleares e falhas nos sistemas de detecção antecipada, comando e controle. O general norte-americano Lee Butler, ex-chefe do Comando Estratégico (STRATCOM) afirmou em 2015 que a humanidade havia escapado até então de um holocausto nuclear “por uma combinação de competência, sorte e intervenção divina – esta última na maior proporção” [8].  

A propósito do TPAN a OTAN declarou oficialmente que “procurar proibir as armas nucleares por meio de um tratado que não atrairá nenhum estado atualmente possuidor dessas armas não será eficaz, não reduzirá os arsenais nucleares e não aumentará a segurança de nenhum país nem tampouco a paz e estabilidade internacionais. Na verdade, o tratado corre o risco de produzir efeito contrário, criando divisões e divergências em um momento em que uma atitude unificada contra a proliferação e as ameaças à segurança é mais necessária do que nunca”[9].  

O argumento de que o TPAN exacerbaria as tensões políticas ao “criar divisões” deixa convenientemente de lado o fato de que na verdade a divisão entre possuidores e não possuidores foi formalmente instituída pelo Tratado de Não Proliferação. O novo tratado, ao contrário, se aplica igualmente a todos os seus signatários. Os países nucleares que vierem a aderir podem escolher desfazer-se de seus arsenais antes ou depois de se tornar Partes. A declaração da OTAN ignora também o fato de que os possuidores agem como se essa divisão devesse ser perpetuamente mantida, aumentando assim as tensões entre os estados-parte do TNP. 

Obviamente, o TPAN não poderá por um passe de mágica assegurar o desarmamento nuclear, resultado que evidentemente exige a colaboração de boa fé dos possuidores com o restante da comunidade internacional. O novo Tratado somente será eficaz com a participação de todos os estados e mediante verificação adequada. 

A proibição universal das armas nucleares é um objetivo legítimo e universalmente desejado que  depende de trabalho árduo, criatividade e paciência, tanto quanto de vontade política. O objetivo de proibi-las já estava presente na primeira resolução da Assembleia Geral da ONU, em 1946. Desde então, a comunidade internacional logrou banir duas categorias de armas de destruição em massa – as bacteriológicas e as químicas – por meio da perseverança e cooperação entre as nações e com o constante estímulo da sociedade civil. As armas nucleares constituem a terceira  última categoria ainda não proibida. O advento do TPAN mostra que chegou o momento de bani-las também.

Finalmente, mesmo que os posuidores de armas nuclears não venham a aderir ao TPAN o Tratado contribui para reforçar o chamado “tabu nuclear”, isto é, uma norma moral universal contra seu uso. 

Em uma mensagem por ocasião do 75o. aniversário do ataque  contra Hiroshima e Nagasaki,  o Papa Francisco observou que não apenas o uso, mas a simples posse de armas nucleares é imoral, airmando que “nunca foi tão evidente que para o florescimento da paz todos devem abrir mão de suas armas, especialmente as mais poderosas e destruidoras: as nucleares, capazes de mutilar e arrasar cidades e países inteiros”. 

Esse é precisamente o objetivo do TPAN. 

___________________

[1] As três Conferências anteriores  foram de grande importância para impulsionar a negociação do TPAN. As duas primeiras  ocorreram em Oslo e Nayarit (México). A terceira, realizada em Viena, concluiu, inter alia, que o impacto de uma detonação nuclear, independentemente de sua causa, não se limitaria a fronteiras nacionais, podendo gerar consequências regionais e mesmo globais, e que nenhum estado ou entidades internacional teria condições para tratar adequadamente da emergência humanitária imediata ou de longo prazo de uma detonação em região habitada e tampouco proporcionar assistência às vítimas.  Nessa Conferência a Áustria propôs um “Compromisso Humanitário” para “estigmatizar, proibir e eliminar as armas nucleares à luz de seus inaceitáveis riscos humanitários”. O Compromisso foi em seguida endossado por 128 países.   

[2] NPT/CONF.2010/50 (Vol.I) – Principles and Objectives, pág. 19.

[3] Existem armas nucleares da OTAN nos territórios da Alemanha. Bélgica. Holanda, Itália e Turquia.

[4] O resultado da votação na Conferência negociadora foi 122 votos a favor, um contra (Holanda) e uma abstenção (Cingapura).

[5] Taro Kono, “Kakuheiki Kinshi Jyoyaku” [Tratado de Proibição de Armas Nucleares], Blogos, 21 de novembro 2017, http://blogos.com/article/260530/.

[6] Conviria recordar a guerra da Coreia, iniciada em 1950 e até hoje não terminada formalmente.

[7] Em uma Opinião Consultiva de 1996, a Corte Internacional de Justiça concluiu que “a ameaça de uso de armas nucleares seria em geral contrária às normas de direito internacional aplicáveis em conflitos armados e em particular aos princípios e normas de direito humanitário” e que “os estados não devem jamais transformar civis em objeto de ataque e consequentemente nunca devem usar armas incapazes de distinguir entre alvos civis e militares”.

[8] Entrevista a Robert Kazel, 27/5/2015 –   https://www.wagingpeace.org/general-lee-butler/

[9] Comunicado de imprensa 135-2017: declaração do Conselho de Segurança do Atlântico Norte sobre o Tratado de Proibição de Armas Nucleares, OTAN, 20 de setembro de 2017. https://www.nato.int/cps/ua/natohq/news_146954.htm

  • Embaixador, ex-Alto Representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento. Presidente das Conferências Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais. Colunista do IntLawAgendas.

  • Professor da UNIPAMPA e Ativista de Direitos Humanos e do Desarme Humanitário

CONTEÚDOS RELACIONADOS / RELATED CONTENT:

Compartilhe / Share:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter