O direito internacional no julgamento da Pauta Verde pelo STF

O Supremo Tribunal Federal começou, no dia 30 de março, o julgamento da denominada Pauta Verde, um conjunto de sete demandas relativas a supostas omissões e possíveis violações do governo federal em matéria ambiental. Além de importantes implicações internas, os objetos dessas ações envolvem interesses globais protegidos por compromissos internacionais, de tal maneira a se propiciar um ponto tangente entre os dois ordenamentos. Nesse aspecto, o voto da Ministra Cármen Lúcia durante o julgamento conjunto da ADPF 760 e da ADO 54, primeiras demandas da Pauta Verde, apresenta um olhar inicial sobre como o STF deve abordar o papel das normas internacionais ambientais na condução de uma política pública de proteção do meio ambiente pelo Brasil, bem como qual a relevância da aplicação dessas regras por uma corte constitucional doméstica.

As referidas ações constitucionais abriram a pauta de julgamento questionando um suposto abandono do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) em prol de uma política pública menos eficiente e que não estaria coibindo o avanço do desmatamento na Floresta Amazônica. A Ministra Cármen Lúcia, relatora de ambas as demandas, julgou-as procedentes para reconhecer a omissão do governo federal ao abandonar o PPCDAm, violando direitos constitucionalmente protegidos. Até o presente momento, no entanto, não se sabe se este resultado será vencedor, na medida em que o Ministro André Mendonça pediu vista aos autos da ADPF 760 e da ADO 54, paralisando seu julgamento.

Conquanto o resultado final desses processos seja ainda incerto, na medida em que dependem do posicionamento dos demais ministros do STF, o voto apresentado pela Ministra Relatora Cármen Lúcia inaugurou a Pauta Verde com um pronunciamento forte e incisivo acerca da necessidade de um controle judicial das políticas públicas ambientais do Poder Executivo, fundado não apenas na Constituição Federal, mas também no direito internacional. Embora o diploma constitucional garanta, em seu art. 225, um meio ambiente ecologicamente equilibrado, não estabelece exatamente como a proteção desse direito deverá ser conduzida pela Administração Pública. Não obstante, Cármen Lúcia deixou claro que a discricionariedade estatal em matéria ambiental é restrita e que a atuação governamental deverá ser vinculada aos compromissos assumidos pelo Brasil no plano internacional. Em suas palavras, “os deveres fundamentais postos nas normas constitucionais e nos tratados internacionais, aos quais tenha dado adesão o Brasil, configuram obrigação fundamental insuperável e indeclinável do Estado”.

Assim, de pronto se pode notar que o fato de o Brasil ter assumido compromissos internacionais para preservação ambiental não foi mencionado como mero argumento de reforço. No âmbito do julgamento conjunto da ADPF 760 e da ADO 54, a Ministra Relatora posicionou o dever de cumprimento dos tratados internacionais ambientais ao lado do dever de observância à Constituição. Duas razões aparentam justificar a deferência concedida pela magistrada às normas internacionais, quais sejam, o fato de o Brasil ter assumido objetivos mais específicos nesses tratados – de redução do desmatamento e da emissão de gases o efeito estufa em metas pré-determinadas – e o caráter global do dever de proteção ambiental.

De fato, esse último aspecto foi frisado desde a abertura da primeira sessão, quando a Ministra Cármen Lúcia, relembrando os 50 anos da Conferência de Estocolmo, asseverou que a proteção da Amazônia não é um interesse apenas do Brasil e dos brasileiros, mas de todo o planeta. Nesse ponto, os impactos climáticos do desmatamento aparentaram ser a maior preocupação da relatora, ao ponderar que embora a Floresta Amazônica, por sua localidade, se submeta à soberania territorial do Brasil, as consequências climáticas de sua devastação são transfronteiriças, razão pela qual o Estado brasileiro teria um “dever com toda a humanidade” de preservação do bioma. Não é suficiente cumprir com a Constituição, pois se trata de um bem jurídico que envolve direitos e deveres supranacionais. A sua guarda de forma plena aparece como elemento central do voto da Ministra e demanda instrumentos mais amplos do que a legislação nacional pode fornecer. Não é um dispositivo de lei no ordenamento interno que conduz a magistrada a atribuir importância aos efeitos transnacionais da política ambiental brasileira; o fundamento por trás é uma regra do direito internacional consolidada consuetudinariamente: a proibição ao dano transfronteiriço.

A cooperação internacional apareceu inclusive como um pilar da formulação das políticas públicas no discurso de Cármen Lúcia, que insistiu na importância de cada Estado fazer a sua parte no combate às mudanças climáticas, em especial em face daquilo que se comprometeram internacionalmente. Embora sem o citar diretamente, a relatora espelhou o princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas, que são atribuídas a cada Estado, previsto no Art. 2º (2) do Acordo de Paris.

Em outros momentos, a aplicação dos dispositivos internacionais foi direta, em especial no que se referem aos princípios previstos pela Declaração do Rio. A responsabilidade de garantir a equidade de desenvolvimento às gerações presentes e futuras foi fundamentada no Princípio 3, enquanto a obrigação estatal de agir com precaução, adotando todas as medidas necessárias e possíveis para preservação ambiental, mesmo diante de incerteza científica, foi estabelecida consoante o Princípio 15.

Mas foi principalmente na utilização do Princípio 10 que a Declaração do Rio adquiriu força jurídica. A regra protege o acesso à informação acerca das políticas ambientais e garante a participação da sociedade civil nos seus processos de formulação, dois pontos que foram considerados problemáticos pela Ministra Cármen Lúcia no novo plano de preservação da Amazônia apresentado pelo governo federal. No julgamento conjunto da ADPF 760 e da ADO 54, a tese central da relatora foi no sentido de que, a princípio, não haveria problema na adoção de um novo plano, substitutivo do PPCDAm, porém que a mudança deveria respeitar os princípios da vedação ao retrocesso e da efetividade das políticas públicas. Todavia, identificou-se na política conduzida pelo governo Bolsonaro falhas justamente na publicidade dos trabalhos e na democratização de sua formulação, o que violaria o Princípio 10. A Ministra concluiu que o Brasil se comprometeu internacionalmente com este princípio e, portanto, ele deveria ser observado.

Por certo, é surpreendente a força que a relatora concedeu à disposição, mormente se nos atentarmos para o caráter não vinculante da Declaração do Rio. De forma semelhante, em um pronunciamento na sessão do dia 7 de abril, Cármen Lúcia chegou até mesmo a citar tratados que o Brasil sequer ratificou, justificando a relevância da menção como uma forma de provar que observância de determinados princípios ambientais é uma “tendência internacional”. Além disso, citou decisões judiciais de outras jurisdições, inclusive das cortes regionais de direitos humanos, com o mesmo propósto. Logo, a prática geral dos outros Estados, as expectativas da comunidade internacional concernentes ao posicionamento do Brasil no combate ao desmatamento e os compromissos assumidos pelo país em tratados, ainda que não vinculantes, caracterizaram o dever de propiciar um ambiente ecologicamente equilibrado, previsto pelo art. 225 da Constituição Federal.

Ou seja, embora a questão ambiental seja inerentemente global e exija, em alguma medida, a consideração de conceitos do direito internacional, este não foi aplicado sem qualquer balizamento constitucional. Ao contrário, as razões de decidir da magistrada se calcaram mais firmemente na Constituição, afinal, cuidam-se de ações constitucionais, admitidas apenas em caso de alegação de violação da Carta Magna. O direito ao meio ambiente e à vida digna são protegidos pelo nosso ordenamento interno, e os princípios da vedação ao retrocesso ambiental e da eficiência administrativa foram ponto de partida para as críticas da Ministra Relatora ao atual plano de governo. Contudo, consoante restou consignado do início deste ensaio, o Brasil assumiu compromissos bem mais específicos perante a ordem internacional, que ajudam a interpretar quais são os limites da discricionariedade estatal.

No âmbito da proteção climática, por exemplo, Cármen Lúcia reiterou que a soberania brasileira não dava direito ao Estado em descumprir os compromissos que firmou internacionalmente, de proteção ambiental e redução das emissões de gases em 37% até 2025 e 43% até 2030. A fala da relatora ocorreu apenas 4 dias antes de o Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas publicar a conclusão do Grupo de Trabalho III para o Sexto Relatório de Avaliação (AR6), no dia 04/04, no âmbito qual se asseverou que a remoção de vegetação nativa é a segunda maior fonte de emissão antropogênica de gases do efeito estufa. O AR6 também dedicou uma seção específica ao exame da política ambiental brasileira para proteção da Amazônia, destacando a efetividade do PPCDAm e a regressão dos avanços alcançados com o plano após mudanças políticas no Brasil redefinirem prioridades no desenvolvimento. Essas conclusões de cunho científico não passaram despercebidas pela Ministra Relatora que, na quarta-feira (06/04), citou em seu voto o Sexto Relatório de Avaliação do IPCC, bem como a declaração oficial do Secretário-Geral da ONU, Antônio Guterres, acerca da publicação. Na sessão anterior, Cármen Lúcia já havia ponderado pela aproximação de um ponto de “não retorno” caso o Brasil não se atentasse para a sua meta de redução, cuja realização depende significativamente da redução do desmatamento.

O pronunciamento da relatora insere o Brasil efetivamente no fenômeno da litigância climática, como mais um país em que a inércia dos poderes Executivo e Legislativo na efetivação das metas de redução acordadas internacionalmente é levada à apreciação do Judiciário, na tentativa de impor o seu cumprimento. E a Ministra Cármen Lúcia parece reconhecer o papel do STF na aplicação desse direito, ao ponderar: “[a] atuação deste Supremo Tribunal na matéria, como observado antes, combina-se com atuações de órgãos judicantes internacionais. Nem poderia ser diferente, pois as questões referentes à matéria ambiental, que se conjuga com o direito à vida digna da presente e das futuras gerações, é item essencial na agenda constitucional contemporânea”.

As reflexões propostas nos levam a concluir que a Ministra Relatora não apenas agiu em guarda da Constituição Federal, como é seu dever enquanto magistrada do STF, mas também aplicou diretamente normas de direito internacional, exigindo da União seu cumprimento. O uso do direito internacional fortalece a imposição de uma postura mais rígida e efetiva ao governo federal, é verdade, mas também evidencia a legitimidade que foi conferida por uma ministra do STF aos instrumentos detalhados e culmina em sua execução, determinando ao Estado brasileiro que aja de acordo com o ordenamento internacional. Em um cenário global em que o cumprimento dos compromissos internacionais de proteção ambiental é fortemente depositado na cooperação e boa-fé dos Estados, esse tipo de controle judiciário contribui para a eficácia dos tratados sobre a matéria. Se o voto da Ministra Relatora sair vencedor, o Brasil se torna mais um exemplo de nação onde as cortes domésticas assumem um importante papel de implementadoras do direito internacional ambiental.

  • Fernanda Lamounier é mestranda em Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais, onde está desenvolvendo sua dissertação sobre o tema da litigância climática international. Pesquisadora do "Stylus Curiarum" - Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais CNPq/UFMG.

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