O Tribunal Penal Internacional se volta à América Latina: as investigações na Venezuela

Um novo passo foi dado em relação à situação da Venezuela ante ao Tribunal Penal Internacional (TPI) no início do mês de novembro. Após uma visita de 4 dias a Caracas, o Procurador do TPI, Karim A.A. Khan, decidiu pela abertura de uma investigação formal em relação aos supostos crimes cometidos no país no contexto dos protestos e agitação política a partir de abril de 2017. Essa foi a primeira vez que uma investigação foi aberta pelo Tribunal em relação a uma situação da América Latina, ainda que análises preliminares – o estágio anterior a uma investigação – tenham sido concluídas em Honduras e Colômbia e ainda estejam em andamento em relação à Bolívia e uma segunda em relação à Venezuela – a chamada Venezuela II . 

A análise preliminar em relação à situação da Venezuela havia sido iniciada proprio motu, em fevereiro de 2018, pela então Procuradora Fatou Bensouda.  Em setembro do mesmo ano, uma coalisão formada por Argentina, Canada, Colômbia, Chile, Paraguai e Peru, com fundamento no Artigo 14 do Estatuto de Roma, referiu a situação da Venezuela à Procuradoria do TPI, solicitando a abertura de uma investigação de crimes contra a humanidade supostamente cometidos no país desde fevereiro de 2014. Dentre os supostos atos praticados, ressaltados na denúncia da coalisão, se encontravam homicídios, tortura, abuso sexual e estupro, detenções arbitrárias, execuções extrajudiciais e desaparecimento forçado de pessoas. Ao fim de seu mandato, encerrado em junho de 2021, Fatou Bensouda já havia concluído existir fundamentos razoáveis para crer que crimes contra humanidade haviam sido cometidos por autoridades oficiais e agentes não estatais aliados ao governo, restando ao novo Procurador prosseguir com a análise da admissibilidade da situação. 

Com a investigação recém-aberta, ainda é cedo para prever seus futuros desdobramentos, em especial diante do fato de que, até o momento, nenhum alvo ou suspeito foi identificado pela Procuradoria. No entanto, dado o foco da investigação, o esperado é que os futuros acusados sejam membros ou apoiadores do governo Maduro. Além disso, para o sucesso das investigações será necessária a cooperação da Venezuela com o Tribunal. A falta de cooperação por parte dos Estados têm sido, ao longo dos anos, um dos grandes desafios enfrentados pelo Tribunal no cumprimento do seu mandato, sobretudo quando o exercício da jurisdição pelo Tribunal não tenha sido acionado pela denúncia do próprio Estado em cujo território os alegados crimes foram cometidos, como no presente caso. A assinatura de um Memorando de Entendimento em matéria de cooperação entre o governo da Venezuela e o TPI na ocasião da visita do Procurador Karim A.A. Khan a Caracas cria a esperança de que o Estado não tentará impor obstáculos à investigação da Procuradoria. No entanto, a assinatura do Memorando não é garantia de que a Venezuela irá de fato cooperar com o Tribunal, em especial considerando que o governo Maduro já apresentou alguns sinais de resistência à abertura das investigações. Em maio deste ano, por exemplo, a Venezuela solicitou à Seção de Instrução do TPI que lhe fosse concedido o exercício de “controle judicial” sobre a análise preliminar da situação em seu território, pedido que foi negado liminarmente ante a inexistência de previsão legal do dito mecanismo no Estatuto de Roma. Mais recentemente, foram iniciadas uma série de investigações na tentativa persuadir a Procuradoria de que a Venezuela estaria disposta a processar e julgar os alegados crimes dentro de seu próprio território (cf: aqui, aqui). O governo da Venezuela também deixou claro o seu entendimento de que as condições previstas no artigo 53(1) do Estatuto de Roma, para abertura de uma investigação pela Procuradoria, não estariam reunidas no presente caso, opinião que chegou a ser incluída expressamente no texto do Memorando de Entendimento por meio de uma cláusula preambular. Quanto ao conteúdo do Memorando de Entendimento, este é focado no fortalecimento da complementariedade e cooperação com o Tribunal, fatores cuja importância tem sido ressaltada pelo Procurador desde sua posse em junho deste ano. Assim, de modo geral o Memorando apenas reforça as obrigações já estabelecidas no Estatuto de Roma. 

Em um contexto mais amplo, a abertura da investigação em relação à situação da Venezuela – juntamente com a assinatura do Memorando –  é mais um exemplo da postura de engajamento ativo no fortalecimento da complementariedade e da cooperação com o Tribunal (cf: aqui, aqui, aqui) adotada pelo atual Procurador, que, em seu discurso de posse, deixou clara a necessidade da Procuradoria de não apenas criar expectativas, mas sobretudo apresentar resultados.  Com a abertura da investigação, foi criada a expectativa de que os alegados crimes contra humanidade cometidos pelo governo Maduro nos últimos anos não ficarão impunes. Se o Procurador irá conseguir cumprir com suas promessas iniciais e converter essa expectativa em condenações perante o TPI, somente o tempo poderá dizer.  

  • Doutoranda em Direito Internacional do Institute for International Peace and Security Law da Universidade de Colônia. Mestre em Direito Internacional Público pela UFMG.

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