O Governo Bolsonaro e a Crise dos Yanomamis (Parte 1): Modalidades de Responsabilidade Penal no TPI

Em janeiro de 2023, brasileiros e estrangeiros viram estarrecidos o sério estado de desnutrição e doenças na Terra Indígena Yanomami em Roraima, afetando especialmente crianças (aqui, aqui, aqui). A decorrente repercussão social deu ensejo a um rico debate entre juristas pátrios, questionando se os fatos podem ser qualificados como crimes internacionais, em especial genocídio, e se os membros da cúpula do governo de Jair Bolsonaro (2019 – 2022), incluindo o próprio ex-Presidente, poderiam ser julgados pelo Tribunal Penal Internacional (TPI ou Tribunal) (aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui). 

O presente ensaio em duas partes almeja contribuir a este importante debate. Enquanto a Parte 1 pondera as diferentes modalidades de responsabilidade penal dos possíveis acusados perante o TPI, a Parte 2 contém uma análise crítica da submissão da situação dos yanomamis ao Tribunal.  

* * *

Um dos aspectos mais controversos do TPI é a responsabilidade de lideranças políticas ou militares por crimes cometidos em larga escala, afetando centenas ou milhares de vítimas, em inúmeras áreas territoriais distintas. Estabelecer uma conexão suficientemente sólida entre os perpetradores diretos e as remotas lideranças (os masterminds dos crimes), muitas vezes pessoas que nunca se comunicaram diretamente, é uma tarefa chave da Procuradoria para obter condenações. 

Responsabilizar os membros do governo Bolsonaro, incluindo o próprio ex-Presidente, pelos alegados crimes contra povos indígenas ilustra este desafio. As principais dificuldades são o distanciamento físico entre as lideranças federais localizadas em Brasília e o local remoto dos crimes, bem como o fato dos perpetradores diretos (garimpeiros e outros atores) serem agentes privados, que atuam fora da estrutura oficial do Estado sob o controle formal do governo federal. Estes fatores não necessariamente inviabilizam eventuais condenações no TPI dos membros do gabinete de Bolsonaro, mas indicam que o desafio da Procuradoria seria enorme para provar, além de uma dúvida razoável, a culpabilidade destes indivíduos.  

Responsabilidade individual é regulada no Artigo 25 do Estatuto de Roma do TPI, com especial ênfase ao Artigo 25(3), que lista as diferentes modalidades de responsabilidade aplicáveis no Tribunal. Em sua jurisprudência aplicando esse dispositivo, o TPI adota a teoria do controle do crime, desenvolvida pelo alemão Claus Roxin (Lubanga, 2007, paras 327-367; Katanga e Ngudjolo Chui, 2008, paras 480-539). Abaixo, os autores aplicarão o Artigo 25(3) ao governo Bolsonaro e sua alegada participação nos eventuais delitos contra povos indígenas amazônicos, em especial os yanomamis, analisando as diferentes modalidades de responsabilidade. O foco será a Co-Perpetração Indireta (CPI), seguida de outras modalidades potencialmente aplicáveis. Importante notar que a presente análise foi desenvolvida unicamente para fins didáticos e acadêmicos, ponderando estratégias e narrativas hipotéticas que a Procuradoria do TPI poderia explorar e os seus respectivos desafios, em especial a coleta de suficientes elementos de prova.

Co-Perpetração Indireta 

O Artigo 25(3)(a) do Estatuto de Roma positiva a perpetração ou comissão dos crimes, nos seguintes termos: ‘[c]ometer [o] crime individualmente ou em conjunto ou por intermédio de outrem, quer essa pessoa seja, ou não, criminalmente responsável’. Entende-se que esse dispositivo reconhece expressamente três modalidades de perpetração: perpetração direta (‘[c]ometer [o] crime individualmente’); co-perpetração (cometer os crimes ‘em conjunto’ com outros); e perpetração indireta (cometer os crimes ‘por intermédio de outrem’). A partir da junção dos elementos destas duas últimas modalidades, o TPI desenvolveu uma outra forma de comissão: a CPI. Dessa forma, a CPI consiste em uma criação jurisprudencial pelo Tribunal, por meio da interpretação do texto do Artigo 25(3)(a). 

À luz da teoria do controle de Roxin,  o TPI estabeleceu quatro requisitos para a aplicação da CPI (Ongwen, 2021, paras 2783-2787; Ntaganda, 2019, paras 771-780): 

(1) deve haver um acordo ou plano comum, expresso ou tácito, entre o acusado e outros indivíduos (os co-perpetradores) para cometer os crimes ou agir de tal forma que, no curso normal de eventos, os crimes seriam cometidos. Esse elemento deriva da modalidade de co-perpetração e visa provar que o acusado agiu em conjunto com outros para a prática dos crimes.

(2) o acusado deve ter exercido controle sobre os crimes cometidos no âmbito da implementação deste acordo ou plano comum, por meio da sua contribuição essencial para tal implementação e o resultante poder de frustrar o cometimento dos crimes. Esse poder de frustrar a consumação dos delitos se encontra presente se, ausente a contribuição do réu, os crimes não teriam se consumado ou teriam sido cometidos de uma maneira significativamente diferente. Assim, a contribuição essencial como um requisito da CPI — elemento também proveniente do conceito de co-perpetração — deriva de uma abordagem funcional do empreendimento criminal coletivo: para a efetiva perpetração dos crimes seria necessária a execução de uma série de diferentes tarefas ou passos sem os quais os crimes não poderiam se consumar. Estas tarefas ou passos indispensáveis ao cometimento dos crimes são as contribuições essenciais de cada um dos co-perpetradores. A essencialidade da contribuição e o decorrente poder de frustrar o cometimento dos delitos é o principal fundamento para que todos os co-perpetradores sejam igualmente responsáveis pelos crimes resultantes da implementação do acordo ou plano comum como um todo. A contribuição do réu não precisa envolver uma forma de participação física no cometimento dos crimes, mas pode se limitar, por exemplo, a sua posição de autoridade em relação aos perpetradores diretos dos crimes (Al Mahdi, 2016, para 61).

(3) os crimes devem ter sido cometidos através de outra(s) pessoa(s). Esse requisito, derivado do conceito de perpetração indireta, exige a comprovação de que ao menos um indivíduo parte do acordo ou plano comum exerceu controle sobre os autores diretos dos crimes, subjugando-os a vontade dos membros desse acordo ou plano para que os crimes fossem cometidos. No contexto da CPI, os co-perpetradores não cometem os crimes eles próprios, mas utilizam as pessoas sob o seu comando ou liderança como instrumentos fungíveis para executar os crimes. O controle dos co-perpetradores sobre as ações dos agentes que efetivamente cometeram os delitos manu propria deve ser intenso o suficiente para que a vontade desses agentes se torne irrelevante, de modo que a sua conduta deve ser atribuída aos co-perpetradores como se fosse sua. Para tanto, deve ser demonstrado: (i) a existência de um aparato de poder entre os co-perpetradores e os seus subordinados; e (ii) que este aparato de poder foi controlado pelos co-perpetradores de forma tão intensa que as suas ordens foram implementadas de forma automática pelos subordinados (compliance automático). No contexto de um vasto grupo de pessoas, esse controle é normalmente feito por meio de organizações militares ou governamentais com suficiente coesão e estrutura interna. Estas organizações são controladas pelos seus líderes (os co-perpetradores) de forma a levar os seus integrantes inferiores a cometer os crimes. Como indicado antes, não é necessário provar que todos os co-perpetradores, em especial o réu, exerceram controle pessoal e direto sobre os agentes que cometeram os crimes manu propria, bastando demonstrar que ao menos um dos co-perpetradores teve esse controle. 

(4) os elementos mentais aplicáveis (mens rea) também devem ser demonstrados: (i) os elementos subjetivos dos crimes imputados ao réu, isto é, vontade e conhecimento nos termos do Artigo 30 do Estatuto de Roma; (ii) o réu tinha conhecimento e aceitou que a implementação do plano comum ao qual ele era parte resultaria no cometimento dos elementos materiais dos crimes imputados; e (iii) o réu tinha conhecimento das circunstâncias fáticas que lhe permitiu controlar os crimes em conjunto com os outros co-perpetradores.

Em termos práticos, a CPI foi instituída pelo TPI para lidar com um cenário comum nos casos de criminalidade em massa: líderes militares ou civis conjuntamente decidem utilizar as estruturas ou organizações hierárquicas de comando ou liderança a sua disposição para que os seus subordinados (os integrantes inferiores dessa estrutura ou organização) cometam os crimes. Em última instância, o objetivo do Procurador e do Tribunal ao utilizarem a CPI é abarcar as circunstâncias nas quais o réu não possuía controle sobre os perpetradores diretos do crime, mas agiu em conjunto com a pessoa que tinha esse controle. Com base em atribuição mútua, a CPI permite que esse réu seja condenado como co-perpetrador pelos crimes que ele não controlou pessoalmente (Katanga e Ngudjolo Chui, 2008, para 493).

Dessa forma, a CPI é uma eficaz ferramenta para responsabilizar penalmente os grandes líderes de empreendimentos criminosos em larga escala, abarcando um inteiro país ou vastas extensões de seu território. Muitas vezes estes líderes nunca estiveram presentes no local dos crimes ou até mesmo não tinham conhecimento de quais delitos específicos foram cometidos. O recente caso Ntaganda é um exemplo. Enquanto comandante de operações de um grupo armado rebelde, Bosco Ntaganda foi condenado com base em CPI pelos delitos cometidos no âmbito de uma operação militar deste grupo na qual ele não teve nenhum envolvimento direto no planejamento, no comando direto em solo ou conhecimento dos crimes antes, no momento ou após a sua execução. Segundo o TPI, estes elementos foram irrelevantes para fins de CPI, já que: (i) Ntaganda realizou uma contribuição essencial à implementação de um plano comum consolidado por ele em conjunto com outros líderes do grupo rebelde. A sua contribuição essencial foi treinar, estruturar e delinear as táticas bélicas desse grupo, tornando-o uma força militar eficiente e capaz de cometer os crimes; (ii) ainda que Ntaganda não tenha tido nenhum envolvimento direto no cometimento dos delitos, outros membros do plano comum efetivamente controlaram os soldados que foram os autores diretos dos crimes; e (iii) os crimes foram cometidos fazendo uso da contribuição essencial fornecida por Ntaganda (Ntaganda, 2019, paras 826-857; Ntaganda, 2021, paras 1041-1047, 1059-1067). 

A flexibilidade e amplitude da CPI a tornou uma corriqueira modalidade de responsabilidade no TPI, sendo empregada pela Procuradoria em inúmeros casos do Tribunal, incluindo Lubanga, Kenyatta e Muthaura, Gbagbo e Blé Goudé, Ntaganda e Ongwen. Contudo, a CPI tem sido objeto de críticas desde a sua introdução, até mesmo por juízes do TPI (aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui; para uma defesa da CPI, cf. aqui). As críticas se centram na ausência de reconhecimento expresso da CPI no texto do Artigo 25(3) do Estatuto de Roma e no argumento de que a sua aplicação a crimes em larga escala é inadequada e resulta em conclusões falaciosas sobre o nível de controle do réu sobre os crimes. Apesar destas críticas, a CPI continua sendo aplicada pelo Tribunal. 

Passando à aplicação da CPI ao governo Bolsonaro, os autores analisarão os três primeiros elementos da CPI descritos acima, focando, para fins analíticos e hipotéticos, na pessoa do Bolsonaro como se ele fosse o réu perante o TPI. O foco dessa análise é averiguar se, além da conduta cometida pelos próprios membros da cúpula do governo Bolsonaro, os diversos delitos cometidos contra povos indígenas (em especial os yanomamis) por indivíduos associados a atores econômicos na região amazônica (em especial garimpeiros) poderiam ser atribuídos a membros do ex-governo por meio da CPI. 

O primeiro elemento se refere ao acordo ou plano comum entre um grupo de indivíduos, entre eles o acusado. Uma possibilidade de acordo ou plano comum que a Procuradoria poderia explorar seria o seguinte: a destruição ou remoção coercitiva de povos tradicionais de áreas de interesse econômico. A Procuradoria deve demonstrar não apenas a existência deste plano ou acordo, mas também que Bolsonaro e os integrantes da cúpula do governo federal à época eram membros dele. Para tanto, poderiam ser apresentados, se existentes, documentos, depoimentos, atas de reuniões e discursos descrevendo o plano ou acordo entre a cúpula do governo Bolsonaro (Ongwen, 2021, paras 2851-2854; Ntaganda, 2019, paras 781-811). 

Não é necessário provar que o cometimento de crimes sob a jurisdição do TPI era um dos componentes diretos do plano comum. Basta demonstrar que, devido ao objetivo e natureza do plano, ‘[ele] continha um elemento crítico de criminalidade, e que era praticamente certo que a implementação do plano comum levaria ao cometimento dos crimes em questão’ (Ntaganda, 2019, para 776). À luz da hipótese de acordo ou plano comum apresentada acima, a Procuradoria poderia alegar que a eliminação ou remoção coercitiva de povos indígenas de suas terras tradicionais implicaria a execução de crimes graves. A crise na terra yanomami seria apenas um exemplo de localidade onde esse plano estaria sendo implementado. O caso yanomami é particularmente apropriado para ilustrar esse plano devido a sua intrínseca gravidade, bem como o número e vulnerabilidade das vítimas afetadas.

O segundo elemento da CPI – uma contribuição essencial para a implementação do plano comum e o resultante poder de frustrar o cometimento dos crimes – poderia, em tese, ser formulado nos seguintes termos pela Procuradoria: na função de chefe de estado e de governo, Bolsonaro teria criado e controlado uma estrutura governamental de cúpula, a nível federal, que atuou no enfraquecimento ou não estabelecimento de instrumentos e medidas, tanto normativas quanto administrativas, que seriam essenciais para a devida proteção ou sobrevivência de povos indígenas. O caso Ntaganda discorrido acima ilustrou que a contribuição essencial do réu não precisa ser específica ao cometimento dos crimes. A mera criação de condições estruturais utilizadas para a comissão dos delitos pode ser suficiente. Seguindo uma lógica de causalidade, o ponto chave para assegurar uma condenação é a essencialidade do papel da cúpula do governo federal, incluindo o papel pessoal do próprio Bolsonaro, para os crimes contra os yanomamis. Cabe a Procuradoria demonstrar que a ausência daqueles instrumentos e medidas de proteção e assistência, alinhados a discursos públicos depreciativos contra indígenas e incentivando o esbulho de suas terras, teria viabilizado que indivíduos associados a atores econômicos (em especial garimpeiros) invadissem terras indígenas e cometessem crimes contra membros de comunidades tradicionais, a fim de eliminá-los ou coercitivamente removê-los. 

Importante enfatizar que o dado estatístico segundo o qual atos de violência contra indígenas e garimpo ilegal em terras tradicionais aumentaram exponencialmente durante o governo Bolsonaro (aqui, p 12), apesar de um elemento confirmatório importante, não é em si suficiente para provar uma contribuição essencial. Para fins de causalidade, deve ser demonstrado que o governo Bolsonaro teve um impacto direto na execução dos elementos materiais dos crimes que levaram ao agravamento da situação. Nesse sentido, caso a Defesa de Bolsonaro demonstre que os crimes ou a atual situação trágica dos yanomamis foram um curso natural de eventos, a partir de fatores anteriores ou sem conexão ao governo Bolsonaro, a tese da Procuradoria fracassaria, já que a causalidade da contribuição essencial não estaria presente. Contudo, a mera existência de garimpo ilegal em terras indígenas antes de Bolsonaro se tornar Presidente ou o fato de que a situação dos indígenas já era séria antes da sua posse não necessariamente inviabilizam condenações no TPI, desde que a Procuradoria prove que essa situação pré-existente foi perpetuada ou acentuada por meio do cometimento de crimes aos quais os membros do governo Bolsonaro tiveram uma contribuição essencial.

Além disso, como assentado no caso Ntaganda, a hipótese de Bolsonaro não ter estado presente na terra yanomami quando do cometimento dos crimes, não ter pessoalmente emitido ordens diretas para tal cometimento e não ter conhecimento dos delitos específicos cometidos por indivíduos associados a atores econômicos seria irrelevante para uma condenação com base em CPI. Ele poderia a priori ser condenado apenas com base no controle do crime, comprovado por meio da sua contribuição essencial à execução do plano comum. 

O terceiro elemento da CPI – controle sobre os autores diretos dos crimes – talvez seja o mais difícil de ser demonstrado no presente caso. Uma condenação baseada em CPI aliviaria a Procuradoria do ônus de demonstrar que Bolsonaro pessoalmente controlou os indivíduos que cometeram os crimes contra os yanomamis. Essa é uma das principais vantagens que torna a CPI tão atraente à Procuradoria. Contudo, ainda é necessário demonstrar que ao menos um dos outros membros do plano comum ao qual Bolsonaro era um integrante (isto é, os outros membros da cúpula do governo federal à época) exerceu esse controle. Assim, a fim de assegurar a condenação de Bolsonaro no TPI com base em CPI, o Procurador deve demonstrar a existência de uma relação de poder entre o governo Bolsonaro e os indivíduos associados a atores econômicos que pessoalmente cometeram os crimes contra os indígenas, incluindo os yanomamis. Para tanto, deve ser provado, além de uma dúvida razoável, que essa relação continha unidade e coesão ao ponto de ser controlada e instrumentalizada pelo governo Bolsonaro para implementar o plano comum. Esse controle deve ser intenso o suficiente para subjugar a vontade dos perpetradores diretos e assegurar um compliance automático com as instruções e políticas emanadas do Palácio do Planalto à época.

Os casos do TPI com base em CPI normalmente ocorrem no contexto de uma organização, ainda que informal, na qual é possível identificar uma forte coesão e hierarquia entre os membros. Essa coesão e hierarquia intraorganizacional permite comprovar mais facilmente o fluxo constante e certo de comandos e instruções a partir da liderança da organização até os seus membros mais inferiores, aqueles que efetivamente cometem os crimes manu propria. As duas condenações no TPI baseadas em CPI até o momento (Ntaganda e Ongwen) se referiram a milícias armadas, nas quais era clara a existência de uma estrutura hierárquica militar que foi utilizada pela respectiva liderança para implementar os seus planos comuns. 

Contudo, a existência de uma organização é apenas uma das formas possíveis nas quais o controle pelos co-perpetradores pode ser exercido. De fato, o TPI já considerou como aceitáveis níveis notadamente informais ou reduzidos de coesão para fins de CPI. No caso Ruto e Sang, por exemplo, a estrutura de poder alegada pela Procuradoria assumiu uma forma muito mais fluída e amorfa do que uma tradicional e rígida estrutura militar. Alegou-se que, enquanto líder político e agindo em conjunto com outros, William Ruto criou uma rede informal de perpetradores para incitar violência, composta por um variado grupo de pessoas do mesmo grupo étnico (os Calenjins), entre eles representantes políticos, comerciantes, fazendeiros, ex-membros da polícia e do exército e líderes tribais locais. O Juízo de Instrução do TPI, por maioria, concordou que esse grupo de pessoas era coordenado o suficiente para constituir uma estrutura de poder capaz de ser utilizada para executar o plano comum de Ruto e seus co-perpetradores (Ruto e Sang, 2012, paras 184-197, 313-316; o juiz Kaul dissentiu neste ponto: aqui, p 146, para 12). Contudo, o caso foi eventualmente arquivado sem uma decisão de mérito por falta de provas.  

Até mesmo aplicando o reduzido e informal nível de organização e controle aceito no caso Ruto e Sang, as informações acessadas pelos autores, especialmente aquelas disponibilizadas pela mídia e sociedade civil, não parecem amparar a tese de que haveria uma relação hierárquica de poder capaz de conectar os atores diretos dos crimes e a cúpula do governo Bolsonaro para fins de uma condenação baseada em CPI. A constatação de que representantes de mineradoras atuantes na Amazônia mantiveram um diálogo constante com o Palácio do Planalto durante o governo Bolsonaro (aqui, p 6-7) é um indício preliminar importante, mas, sem saber o conteúdo destas reuniões, esse diálogo em si não é suficiente para provar a existência de uma relação de poder na qual os perpetrados diretos foram instrumentalizados e tiveram a sua vontade subjugada pelo governo Bolsonaro. Parece haver uma inequívoca identidade de interesse entre mineradoras e o Planalto à época, mas isso também não seria suficiente. Investigações adicionais poderiam tentar obter provas aptas a evidenciar uma relação hierárquica de poder com garimpeiros e outros agentes que foi controlada pelo governo Bolsonaro. 

Outras modalidades de responsabilidade penal 

O foco da presente análise foi a CPI devido ao seu uso recorrente na jurisprudência do TPI, mas outras modalidades de responsabilidade previstas no Artigo 25(3) do Estatuto de Roma a priori também poderiam ser aplicáveis. 

Uma possibilidade poderia ser perpetração direta e/ou co-perpetração, com fulcro no Artigo 25(3)(a) do Estatuto. A aplicação destas modalidades não focaria na conduta de criminosos associados a atores econômicos na região amazônica, mas na conduta da própria cúpula do governo Bolsonaro em Brasília. Essa conduta incluiria particularmente a recusa de fornecer alimentos e insumos médicos a povos indígenas em situação de emergência, em especial aos yanomamis; discursos denegrindo indígenas; e a promoção e legitimação de atos de garimpo ilegal em ou próximos a terras indígenas. Para aplicar a perpetração direta, seria necessário demonstrar que essa conduta dos membros do ex-governo diretamente consistiu nos elementos materiais dos crimes imputados (Ongwen, 2021, para 2782). Por outro lado, uma condenação baseada em co-perpetração dependeria da presença de um acordo ou plano comum e uma contribuição essencial, tal como discutido acima. 

Outra possibilidade seria instigação aos crimes (Artigo 25(3)(b), Estatuto de Roma), a modalidade de responsabilidade que implica psicologicamente instigar, encorajar ou incitar outra pessoa a cometer um crime. A instigação pode ocorrer tanto por ação quanto por omissão e de forma expressa ou implícita. O instigador será criminalmente punido apenas se os seus atos ou omissões contribuírem substancialmente para o cometimento dos crimes. Exige-se, assim, prova de um nexo causal entre a instigação e a execução dos elementos materiais dos crimes (Bemba et al, 2016, para 81). 

Uma condenação criminal com base em instigação poderia focar nos discursos de Bolsonaro denegrindo indígenas e estimulando atividades ilícitas em suas terras; a visita do ex-Presidente a um garimpo ilegal; e medidas visando a promoção do garimpo irregular em terras indígenas. É importante enfatizar a diferença entre a promoção da mineração em terras tradicionais e a instigação de crimes sob a jurisdição do TPI contra povos indígenas: Bolsonaro apenas seria condenado como instigador caso a Procuradoria prove que ele teve a intenção de induzir a prática dos delitos ou tinha conhecimento de que, no curso normal das atividades de mineração em terras indígenas promovidas por ele, os crimes seriam cometidos (Bemba et al, 2016, para 82). Essa análise não deve ser feita em abstrato, mas levando em consideração o contexto concreto dos perpetrados e das vítimas na região amazônica. 

A facilitação aos crimes (Artigo 25(3)(c), Estatuto de Roma) também poderia ser relevante. Essa modalidade se aplica caso o acusado tenha ajudado ou facilitado o cometimento dos delitos (Bemba et al, 2016, para 94). Como elemento mental, ‘o cúmplice deve ter prestado a sua assistência com o objetivo de facilitar o crime. Não basta que o cúmplice apenas saiba que a sua conduta auxiliará o autor principal na prática do delito’ (Bemba et al, 2016, para 97). As mesmas observações fáticas acerca da instigação podem, mutatis mutandis, ser aplicadas aqui. 

A última possibilidade poderia ser responsabilidade pelo propósito comum de um grupo (Artigo 25(3)(d), Estatuto de Roma). O elemento central desta modalidade é o propósito comum entre um grupo de pessoas que atua para cometer atividades criminosas. O propósito compartilhado é o elemento que une essa pluralidade de indivíduos (Katanga, 2014, para 1620; Mbarushimana, 2011, paras 270-289). Esta modalidade de responsabilidade penal é notadamente flexível porque não seria necessário provar que o acusado era membro do grupo em questão ou possuía o elemento mental dos crimes cometidos. Basta que o acusado tenha conhecimento do propósito criminoso do grupo e faça uma contribuição significativa e intencional para os crimes desse grupo (Katanga, 2014, para 1631; Mbarushimana, 2011, paras 272-275). Para fins de aplicação do Artigo 25(3)(d) do Estatuto de Roma, a Procuradoria deve demonstrar que os agentes associados a atores econômicos na Amazônia, em especial garimpeiros, formaram um grupo agindo com um objetivo comum, qual seja, eliminar ou remover povos tradicionais de áreas de interesse econômico, incluindo por meio do cometimento de crimes. Também deve ser provado que as condutas dos membros do governo Bolsonaro contribuíram significativamente com os delitos deste grupo. Para tanto, a contribuição alegada deve ter tido um impacto substancial na execução dos crimes. A assistência às atividades do grupo em um sentido mais geral e amplo não seria suficiente para aplicar o Artigo 25(3)(d) (Katanga, 2014, para 1632).

Ver a continuação, “O Governo Bolsonaro e a Crise dos Yanomamis: Análise Crítica de uma Eventual Intervenção do TPI

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