O Governo Bolsonaro e a Crise dos Yanomamis (Parte 2): Análise Crítica de uma Eventual Intervenção do TPI

Ao longo dos últimos quatro anos a Procuradoria do Tribunal Penal Internacional (TPI ou Tribunal) recebeu, nos termos do Artigo 15 do Estatuto de Roma, ao menos seis comunicações acerca da situação crítica da população yanomami (aqui), além do relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia, também encaminhado pelo Senado Federal ao TPI (aqui). Apesar disso, a Procuradoria do Tribunal não iniciou até o momento nenhum procedimento para averiguar o cometimento de crimes internacionais nesse contexto, nem se pronunciou oficialmente a respeito das comunicações (para uma manifestação informal à mídia: aqui). 

O agravamento da crise yanomami e a revelação de novos fatos sobre o possível atrelamento de autoridades do antigo governo Bolsonaro à referida crise (aqui, aqui) reavivaram novos debates sobre a possibilidade de que os responsáveis sejam investigados e julgados pelo TPI (aqui, aqui). O presente ensaio visa contribuir a este importante debate, com foco na identificação de alguns fatores para avaliar a possibilidade de uma investigação e julgamentos pelo TPI acerca dos alegados crimes internacionais cometidos contra a população yanomami. A análise será dividida em três partes: jurisdição, admissibilidade e desejabilidade de levar a situação dos yanomamis ao Tribunal. 

Ver publicação anterior, “O Governo Bolsonaro e a Crise dos Yanomamis (Parte 1): Modalidades de Responsabilidade Penal no TPI“.

Jurisdição

Um primeiro fator a ser considerado é se o TPI teria jurisdição sobre a situação dos yanomamis. Segundo o Estatuto de Roma, a jurisdição do Tribunal se manifesta em quatro aspectos distintos: jurisdição material (ratione materiae), jurisdição pessoal (ratione personae), jurisdição territorial (ratione loci) e jurisdição temporal (ratione temporis) (Abd-Al-Rahman, 2021, para 42). Todos estes aspectos poderiam ser satisfeitos na situação dos yanomamis. A jurisdição ratione materiae do Tribunal aparenta estar presente, pois, à primeira vista, parece haver indícios de que os alegados delitos contra os yanomamis poderiam configurar genocídio e crimes contra a humanidade, ofensas previstas nos Artigos 6º e 7º do Estatuto de Roma (aqui, aqui, aqui). 

A jurisdição ratione temporis também estaria satisfeita, desde que as acusações se baseiem em condutas cometidas depois da entrada em vigor do Estatuto de Roma em face do Brasil, isto é, depois de 1º de setembro de 2002 (Artigos 11 e 126(2), Estatuto de Roma). O foco da eventual investigação no período do governo Bolsonaro (2019-2022) satisfaria este critério jurisdicional. 

Por fim, as jurisdições ratione loci e ratione personae (Artigo 12(2), Estatuto de Roma) são alternativas, sendo que a presença de apenas uma delas já seria suficiente para dar seguimento aos procedimentos no TPI (Abd-Al-Rahman, 2021, para 36). Em todo caso, as duas modalidades se encontram presentes. O Tribunal teria jurisdição ratione loci, porque os crimes foram cometidos no território de um Estado parte do Estatuto (a região amazônica no Brasil). A jurisdição ratione personae também se encontra presente pois os prováveis acusados (os membros da cúpula do governo Bolsonaro) são nacionais de um Estado parte do Estatuto de Roma (Brasil). Assim, o caso poderia seguir para uma análise de admissibilidade, já que os requisitos de jurisdição foram satisfeitos.  

Admissibilidade

No tocante à admissibilidade perante o TPI, dois elementos serão analisados: gravidade e o princípio da complementariedade. Acerca do primeiro elemento, a competência do Tribunal se restringe apenas aos crimes mais graves (Artigos 5º(1), 17(1)(d) e 53(1)(c), Estatuto de Roma). A gravidade é um fator avaliado em termos tanto quantitativos quanto qualitativos. Assim, o número de vítimas em si não é o elemento mais determinante, mas a existência de fatores agravantes e qualitativas ligados à prática dos crimes que os tornam particularmente graves. Estes fatores incluem: a natureza dos delitos; o nível de responsabilidade dos suspeitos; o elevado número de vítimas diretas e indiretas; o cometimento dos crimes em larga escala durante um período de tempo prolongado; a forma como as condutas foram cometidas; e o impacto geral dos delitos, especialmente nas vítimas e suas famílias (Situação no Afeganistão, 2019, paras 80-86; Situação no Quênia, 2010, para 62). A Procuradoria do TPI informou que dará atenção especial a crimes ‘cometidos por meio de, ou que resultem, inter alia, na destruição do meio ambiente, na exploração ilegal de recursos naturais ou na expropriação ilegal de terras’ e também a ‘crimes que têm sido tradicionalmente pouco processados, como crimes contra ou que afetam crianças, bem como estupro e outros crimes sexuais e baseados em gênero’ (Política da Procuradoria sobre Seleção e Priorização de Casos, 2016, paras 41, 46).

Alguns elementos do caso relativo aos yanomamis parecem indicar a existência de um nível elevado de gravidade que justificaria o envolvimento do TPI: (i) os suspeitos seriam ex-membros do alto escalão do governo federal brasileiro, incluindo o próprio ex-Presidente da República; (ii) os crimes ocorreram em vastas áreas, vitimando diferentes comunidades indígenas; (iii) povos indígenas são vítimas particularmente vulneráveis; e (iv) os alegados delitos envolvem áreas de prioridade na agenda do Procurador, tais como violência sexual, crimes contra crianças, degradação ambiental, exploração irregular de recursos naturais na forma de garimpo ilegal; e expropriação ilegal de terras tradicionais. 

Além da gravidade, outro fator a ser considerado para fins de admissibilidade é o princípio da complementariedade, segundo o qual a jurisdição do Tribunal é meramente complementar ou suplementar à jurisdição interna dos Estados. Assim, os Estados têm o papel primário de investigar e julgar os crimes sob a jurisdição do TPI. O princípio da complementariedade é regulado pelo Artigo 17 do Estatuto de Roma, que estabelece os critérios para a admissibilidade de casos perante o Tribunal. Segundo esse dispositivo, o TPI decidirá no sentido da não admissibilidade de um caso quando este ‘for objeto de inquérito ou de procedimento por parte de um Estado que tenha jurisdição sobre o mesmo, salvo se este não tiver vontade de levar a cabo o inquérito ou o procedimento ou, não tenha capacidade para o fazer’. Isso significa que um caso só será admissível frente ao TPI quando (1) inexista quaisquer investigações ou procedimentos, correntes ou concluídos, em relação a este mesmo caso perante jurisdições nacionais competentes; ou, (2) existindo um inquérito ou procedimento perante uma jurisdição nacional competente, quando o Tribunal considerar que o referido Estado não possui intenção ou capacidade genuína de levar o inquérito ou procedimento a cabo.   

É importante esclarecer que para satisfazer os requisitos do Artigo 17 do Estatuto é necessário que o inquérito ou procedimento nacional se refira ao mesmo caso apresentado ao TPI, ou seja, o caso investigado deve envolver o mesmo indivíduo e substancialmente a mesma conduta. Para tanto, o Tribunal desenvolveu o ‘teste da mesma pessoa/mesma conduta’ (em inglês: same person/same conduct test) (Ruto, Kosgey e Sang, 2011, paras 1, 47). Isso não significa, porém, que o indivíduo deva ser processado ou condenado pelos mesmos crimes da jurisdição do TPI. Por exemplo, uma condenação por homicídio perante a jurisdição nacional de um Estado poderia impedir o TPI de investigar os mesmos eventos e a mesma pessoa, ainda que demonstrado que tais atos poderiam se qualificar como genocídio e crimes contra a humanidade no Tribunal. Assim, a ausência de tipificação dos crimes previstos no Estatuto de Roma na jurisdição interna do Estado não necessariamente indica que esse Estado seja incapaz de julgar os suspeitos para fins de complementaridade. 

Este ponto é particularmente importante  no caso do Brasil, porque, apesar do crime de genocídio ter sido tipificado na lei penal brasileira, este não foi o caso dos crimes contra a humanidade. Sabendo que o STJ e o STF já assentaram o entendimento de que, à luz do princípio da legalidade, ações penais no Brasil não podem ter o direito internacional como fundamento legal, os réus por crimes contra os yanomamis poderão ser julgados por genocídio no Poder Judiciário nacional, mas dificilmente serão julgados por crimes contra a humanidade ante a ausência de previsão legal. Como dito acima, este fato em si é juridicamente irrelevante no contexto de uma análise sobre complementaridade. 

Apesar do Artigo 17 do Estatuto de Roma se referir especificamente ao controle de admissibilidade de um caso pelo Tribunal, esse controle é feito também pela Procuradoria antes mesmo da abertura de uma investigação. Durante a fase de análise preliminar, um dos elementos que a Procuradoria deve levar em consideração quando da decisão sobre a abertura de uma investigação é se ‘o caso é ou seria admissível nos termos do artigo 17’ (Artigo 53(1)(b), Estatuto de Roma). Como indica a Política da Procuradoria sobre Comunicações e Denúncias, a admissibilidade do caso também é, juntamente com outros elementos, parâmetro para a análise das informações recebidas por meio de comunicações nos termos do Artigo 15(2) do Estatuto. Nesse contexto, nos últimos três anos a Procuradoria do TPI decidiu pelo encerramento de duas análises preliminares – relativas às situações da Colômbia e do Reino Unido/Iraque – sem a abertura de investigações, por entender que os casos advindos destas situações não seriam admissíveis perante o Tribunal devido ao princípio da complementariedade. Em ambos os casos, os esforços nacionais em investigar os alegados crimes, ainda que sem resultar necessariamente em condenações, foram centrais na decisão da Procuradoria (aqui, aqui).

Em relação à situação dos yanomamis, as autoridades brasileiras expressaram a intenção de investigar os possíveis crimes cometidos pelo governo Bolsonaro por meio da abertura de um inquérito pela Polícia Federal em 25 de janeiro de 2023. O STF, por decisão do Ministro Luís Roberto Barroso, também ordenou a investigação de membros do ex-governo por suspeita de genocídio e outros crimes (aqui, aqui). Apesar da significância destas medidas, ainda é certamente muito cedo para determinar, de forma conclusiva, se as investigações pelas autoridades brasileiras obstariam que todo e qualquer caso relativo aos yanomamis seja eventualmente levado ao TPI. No entanto, a disposição e os esforços nacionais em investigar os alegados crimes tornam, frente ao princípio da complementariedade, pouco provável a abertura de uma análise preliminar por parte da Procuradoria do TPI no presente momento. A posse do Presidente Lula em janeiro de 2023 também indica que o contexto político brasileiro favorece a realização de tais julgamentos internamente. Como discorrido em mais detalhes abaixo, uma eventual intervenção pela Procuradoria do TPI nestas circunstâncias específicas poderia assumir a forma de complementariedade positiva, isto é, medidas destinadas a promover, acompanhar e auxiliar procedimentos nacionais (aqui, aqui, aqui). 

Desejabilidade

Paralelo à possibilidade jurídica da investigação dos alegados crimes pelo TPI à luz dos critérios de jurisdição e admissibilidade previstos no Estatuto de Roma, não menos importante é o debate acerca da desejabilidade de que a situação dos yanomamis seja levada à jurisdição internacional. Consideramos ser essencial um debate sério e profundo nesta seara, levando em consideração principalmente a perspectiva e os interesses das vítimas dos alegados crimes, a fim de evitar uma advocacia precipitada e cega pelo envio da situação ao TPI. Esse debate é necessário pois o impacto a curto e longo prazo, bem como as vantagens e desvantagens da justiça penal internacional são questões particularmente complexas e transdisciplinares (cf, por exemplo, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui). O presente ensaio não almeja analisar todos os aspectos desse debate, mas apenas apresentar alguns deles. 

De um lado, existem vantagens inegáveis de levar a situação dos yanomamis ao TPI. Quatro delas serão discutidas aqui. Primeira, o envolvimento do Tribunal poderia trazer ainda mais visibilidade a nível global aos alegados crimes contra as populações indígenas no Brasil, potencialmente aumentando o fluxo de apoio às vítimas e colocando maior pressão sobre as autoridades brasileiras para evitar impunidade pelos crimes já ocorridos e tomar medidas efetivas para prevenir novas violações no futuro. Segunda, o TPI é uma instituição que, em nível significativo, centra-se no interesse das vítimas. O envolvimento do Tribunal levaria a atuação do seu Fundo Fiduciário para Vítimas (Fundo), o órgão voltado a prestar assistência às vítimas nas situações em que o TPI opera. Independentemente de qualquer condenação no âmbito da ação penal perante os juízes do Tribunal, comunidades indígenas no Brasil sujeitas a atos de violência seriam beneficiadas pelos projetos do Fundo para a reabilitação física, psicológica e econômica das vítimas. Além disso, os Artigos 68(3) e 75 do Estatuto de Roma garantem às vítimas o direito de participar nos procedimentos judiciais no TPI e, caso haja uma condenação, uma ordem de reparações seria emitida pelos juízes contra o réu e a favor das vítimas. Estas ordens do TPI podem atingir valores expressivos, tais como USD 10.000.000 no caso Lubanga e USD 30.000.000 no caso Ntaganda, ainda que a sua implementação seja dificultada pela condição financeira limitada dos réus. 

Terceira, levar a situação dos yanomamis ao TPI não afastaria a ocorrência de julgamentos pelo Poder Judiciário brasileiro. À luz do princípio da complementaridade e das limitações institucionais e orçamentárias do Tribunal, o seu mandato se limita aos suspeitos mais responsáveis pelos crimes. Em termos práticos, isso significa que o TPI julgaria um número muito pequeno de réus, provavelmente apenas alguns membros da cúpula do governo Bolsonaro. Para fins de ilustração, veja o número limitado de suspeitos em algumas situações: Geórgia: três; Quênia: nove; República Democrática do Congo: seis; Uganda: cinco; Darfur: sete; Costa do Marfim: três; Líbia: cinco. Assim, a vasta maioria dos criminosos, incluindo alguns com significativa responsabilidade, serão julgados em cortes brasileiras, paralelamente aos procedimentos no Tribunal. De fato, as decisões do TPI poderiam criar precedentes relevantes para auxiliar os julgamentos no Brasil. Quarta e última, o Tribunal conta com um corpo de funcionários altamente especializado e com ampla experiência em investigações e julgamentos de crimes em massa (cf. aqui). 

Na perspectiva contrária, outros fatores exigem cautela quanto à decisão de encaminhar a situação dos yanomamis ao TPI. Três deles serão analisados. O primeiro é a duração dos procedimentos perante o Tribunal. Supondo que a jurisdição do TPI seja acionada, a condenação dos responsáveis pelos alegados crimes contra os yanomamis poderia levar anos para ocorrer. Uma pesquisa empírica por um dos autores indicou que a média de duração da fase de análise preliminar, aquela que antecede a investigação, é de cerca de quatro anos e meio. Esse número sobe para seis anos e meio quando a jurisdição do TPI é acionada de ofício (proprio motu) pela Procuradoria. 

Além disso, caso o envolvimento pelo Procurador do Tribunal seja efetivamente iniciado no Brasil, a disposição das autoridades brasileiras de julgar os responsáveis e os esforços já em andamento nos leva a presumir que a situação do Brasil poderia ser similar àquelas da Colômbia e do Reino Unido/Iraque, nas quais, para fins de complementariedade, a Procuradoria acompanhou continuamente por anos as medidas colombianas e britânicas para realizar julgamentos em suas próprias cortes. Como resultado, a análise preliminar das situações da Colômbia e do Reino Unido/Iraque duraram dezessete e seis anos, respectivamente, antes de uma decisão final de não prosseguir com uma investigação. Ambas as situações haviam sido instituídas proprio motu pelo Procurador. 

Ainda que uma eventual investigação seja iniciada pelo Procurador do TPI, o Brasil poderia solicitar, com fulcro no Artigo 18(2) do Estatuto de Roma, que essa investigação seja suspensa para que as autoridades brasileiras voltem a investigar os crimes. Trata-se de procedimento recentemente utilizado pelas Filipinas, Afeganistão e Venezuela. O Procurador poderia reiniciar a sua investigação apenas se formalmente autorizado pelo Juízo de Instrução do Tribunal e comprovado que os esforços investigativos internos do Brasil não foram suficientes ou que o Brasil abandou o seu interesse de realizar as investigações e ações penais (Artigo 18(2), Estatuto de Roma; Situação no Afeganistão, 2022; Situação nas Filipinas, 2023). Estes pedidos de suspensão da investigação do Procurador poderiam prolongar ainda mais os procedimentos no TPI. 

Em relação aos julgamentos de casos concretos contra réus, a média de duração dos procedimentos, desde a primeira aparição do acusado perante o Tribunal até a conclusão dos procedimentos em apelação, é de cerca de cinco anos. Em números absolutos, as duas condenações mais recentes emitidas pelo TPI, nos casos Ntaganda e Ongwen, ocorreram em 2021 e 2022, respectivamente, depois de oito anos de procedimentos cada. No extremo caso de Jean-Pierre Bemba Gombo, o seu processo perante o Tribunal durou dez anos e foi concluído com a absolvição do réu em recurso por todas as acusações. Assim, apesar da justiça brasileira ser criticada pela duração de seus processos (aqui, aqui), é importante considerar que o julgamento dos casos frente ao TPI não necessariamente apresentaria vantagens em termos de celeridade processual. Além disso, qualquer investigação efetiva por parte do TPI dependeria fortemente da cooperação do Brasil, tornando a participação das autoridades brasileiras fundamental mesmo no caso de os crimes não serem investigados e julgados nacionalmente.

O segundo fator ligado à desejabilidade de levar a situação dos yanomamis ao TPI diz respeito ao distanciamento geográfico e cultural do Tribunal, cuja sede se localiza na Haia, nos Países Baixos. Como dito pela Juíza Van den Wyngaert, ‘[h]á uma distância enorme – tanto no sentido literal quanto cultural – que muitas vezes separa a realidade das vítimas dos procedimentos [no TPI]’ (aqui, p 489). Assim, em um contexto em que as autoridades brasileiras parecem dispostas a investigar e julgar os alegados crimes, é válido questionar se seria no melhor interesse das vítimas dos delitos e da própria população brasileira como um todo que os casos contra os líderes mais responsáveis, possivelmente o próprio Bolsonaro, sejam julgados por um tribunal internacional localizado em outro continente. Além disso, a aplicação de normas e procedimentos penais internacionais pode ser vista pelas comunidades vitimadas como desconectada da sua realidade ou pior, uma forma de neocolonialismo. De fato, o TPI já foi criticado por sua incapacidade de lidar com elementos culturais locais, oriundos das situações onde os crimes ocorreram (aqui, aqui, aqui). 

O terceiro fator seria a barreira linguística. Português não é uma das línguas oficiais do TPI (árabe, chinês, espanhol, francês, inglês e russo) e suas línguas de trabalho são o francês e inglês, de forma que os procedimentos não seriam conduzidos em português (Artigo 50, Estatuto de Roma). Apesar disso, o Tribunal tem a obrigação de providenciar serviços de tradução para uma língua que o réu compreenda, seja ela qual for. Assim, tradução para o português seria ofertada (Regra 40(2)(b), Regulamento do Tribunal). Para o testemunho de possíveis vítimas indígenas que não falam português ou uma das línguas de trabalho do Tribunal, esse forneceria serviços de tradução simultânea para que as vítimas possam dar depoimento em sua própria língua materna (Regra 40(4), Regulamento do Tribunal). Contudo, as decisões pelo Tribunal provavelmente não seriam traduzidas para esta língua. 

Conclusão 

Ainda que o TPI tenha uma inegável importância na prevenção e combate a crimes internacionais, os Estados estão, na maioria das vezes, na melhor posição para investigar e julgar os crimes dessa natureza cometidos nos territórios sob sua jurisdição. A centralidade do princípio da complementaridade na arquitetura jurídica do TPI é indicativa desse fato. Os autores reconhecem que algumas das desvantagens do Tribunal identificadas aqui, tais como a barreira linguística e o distanciamento cultural, também podem ser aplicadas aos julgamentos perante cortes brasileiras. Apesar disso, no atual contexto, a preferência pela jurisdição nacional brasileira parece ser o caminho mais acertado na responsabilização dos supostos crimes cometidos contra os yanomamis. 

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