Novo caso das Imunidades na Corte Internacional de Justiça: Alemanha reage à Sentença Nº 238

Em 29 de abril de 2022, a Alemanha interpôs nova petição contra a Itália na Corte Internacional de Justiça (CIJ ou Corte) por suposta violação de sua imunidade soberana. Esse post busca revisitar a extensa polêmica envolvendo esses dois Estados e levanta alguns questionamentos que surgem com essa nova petição, especialmente: Como um novo pronunciamento da Corte pode contribuir para o debate sobre o direito internacional das imunidades? E, onde a prática do Brasil se situa nesse cenário? Para tanto, o post é dividido em três partes. Primeiro, recapitula a controvérsia entre Alemanha e Itália, posicionando a nova petição no interior da saga. Segundo, problematiza os pontos de tensão que podem emergir em relação ao direito das imunidades. Por fim, especula sobre o significado da prática recente à luz do caso Changri-lá decidido em 2021 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Nesse artigo defendo que (1) a Corte poderá contribuir para melhor afinar a relação entre o ordenamento internacional e doméstico no que tange às normas de imunidade estatal e (2) que a prática brasileira reitera o questionamento a essas normas e avança a tese da interpretação constitucional do direito internacional, assim como a prática italiana.

Em fevereiro de 2012, a Corte Internacional de Justiça julgou a controvérsia Imunidades Jurisdicionais do Estado (Alemanha v. Itália), caso no qual a Itália foi condenada por permitir a interposição e a execução de ações de reparação civil por violações de direito humanitário cometidas pelo Reich alemão durante a Segunda Guerra Mundial. Em linhas gerais, esse julgamento pacificou o entendimento de que, conforme o direito internacional costumeiro, deve ser reconhecida a imunidade de jurisdição e de execução do Estado mesmo quando acusado do cometimento de graves violações de direitos humanos e direito humanitário.

Para cumprir a sentença da Corte, a Itália adotou a Lei Nº 5 de 14 de janeiro de 2013 que estabeleceu, em seu artigo terceiro, a obrigação de juízes nacionais declararem ex officio sua falta de jurisdição e a possibilidade de revisão das decisões proferidas nos processos que violaram a imunidade alemã. Em 2014, o Tribunal de Florença questionou a constitucionalidade desse dispositivo e do artigo da lei nacional que executa o dever de acatar os julgamentos da Corte Internacional de Justiça baseado no artigo 94 da Carta da ONU. Esse processo culminou na controversa sentença nº 238 proferida pela Corte Constitucional Italiana. Nessa decisão, declarou-se a inconstitucionalidade desses dispositivos em relação ao julgamento do caso Imunidades Jurisdicionais do Estado legitimando juridicamente o descumprimento desse julgamento pela Itália.

Na sentença nº 238, a Corte Constitucional Italiana reconheceu a autoridade da interpretação da Corte Internacional de Justiça em relação ao direito internacional costumeiro sobre imunidade de Estados. Contudo, estabeleceu que o ordenamento jurídico doméstico apenas conforma com normas de direito internacional que não conflitam com princípios fundamentais da constituição. Dito isso, a corte italiana entendeu que a norma identificada pela CIJ de que Estados fazem jus à imunidade mesmo para atos que configuram crimes contra a humanidade e graves violações de direitos humanos conflita com os artigos 2º e 24 da constituição italiana, que preveem a garantia absoluta à proteção judicial.

Passados oito anos da sentença nº 238 e uma série de malsucedidas negociações diplomáticas, a Alemanha instituiu novo procedimento contra a Itália na Corte Internacional de Justiça alegando contínua violação da sua imunidade soberana pela demandada. Além das ações de reparação civil interpostas contra a Alemanha antes do julgamento de 2012 que continuam em andamento, os tribunais italianos receberam várias novas ações baseadas nas violações perpetradas pelo Reich alemão durante a Segunda Guerra Mundial e, em algumas delas, estão sendo tomadas medidas de execução. A Alemanha requer que a Itália seja condenada e obrigada a tomar medidas para cessar o efeito das decisões judiciais em violação à imunidade alemã, pagar reparação e oferecer garantias de não repetição. Ademais, requer-se o apontamento de medidas provisórias para evitar a execução de propriedades alemãs na Itália.   

Debate jurídico sobre o novo caso

Um possível argumento em defesa das medidas tomadas pelos tribunais italianos contestadas pela Alemanha é o de que o costume internacional se modificou desde 2012 e, atualmente, recepciona exceção à imunidade estatal por graves violações de direitos humanos e direito humanitário. Essa linha argumentativa tem suas dificuldades. Apesar do acirrado debate que gerou no meio acadêmico, a decisão da Corte de condenar a Itália foi proferida por expressiva maioria de votos (12 votos a 3 e 14 votos a 1). Isso indica que houve concordância de uma sólida maioria em relação ao conteúdo da norma costumeira em questão, o que reafirma sua consistência. Ademais, não parece haver tanta prática estatal desde 2012 em favor dessa exceção. São exemplos significativos, porém, o caso Changri-lá decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2021 e um caso do Tribunal Distrital Central de Seul de janeiro do mesmo ano relativo às chamadas “mulheres de conforto”.

Um eventual efeito da declaração do conteúdo da norma costumeira de imunidade estatal pela Corte em 2012 foi dificultar o desenvolvimento de uma exceção a ela por graves violações de direitos humanos e direito humanitário, o que poderia suscitar incontáveis pedidos individuais de reparação contra a Alemanha em foros domésticos. Apesar do surgimento de novos casos contestando essas normas, seu conteúdo parece estar estabelecido, de modo que a questão central do novo caso é a necessidade de impor o cumprimento dessas normas à Itália. Contudo, se a decisão anterior da Corte Internacional de Justiça não foi respeitada pelo Estado italiano, por que essa seria? Um novo descumprimento das determinações da Corte poderá, inclusive, prejudicar sua autoridade no cenário global. É possível, entretanto, que o pronunciamento da Corte nesse recente caso sirva para algo além de pressionar a Itália a retomar o cumprimento das normas de imunidade estatal perante a Alemanha.

Uma questão que não foi tocada no caso de 2012 e provavelmente será abordada pela Corte Internacional de Justiça desta vez é a relação entre o ordenamento jurídico internacional e doméstico. Em sua petição, a Alemanha questiona se a “nova leitura” da constituição italiana avançada pela sentença nº 238 pode fundamentar o exercício da jurisdição nacional sobre as ações de reparação objeto da disputa. A argumentação da Corte Constitucional Italiana incitou importante debate acadêmico sobre o cumprimento de obrigações internacionais e o respeito a preceitos constitucionais. Em suma, a Alemanha pretende obter uma declaração da CIJ de que a interpretação esposada pela sentença 238 não é conforme ao direito internacional.

Em 30 de abril de 2022, o presidente italiano aprovou o decreto legislativo nº 36 que, no artigo 43, cria um fundo de reparação para vítimas de crimes de guerra e crimes contra a humanidade perpetrados pelas forças do Terceiro Reich em território italiano ou contra cidadãos italianos no período entre 01/09/1939 e 08/05/1945. Para ter acesso ao fundo de reparação, exige-se uma sentença de avaliação e liquidação dos danos sofridos vítimas. Além disso, extingue-se as sentenças de execução proferidas contra a Alemanha. Especula-se que esse dispositivo tem o objetivo de evitar a decretação de medidas provisórias pela CIJ, já que retira o caráter eminente das medidas executórias contra a Alemanha – fator central para a satisfação do requisito de periculum in mora. Eventualmente, esse dispositivo poderá também evitar a condenação da Itália por violação da imunidade de execução alemã. Quanto à imunidade de jurisdição, contudo, a situação de violação permanece a mesma.

Ainda assim, em termos práticos, a criação desse fundo poderá ser um primeiro passo para a resolução de uma longa controvérsia entre Alemanha e Itália bem como para a reparação de inúmeras vítimas de graves violações de direitos humanos e direito humanitário que estão em litígio há décadas.

E o Brasil?

Em 23 de agosto de 2021, o Supremo Tribunal Federal julgou o caso Changri-lá, que envolveu o afundamento de um barco pesqueiro na costa brasileira por um submarino alemão em 1943. Nesse caso, fixou-se a tese de que “atos ilícitos praticados por Estados estrangeiros em violação a direitos humanos não gozam de imunidade de jurisdição”.

Um dos fundamentos adotados pelo Ministro Relator Edson Facchin foi a prevalência do respeito aos direitos humanos nas relações internacionais brasileiras, conforme art. 4º, II da Constituição Federal. Como observado, esse argumento possui pontos de semelhança com aquele adotado pela Corte Constitucional Italiana na sentença nº 238. Essencialmente, utiliza-se das normas constitucionais como filtro para a aplicação do direito internacional. Um pronunciamento da Corte Internacional de Justiça sobre a relação do ordenamento jurídico internacional e doméstico pode ser interessante para fazer frente à argumentação adotada no caso Changri-lá. Isso poderá trazer um novo elemento de consideração ao STF em futuros casos envolvendo normas de direito internacional. De um ponto de vista de política externa jurídica, a nova aplicação perante a Corte Internacional de Justiça demonstra pelo menos duas questões. Primeiramente, que a prática dos Estados em relação ao reconhecimento da regra da imunidade jurisdicional dos Estados continua sob questionamento e o caso brasileiro é uma peça importante dessa prática. É possível que o Estado italiano inclusive mencione o precedente brasileiro em sua defesa. Por outro lado, demonstra que o Estado alemão está fortemente disposto a defender a regra da imunidade jurisdicional tal como reconhecida pela Corte em 2012. Enquanto o caso Changri-lá encontra-se em pleno contraste com esse posicionamento.

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