Natureza, cultura e a episteme dos direitos humanos

Em 2017, a Colômbia solicitou uma opinião consultiva à Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre as obrigações internacionais dos Estados com relação ao meio ambiente, considerando grandes investimentos em infraestrutura. Em sua resposta à consulta, a Corte afirmou que a proteção do meio ambiente é um interesse jurídico per se, independentemente da sua utilidade aos seres humanos, e que há uma tendência a reconhecer a personalidade jurídica da natureza, isto é, a reconhecer a natureza como sujeito de direitos humanos. Uma decisão de 2018 da corte suprema colombiana conferindo esse status à Amazônia e outra de uma turma do STJ, de 2019, confirmam a tendência. Católicos que se autodenominam ‘tradicionalistas’ criticam o que chamam de ontologização da natureza. Neste texto argumento que podemos estar diante de uma mudança na episteme que informa os direitos humanos. 

Para sustentar esse argumento, retorno à história dos direitos humanos no intuito de explicitar o que estou chamando de matriz epistêmica dos direitos humanos. Depois, penso como a demanda por territórios não-estatais, em particular de indígenas por suas terras, tem ensejado uma mudança de paradigma, a qual passa pela rearticulação da relação entre natureza e cultura.

A episteme dos direitos humanos

Não cabe desfiar a história dos direitos humanos aqui, mas precisamos recuar a alguns de seus momentos nos séculos XVIII e XIX, para fazer ver elementos que interessam à articulação do meu argumento. Nesse recuo proponho alinharmos a história dos direitos humanos e dos direitos do homem, sabendo que, em algum grau, elas transcorrem em escalas diferentes – a internacional no caso dos primeiros, a nacional no caso dos segundos –, mas sabendo também que elas se relacionam, especialmente quando se trata da sensibilidade, que lhes constitui uma espécie de ossatura histórica, e da episteme que os informam. 

Dito isso, remonto às revoluções modernas – a americana, a francesa e a haitiana – nas quais os ‘direitos do homem’ são declarados no ato mesmo de fundar uma nova ordem jurídica e política. Eles aparecem como direitos ‘inatos’, ‘inalienáveis’, ‘auto-evidentes’, inscritos em constituições nacionais e fundamentados na natureza humana. Essa sua fundamentação implica que os seres humanos, por força da sua natureza, nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Seus direitos inatos são, assim, pré-políticos e pré-jurídicos, títulos que comunidades políticas atribuem a seres nascidos no gênero humano. 

A unidade biológica ancora a universalidade e a não historicidade dos direitos do homem. Em contrapartida, o fundamento na natureza possibilita construir os direitos do homem como direitos dos súditos contra o soberano, ainda que tendo no Estado a sede de autoridade. Tais direitos são, nesse sentido, elementos de civilização do poder ou de legitimação da autoridade estatal, e o Estado pode aparecer como uma formação política de povos civilizados, uma espécie de expressão política da cultura, a qual é a instância da variabilidade humana. 

Os direitos do homem emergem, portanto, em um processo de reconfiguração das relações entre natureza, cultura e política, pela qual a cultura é politizada e a natureza é retirada da história. Na episteme dos direitos do homem, os seres humanos são naturalmente iguais e os grupos humanos culturalmente diferentes. O Estado nacional, territorialmente delimitado, aparece como a formação política resultante do cultivo de um povo, um espaço vazio preenchido pela substância “nação”, e esse preenchimento se dá por um processo de produção de identificação. A forma universal da cidadania oblitera seu caráter etnicizado, o que é o mesmo que dizer que a universalidade formal da cidadania é, na prática, etnicamente restringida no Estado nacional.

No mesmo século XVIII torna-se corrente a ideia de progresso, entendido como uma progressão sobre uma temporalidade linear, e no XIX a concepção de história se torna decididamente teleológica. A organização política em Estados pode ser mobilizada, então, para justificar uma hierarquização dos povos e sua transformação em sede de intervenções de países europeus. A ideia era civilizá-las, sendo os povos civilizados, que experimentavam a civilização como status, o agente do processo homônimo. 

A civilização como status compreendia não só a forma da organização política, mas o capitalismo, mais especificamente, a industrialização, entendida como uma atividade humana voltada para a produção de bens em larga escala, em um processo de transformação de matérias extraídas da natureza em artefatos humanos. A industrialização teria instituído uma fronteira tecnológica e uma espécie de divisão internacional do trabalho, mas os agentes da civilização não teriam pretendido incorporá-la no processo de civilização dos povos colonizados.

No que interessa aos direitos do homem, como nem todos os povos constituem uma ordem política e jurídica pela qual os cidadãos se concedem direitos uns aos outros, é preciso, como se disse, intervir junto a eles de forma transformadora, a exemplo do que se faz na natureza. É interessante perceber que a humanidade do outro aparece agora contida em potência na natureza, mas requerendo atualização pela cultura. Isso deixa ver que a ideia de humanidade tem uma dimensão normativa, a qual se traduz em fronteiras inclusive dentro do território nacional e é refratária aos particularismos dentro do Estado: a unidade do território nacional e da nação supõem um controle da variabilidade cultural.

As contradições no funcionamento dessa matriz epistêmica, na qual se articulam natureza e cultura, deixam-se ver às claras no entreguerras, quando indivíduos pertencentes a povos nacionais que não governavam o Estado foram privados de todos os direitos do homem. A coincidência entre uma nação e um Estado não é uma necessidade lógica, mas tinha se tornado necessidade histórica. Em outros termos, a artificialidade do caráter inato da igualdade de todos os seres humano em dignidade e direitos se evidencia no momento que os Estados nacionais não conseguem dissolver as particularidades coletivamente afirmadas.

A inscrição da autodeterminação dos povos no direito internacional nos anos 1960 é uma resposta primordial ao problema e se forja nas interações de povos colonizados com o direito internacional a partir dos anos 1940. A autodeterminação se constrói nos quadros dos direitos humanos, no processo de descolonização e constituição de novos Estados. A denúncia anticolonial do reducionismo europeu, que escamoteava o racismo no universalismo humanista, é parte importante desse processo e se orienta para a construção de um humanismo a partir das margens. 

Tem-se, pois, no período uma postulação de um lugar para as diferenças entre os seres humanos. Também se registra uma discreta inscrição da questão ambiental no direito internacional, com a Conferência de Estocolmo sobre Desenvolvimento Humano e Meio Ambiente, em 1972, na qual prevaleceu, no entanto, a percepção de que a preservação do meio ambiente era um entrave ao desenvolvimento. 

Uma virada epistêmica?

O fim da guerra-fria abre caminho para normativos emergentes. Nos anos 1990, o tema do meio ambiente se articula com os direitos humanos no registro do “desenvolvimento sustentável”, que figura na Agenda adotada ao final da Eco-92, e de “dimensão ecológica da dignidade humana”, que orienta a construção de um direito humano a uma vida saudável em demandas relacionadas com a questão ambiental na Corte Europeia de Direitos Humanos. A “proteção ambiental” se justifica, nesse momento, porque a natureza é uma dimensão importante da vida humana. 

Nessa linha, dos anos 2000 em diante, consolida-se gradualmente o entendimento de que o processo de desenvolvimento, tal como vem sendo conduzido, é destrutivo do meio ambiente, a destruição ambiental é uma ameaça à vida humana na terra e essa destruição não deve ser vista como simples externalidade do crescimento econômico. A ideia de “desenvolvimento sustentável” adquire crescente centralidade, torna-se um horizonte para políticas na matéria, sobretudo de instituições internacionais, que preconizam a demarcação de territórios em função de biomas e outras considerações de ordem biológica. 

Ela comunica um esforço de compatibilização da proteção ambiental com o desenvolvimento econômico, do ambientalismo e dos direitos humanos com o capitalismo. Esse esforço ainda compreende a inclusão da pobreza entre os problemas da sustentabilidade e a construção da proteção pela via do patrimônio e da riqueza.

No mesmo período, etnias indígenas se articulam transnacionalmente no intuito de fazer avançarem suas demandas relacionadas sobretudo com suas terras e com sua autodeterminação. Trata-se da demarcação de terras de uso coletivo, com ou sem apropriação privada de bens, o que em qualquer hipótese é sintomático do desenvolvimento incompleto do capitalismo brasileiro, que não concluiu o processo de transformação da terra em mercadoria. Por isso suas demandas tensionam tanto o capitalismo quanto o Estado. Também por isso, a demarcação e o governo muitas vezes de largas porções do território nacional não são necessariamente inteligíveis para não-indígenas e são construídas como contrárias aos interesses da sociedade brasileira.

Nesse contexto, a construção pública dos sentidos das terras indígenas, à qual o direito no geral e os direitos humanos têm se prestado, contribui para conferir inteligibilidade às demandas. Elas configuram “territórios étnicos”, formam-se pelas interações de membros de um grupo, o qual faz coletivamente a gestão da terra e lhe infunde sentido, inscrevendo fronteiras que são, ao mesmo tempo, ponto de identificação e de relação entre o dentro e fora. As terras são fundamentais para a manutenção da subsistência e para a manutenção das sociedades indígenas. Demarcá-las é, assim, uma condição para a sobrevivência das etnias em um Estado nacional.

Não são poucos os conflitos de povos indígenas com agentes econômicos, como garimpeiros e madeireiros, em matéria de demarcação. Como o caso Raposa Serra do Sol evidencia, também não faltam conflitos com o Estado, em função de seu modelo de desenvolvimento, ancorado em pecuária, monocultura e mineração. Essas atividades contaminam rios, destroem florestas e matas, fazem ver os povos indígenas como entraves à prosperidade. 

Em resposta seja à inação do Estado, seja à ação estatal destrutiva, diferentes povos têm acionado nas últimas décadas tanto o STF quanto a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Por força das próprias contestações indígenas, da atuação de cientistas, de ONGs, de organizações internacionais e de alguns Estados, o agravamento da questão ambiental por políticas de desenvolvimento e pela globalização abrem espaço, ademais, para os povos indígenas apresentarem suas tecnologias de proteção ambiental, sua interação benéfica com a floresta, as maneiras pelas quais eles a têm enriquecido, seu conhecimento dos biomas. Abrem espaço para uma aliança. 

A relação dos povos indígenas com a terra se explica, em algum grau, pelo modo como articulam natureza e cultura. Desde a sua perspectiva, todos os seres são pessoas. Podem ser pessoas humanas ou pessoas não-humanas, mas têm alma. Não é pela alma, portanto, que as pessoas humanas e as pessoas não-humanas diferem umas das outras. A diferenciação se dá pelo corpo. É a natureza, portanto, e não a cultura, a instância de variabilidade, ao contrário do que se tem na matriz epistêmica que informa os direitos humanos. Por esse multinaturalismo, a pessoa humana é uma perspectiva do natural, que é múltiplo e sem o qual não há humano. 

Dessa perspectiva, a natureza tem valor intrínseco e sua proteção se justifica pela interdependência de todas as espécies. A demanda territorial se mostra, então, uma abertura para a apresentação de articulações não antropocêntricas de natureza e cultura. Trata-se de outra episteme, e, a julgar pelas produções de cortes nacionais e internacionais, ela parece participar na reconfiguração dos direitos humanos a partir da politização da natureza. Sua politização é uma resposta devida à atuação da humanidade como uma força geológica.

  • Doutora em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da USP e professora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Ufba, com bolsa Capes-PNPD. Em 2018 foi pesquisadora visitante junto ao Laureate Program in International Law da Universidade de Melbourne

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