“General Principles as a Source of International Law” e a (potencial) contribuição da academia à ‘globalização’ dos princípios gerais do direito

É curioso pensar como ‘a consciência jurídica do mundo civilizado’, uma noção incorporada no Estatuto do Instituto de Direito Internacional de 1873, refletida no Artigo 38(1)(c) do Estatuto da Corte Internacional de Justiça (cuja redação remonta a 1920), e contestada em 2002 por Koskenniemi em seu The Gentle Civilizer of Nations, ainda reverbera no sistema jurídico internacional de 2021. 

A obra de Saunders, bem-vinda para a discussão sobre os Princípios Gerais de Direito (PGD), surge no contexto de uma proliferação de trabalhos sobre esta fonte de direito internacional, talvez desencadeada pela recente inclusão do tema no programa da Comissão de Direito Internacional. Seu livro se destaca por diversas razões, uma das quais será o enfoque deste meu comentário e que se conecta ao parágrafo anterior: a ênfase dada pela autora à ‘necessidade de Princípios Gerais verdadeiramente globais’ (tradução livre, p. 267), bem como a maneira como ela examina essa proposta em seu trabalho. A propósito, um parêntese: o meu apreço pelo seu apelo a esse universalismo foi o que me levou a escrever esta contribuição em português, ao invés de em inglês (e, nesse sentido, desculpas à autora, cuja língua materna e livro são em inglês).

A obra começa com uma abordagem aparentemente positivista do tópico, por meio de uma revisão do histórico da redação do Artigo 38(1)(c) e um exame muito detalhado das referências de PGD na jurisprudência da Corte Permanente de Justiça Internacional, da Corte Internacional de Justiça e de outras cortes e tribunais internacionais (abrangendo os capítulos 2 a 6 do livro). O Capítulo 7 oferece uma revisão bibliográfica de obras acadêmicas que analisam os PGD. A abordagem seguida até então dá quase uma reviravolta, tomando um viés crítico nos dois capítulos finais. O Capítulo 8 reflete o apelo da autora por ‘Princípios Gerais Globais’ e o Capítulo 9 propõe um ‘Modelo de Princípios Gerais do Direito’. 

A contribuição mais significativa de seu livro é trazida pelo Capítulo 8 – ‘Princípios Gerais Globais’. Vejo este capítulo como a cereja no topo do bolo de seu trabalho, ao introduzir culturas jurídicas ‘não tradicionais’ no debate sobre a identificação de PGD. A autora pondera que PGD ‘podem ter um papel mais amplo nas discussões sobre globalização, universalidade e hegemonia do direito internacional’ mas, ‘para tanto, os princípios gerais devem ser verdadeiramente globais em sua natureza,  e não simplesmente um produto do pensamento ocidental’ (tradução livre, p. 242). Esse discurso, em si, não é novo. No entanto, Saunders vai além do já conhecido apelo à necessidade de representatividade, ao descrever e examinar sistemas jurídicos ‘diferentes daqueles geralmente considerados na análise de princípios gerais’ (tradução livre, p. 242): sistemas jurídicos ctônicos (sistemas utilizados por sociedades indígenas), religiosos (talmúdico, islâmico e hindu) e asiáticos. Esses sistemas, como a autora ilustra nos capítulos precedentes, não são referenciados na utilização de PGD perante cortes internacionais.

Como observado por diversos autores, a metodologia utilizada por tribunais internacionais para a identificação de PGD não é suficientemente representativa (ver, por exemplo, Ellis). Criticando essa realidade, Saunders argumenta que o acesso à informação se tornou muito mais fácil na contemporaneidade e, portanto, não há mais motivo para a ausência de uma metodologia comparativa verdadeiramente representativa para a identificação do conteúdo de PGD. Nesse ponto, eu abriria uma ressalva. Embora o acesso à tecnologia tenha de fato facilitado o acesso à informação – o que inclui acesso a diversos ordenamentos jurídicos, incluindo em línguas distintas por meio de softwares de tradução – e à prática estatal de outros Estados, essa realidade não se traduz de modo realístico no funcionamento das cortes internacionais. Como a própria autora aponta, o direito internacional tem fundamentos norte-ocidentais. O próprio fato de que as principais jurisdições internacionais são geograficamente baseadas na Europa, e que as línguas de trabalho dessas jurisdições são norte-ocidentais (em geral, francês e inglês) traz consigo limitações processuais, substantivas e sistêmicas no processo de adjudicação e tomada de decisões (ver, por exemplo, Cohen).

Além disso, não é por acaso que os tribunais fazem uso com parcimônia de PGD como fonte de direito internacional. Também não é por acaso que tal uso é realizado sem clareza metodológica – a meu ver, tal falta de clareza concede aos juízes certa discricionaridade em suas decisões. Os PGD foram concebidos como uma fonte de direito internacional destinada a preencher lacunas, para evitar o non liquet. Indiscutivelmente, parte das obscuridades e da falta de clareza metodológica associadas ao recurso a essa fonte se deve, precisamente, a este aspecto da sua natureza jurídica. A escolha dos sistemas jurídicos que embasam o estudo comparativo para a identificação de um PGD depende muito mais de uma iniciativa das partes a uma disputa em suas submissões à apreciação das cortes do que da iniciativa dos juízes. Isso se aplica, em particular, a sistemas jurídicos que não estão em ‘línguas tradicionais’ ou não são familiares aos juízes ou aos seus assistentes jurídicos, ou, como é o caso das tradições ctônicas descritas por Saunders, que não são sequer escritos. Juízes internacionais costumam ver os PGD como uma fonte subsidiária de direito internacional. Assim, na prática geral das cortes internacionais, os custos (em termos de tempo e recursos) associados à análise de sistemas não facilmente acessíveis, seja por questões linguísticas ou de disponibilidade de material, talvez não ‘valham a pena’. Referências a sistemas não-europeus podem ser encontradas apenas na opinião de vozes tidas como dissonantes, como as de Weeramantry e Cançado Trindade, dois juízes que tradicionalmente enfatizam muito mais a importância dos princípios gerais de direito como fonte de direito internacional.

A omissão em considerar tradições jurídicas não-ocidentais não apenas da parte da academia, mas também de juízes internacionais e até mesmo da Comissão de Direito Internacional (ver Forteau; Crawford) é um produto da conhecida concepção ocidental / eurocêntrica dominante de direito internacional. A publicação de trabalhos acadêmicos que coloquem essa abordagem em discussão é fundamental para contrabalancear tal tendência. Ao dar visibilidade a um tópico, a proliferação de tais debates tem o potencial de trazer repercussões em âmbitos de aplicação prática (dentre os quais, cortes internacionais), para além das discussões em âmbito acadêmico. Esse potencial é ainda mais relevante se os agentes do direito internacional (diplomatas, juízes, conselheiros, membros da CDI, etc.) mantém um canal de comunicação, ou fazem parte, do círculo acadêmico.

Ademais, mais especificamente para o objeto do livro em discussão, a produção de trabalhos científicos que introduzam e discutam sistemas jurídicos não tradicionalmente examinados propicia a incorporação desses na metodologia de identificação de fontes não escritas do direito internacional (o que se aplica aos PGD, mas também, com as adaptações devidas, ao costume internacional e ao jus cogens). O papel da academia nesse ponto não é de se subestimar, tendo em vista a limitada contribuição que os Estados, individualmente, parecem oferecer para o processo de ‘globalização’ dos PGD. Servem a ilustrar esse ponto as (quatro) respostas ao requerimento do relator especial do tópico Princípios Gerais de Direito na Comissão de Direito Internacional aos (193) Estados-membro da ONU, para que estes fornecessem instâncias de uso de PGD.Nesse sentido, a diversificação de vozes e produção de estudos que ofereçam métodos alternativos de pensar o direito internacional (mais recentemente, e notavelmente, Roberts) é uma ferramenta poderosa para avançar-se em direção a uma abordagem mais universal dos PGD. O trabalho de Saunders se enquadra nessa categoria, e explora a contribuição que sistemas jurídicos não comumente utilizados na metodologia de identificação de PGD podem trazer ao direito internacional. Nesse sentido, Saunders não apenas propõe que a metodologia para a identificação dos PGD seja verdadeiramente global: a autora descreve e explora sistemas que – de fato – são deixados de lado na prática do direito internacional. A meu ver, essa contribuição trazida pelo seu livro serve como uma grande fonte de inspiração para mais obras por vir.

  • Pesquisadora de Pós-Doutorado em Direito Internacional Universidade de Milão-Bicocca Especialista em Sanções Internacionais e Export Control Studio Legale Padovan (Milão, Itália) E-mail de contato: mariana.deandrade@unimib.it

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