Direito Internacional na “Palma da Mão”: lendo as (entre)linhas dos manuais brasileiros

O Simpósio de Pesquisa é uma iniciativa da do blog da ILA International Law Agendas para estimular o debate de ideias partindo de projetos de pesquisa em direito internacional em instituições acadêmicas no Brasil. Neste simpósio inaugural, apresentamos o projeto de pesquisa “Direito internacional ‘na palma da mão’: lendo os manuais brasileiros nas (entre)linhas.”

“Direito internacional ‘na palma da mão’: lendo os manuais brasileiros nas (entre)linhas” é um projeto de pesquisa desenvolvido desde 2019 pelo Grupo de Pesquisa CNPq “Direito, Globalização e Desenvolvimento” (DGD) da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a coordenação dos Professores Fábio Morosini (UFRGS) e Luíza Leão Soares Pereira (Universidade de Sheffield, Reino Unido). Participam desta pesquisa cinco estudantes de pós-graduação em nível de mestrado e doutorado, e onze estudantes de graduação.

Esta pesquisa se soma a outros esforços de caracterização e teorização acerca de uma identidade brasileira no direito internacional. (George Galindo “Direito Internacional no Brasil, Pensamento e Tradição”, no prelo; BADIN, MOROSINI & GIANNATTASIO, 2019; DE BRITO & NASSER, 2017). O objeto de análise desta pesquisa são os principais manuais de direito internacional em circulação no Brasil. Os manuais no campo do direito são, por excelência, tentativas de sistematização de suas diferentes áreas. Ao confeccioná-los, os autores revelam o que importa e o que não importa para o campo, e desta forma constituem o campo em si, desvalendo estruturas, poder e discursos (BERNARDINO, 2021, no prelo). Entendemos, assim, os manuais como um microcosmo do direito internacional no Brasil – uma fotografia aérea do campo como ele é ensinado, produzido, e reproduzido.

O título “Direito internacional ‘na palma da mão’: lendo as (entre)linhas dos manuais brasileiros” não foi acidental. Primeiramente, a ‘palma da mão’ remete à etimologia da palavra ‘manual’, e ao uso frequente deste tipo de material nas salas de aula das faculdades de direito brasileiras. Da mesma forma que eles são amplamente usados, os manuais muitas vezes são os únicos artefatos provando a ‘existência’ do direito internacional ‘nas mãos’ de estudantes brasileiros, e seu único contato com a disciplina, em vista da inacessibilidade do campo enquanto área prática do direito para a maioria dos estudantes no Brasil (DEZALAY & DEZALAY, 2017). Isso deve ser levado em consideração quando estudamos seu papel em forjar o imaginário do campo para juristas no país. O título também alude à ‘quiromancia’, ou leitura de mãos. Através da leitura de resultados empíricos através de uma lente crítica, buscamos desenhar as linhas (o que está escrito literalmente) e entrelinhas (o que foi excluído, ou as fontes escondidas sob as asserções) dos manuais para entender o passado, o presente, e como moldar o futuro do direito internacional no Brasil.

‘Na palma da mão’ – manuais como objeto de estudo

Nossa pesquisa analisa os dez principais manuais da disciplina em circulação no Brasil. São eles: Curso de Direito Internacional Público, de Alberto do Amaral Júnior; Curso de Direito Internacional Público, de Carlos Roberto Huzek; Direito Internacional, de Dominique Carreau e Jahyr-Philippe Bichara; Direito Internacional Público, de Francisco Rezek; Manual de Direito Internacional Público, de Hildebrando Accioly, Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva, e Paulo Borba Casella; Direito Internacional Público, de Marcelo Dias Varella; Direito Internacional Público, de Salem Nasser; Curso de Direito Internacional Público, de Sidney Guerra; e Curso de Direito Internacional Público, de Valerio de Oliveira Mazzuoli. Ainda que não atualizado desde 2005 em razão do seu falecimento, optamos por também analisar o Curso de Direito Internacional de autoria de Celso Duvivier de Albuquerque Mello por ainda ser adotado como material de ensino em vários cursos de Direito no Brasil. Alinhados com a persuasão de ambos os coordenadores desta pesquisa, os resultados apresentados aqui se utilizam de dados empíricos lidos através de uma lente crítica – que visa a prática do direito internacional com ‘uma nova consciência estratégica dos limites e possibilidades que [a disciplina] oferece para o engajamento político’ em prol de causas progressistas (KOSKENNIEMI, 2009) (tradução livre).

Este meta-exercício de mapear e melhor entender o direito internacional como ‘campo’, como disciplina, e como prática, usando manuais como “artefatos” dessa prática localizada no espaço (Brasil), não existe no vácuo. Informaram as discussões no Grupo de Pesquisa DGD a literatura sobre a sociologia do direito (BOURDIEU, 1987; LATOUR, 2009; DEZALAY, GARTH, 1996, sobre produção do conhecimento em direito internacional (BERNARDINO, 2021; BIANCHI, HIRSCH, 2021 (no prelo)), sobre manuais de direito internacional em particular (BERNARDINO, 2021 (no prelo); SALMONES ROVIRA, 2013; KENNEDY, 2006) sobre direito internacional semi-periférico (BECKER LORCA, 2015; OBREGÓN, 2006) e ensino de Third World Approaches to International Law (ESLAVA, 2019), Direito Internacional Comparado (ROBERTS, 2017), e literatura sobre a descolonização do ensino universitário em geral (HOOKS, 1994; BHAMBRA, GEBRIAL E NIŞANCIOĞLU (eds), 2018). Informados por esta literatura crítica, avaliamos os manuais não só como repositórios de dados sobre como o direito internacional é ensinado no Brasil, mas também como mapas das sensibilidades produzidas e reproduzidas pelos autores e praticantes do direito internacional no país.

Lendo linhas e (entre)linhas: agência e estrutura

Munidos deste arcabouço teórico, buscamos tensionar a estrutura do direito internacional que estes manuais descrevem, e a agência de seus autores e dos destinatários destas obras. Perguntas estruturais sobre o direito internacional no Brasil – há temas substantivos de interesse “nacional” que se repetem nos manuais? Há fontes privilegiadas entre suas citações? Quais são os padrões de nacionalidade e gênero entre os autores de obras secundárias citadas? – com perguntas sobre a agência dos autores destes manuais – de que forma os manuais refletem históricos profissionais, localização geográfica, formação acadêmica, e posicionalidade? Abraçamos neste processo o entendimento de que o poder dos manuais e seus autores é parte da complexa interação entre estes fatores, e que seu poder difuso de produzir e reproduzir estruturas e padrões de argumentação não só comporta como exige mais profunda análise. Desta forma, rejeitamos a ideia de que quaisquer autores possam produzir um manual ‘neutro’, ou descobrir um direito internacional fora desta tensão entre estrutura e agência.

Os resultados: alinhando passado, presente, futuro do direito internacional no Brasil?

Este Research Symposium é composto por este post introdutório e mais cinco posts escritos pelos demais pesquisadores integrantes deste projeto. O segundo post, de autoria de Julia Macedo, Gabriel Lee, Pedro Henrique Pereira Santos e Nathalia Melo, explora as biografias dos autores dos manuais estudados, mapeando marcadores de gênero, instituições onde obtiveram suas formações acadêmicas, bem como espaços de atuação – incluindo, em alguns casos, o exercício de outras carreiras paralelamente à academia. Os pesquisadores buscam relacionar aspectos biográficos dos autores com as escolhas feitas na elaboração dos seus manuais, como áreas de atuação profissional e de produção intelectual. O terceiro post, de autoria de Diego Flávio Fontoura José, Isadora Brondani e João Antônio Coutinho Areosa, explora as fontes utilizadas nestes manuais: tratados, casos, e referências bibliográficas secundárias. A partir dos dados coletados, os autores descrevem padrões encontrados, como a preponderância de certas instituições internacionais e domésticas entre as fontes primárias citadas, e na proveniência dos autores de fontes secundárias citadas.

O quarto post deste Simpósio, escrito por Fernanda Ratzkowski, Jamille Batista e Souza e Julia Brito Ospina, sugere uma tipologia dos manuais estudados, criada a partir das apresentações de dados e impressões dos pesquisadores sobre o conteúdo de cada manual. Desta análise emergem dois arquétipos de manuais de direito internacional no Brasil, por nós cunhados como como manuais-projeto e manuais-instrumento. Se manuais-projeto se caracterizam pela erudição e tecnicidade de sua linguagem, bem como por uma abordagem sistêmica do direito internacional, manuais-instrumento, por outro lado, tem as marcas da informalidade e da ausência de um projeto intelectual de direito internacional. No caso brasileiro, a associação dos manuais-instrumento com os concursos públicos para acesso às diversas carreiras da burocracia do estado brasileiro é inegável.

Matheus Gobbato Leichtweis, Isadora Rodrigues, Elisa Piva Corrêa e Thales Medeiros refletem sobre a dicotomia entre o universal e o regional do direito internacional a partir do microcosmo dos manuais brasileiros. Em diálogo com obras sobre Direito Internacional comparado (ROBERTS, 2017) e a posicionalidade dos membros da profissão (BECKER LORCA, 2015), debates sobre as possibilidades e limites de ambos arcabouços teóricos são aplicados ao caso dos manuais brasileiros. O post de Julia Brito Ospina e Julio Veiga-Bezerra encerram o simpósio refletindo sobre a experiência dos estudantes envolvidos no processo de elaboração desta pesquisa, e descreve as experiências vividas por aqueles pesquisadores no processo, no espírito tanto da literatura sobre pedagogia crítica (FREIRE, 1974; HOOKS, 1994), quanto sobre autorreflexão no estudo do direito internacional (D’ASPREMONT, 2017; KENNEDY, 2016).

O processo de execução e apresentação dos resultados desta pesquisa tampouco foi acidental, mas auto reflexivo e moldado por pedagogia crítica (FREIRE, 1974; HOOKS, 1994). Como parte do processo de descolonização do conhecimento que informa este exercício, buscamos descentralizar todas as fases do processo em relação a nós, coordenadores, horizontalizar as discussões pelos membros do grupo, promovendo um ambiente não-hierárquico. Os posts apresentados aqui são fruto de mais de um ano de reuniões semanais por Zoom entre todos nós, espalhados pelo Brasil e pelo mundo, em que levantamos perguntas, adaptamos hipóteses, discutimos ideias, analisamos dados, e chegamos a conclusões fascinantes sobre a prática e o ensino do direito internacional no Brasil. A conexão entre os membros do grupo, e a autorreflexão provocada pelo objeto de pesquisa, formaram parte fundamental do nosso processo.

Agora, compartilhamos os resultados parciais deste processo para a comunidade de internacionalistas. Aguardamos com antecipação seu engajamento.

Boa leitura!

Link para o post #2

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