Crise e Alternativas para a Reforma do Órgão de Apelação após a 12ª Conferência Ministerial da OMC

A reforma do Sistema de Solução de Controvérsias (SSC) da Organização Mundial do Comércio (OMC) se encontrava entre os temas da agenda da 12° Conferência Ministerial da OMC (MC 12), transcorrida entre 12 e 17 de junho deste ano. Não era o único.

Questões relativas à segurança alimentar mundial, limites de subsídios à pesca e a relação entre os direitos de patentes e as vacinas COVID-19, entre outros, compunham a agenda. Além disso, o recém iniciado conflito entre a Rússia e a Ucrânia adicionava complexidade ao encontro, embora o arrefecimento da crise sanitária mundial da COVID-19 pudesse trazer algum grau de esperança à MC 12.

A reforma do SSC e a tentativa de desbloqueio de seu Órgão de Apelação (OAp), a segunda instância do sistema, inúmeras vezes reverenciada como sua “joia da coroa”, são parte, assim, de um intricado quebra-cabeça de reformas do multilateralismo comercial.

Nessa contribuição, busca-se refletir sobre dois pontos: a origem dessa, já denominada, crise, com foco na paralização do OAp, e as alternativas sob a mesa, cujos desdobramentos se encontram em elaboração.

A crise do OAp e o jogo do resta um

O OAp se encontra paralisado desde o final de 2019. Formalmente, em função da incompletude de seu quórum. São necessários pelo menos 3 integrantes, de um total de 7 membros, para que o OAp possa operar plenamente, de acordo com o art. 17.1 do Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias (ESC).

O quadro abaixo demonstra o gradativo esvaziamento da composição do OAp, nos últimos anos:

Tabela 1 – O Jogo do Resta Um no OAp

Fonte: relatórios do OAp (2016, 2017, 2018 e 2019/20). Elaboração do autor. Destaques nos términos dos mandatos.

Quais foram as razões para tamanha redução de integrantes (7 para 1), em apenas 5 anos?

As visões mais disseminadas na literatura enfatizam o papel das sucessivas administrações dos EUA no que denominamos jogo do “resta um”. De forma geral, ora agrupados como razões sistêmicas, ora como formais ou substantivas, há uma lista de itens que os EUA vinham categorizando como “de longa data” e que resultaram, de forma pragmática, na paralização do OAp, por meio do bloqueio de novas nominações.

O relatório anual do United States Trade Representative (USTR), de 2018 ressaltava que a área de preocupação mais significativa do SSC vinha sendo os painéis e o Órgão de Apelação “adicionando ou diminuindo direitos e obrigações sob o Acordo da OMC”. Uma espécie de ativismo “judicial” do órgão estaria em curso, embora o relatório não tenha se apropriado desse termo. O relatório enumerava também os seguintes elementos como parte das preocupações de longa data: o desrespeito, pelo OAp, ao prazo de 90 dias para julgar recursos; a atuação continuada por integrantes que não são mais membros da AB; a emissão de pareceres consultivos sobre assuntos não necessários para resolver uma disputa (os chamados obiter dicta); a forma como o OAp revisava “fatos”; e o tratamento das decisões do OAp como precedentes, engessando o sistema.

Embora não se possa aprofundar em cada um desse itens nesta contribuição, é importante ilustrarmos alguns deles e a sua relação com os bloqueios de nominações. Por exemplo, Gao (2019) explica que, em 2016, a administração Obama teria concordado em não nominar a Professora Chang para um novo termo no OAp. As razões oficiais envolviam a atuação da professora, em quatro casos, nos quais teria “aumentado ou diminuído os direitos e obrigações dos Membros da OMC”, colidindo com a previsão do artigo 3.2 do ESC.

Não obstante, dois novos integrantes teriam sido indicados para recompor o OAp, aos fins de 2016, pelos Membros da OMC, com a condescendência dos EUA. O sr. Kim, da Coreia do Sul, e a Professora Zhao, da China, viriam a substituir seus compatriotas (embora não haja qualquer regra de obrigatoriedade de substituição dos integrantes de saída, por conacionais).

Uma série de eventos agravaria o funcionamento do OAp, em 2017. O termo do Sr. Kim no órgão se provou curto. Ele assumiu a posição de Ministro do Comércio da Coreia do Sul em agosto de 2017, resignando-se do OAp. Além disso, segundo Gao, a recém-empossada administração Trump continuaria a bloquear o lançamento de novas nominações, mesmo com a proximidade dos fins dos mandatos de Ramírez-Hernández (junho de 2017) e Van den Bossche (dezembro de 2017). OS EUA, em um dos seus argumentos, chamavam a atenção para o relatório do OAp na disputa EU – AD measures Fatty Alcohols from Indonesia (DS 442) previsto para ser circulado em setembro de 2017, quando Kim e Ramírez-Hernández não mais comporiam o OAp, em violação ao artigo 17.1 do ESC. Os EUA classificavam esse ponto (atuação continuada por integrantes que não são mais membros da AB) como “sistêmico”, necessitando ser corrigido antes de novas nominações.

Pollack (2022), por outro lado, busca origens mais longínquas para a indisposição dos EUA frente ao OAp. Haveria descontentamento de sucessivas administrações dos EUA, desde Bush, com os desfechos negativos de casos que tiveram atuação de integrantes do OAp, muito deles norte-americanos. Pollack lembra que em 2005, a professora Merit Janow compunha a tríade de julgadores no caso envolvendo subsídios ao algodão, do qual o Brasil saiu vencedor. Em 2006, ela também atuou em uma das condenações envolvendo a práticas de “zeroing” nas investigações antidumping dos EUA. Sua sucessora no OAp, Hillman, teria participado, em 2009, em nova condenação à prática de “zeroing”, um resultado caro para a composição de interesses domésticos dos EUA nas práticas de investigação antidumping. Hoeckman e Mavroidis (2019) enfatizam o peso das decisões acerca da ilegalidade do “zeroing” para o descontentamento dos EUA em relação à atuação do OAp. Criticam, ao mesmo tempo, essa postura. Existiria espaço para melhoras do OAp. Mas não haveria como se justificar o sucessivo bloqueio de nomeações como uma forma de protesto ao desfecho negativo de casos relacionados aos interesses dos EUA, segundo os autores.

Assim, chega-se a dezembro de 2019. Se com menos de três já não funcionava, restava um integrante no OAp. O sistema se encontrava, efetivamente, paralisado. Eventuais recursos ao OAp levariam às denominadas “apelações no vazio” (“appeals into the void”).

Apelações no vazio e o futuro do OAp

A “apelação no vazio” foi o termo utilizado para se descrever o efeito prático ao se recorrer a um OAp inoperante. Segundo informações da OMC, a carga de recursos sem movimentação no OAp alcançou, em setembro de 2022, 24 disputas. Ao considerarmos aquelas realizadas após o fim do termo de Thomas Graham no órgão, contabilizar-se-iam, pelo menos, 14 apelações no vazio. Dessas, os Estados Unidos figuram em 5 como apelantes; a Índia, em 3 (o Brasil não aparece como apelante em nenhum dos casos, mas em 2 deles aparece como apelado).

Com o impasse, os Membros da OMC interessados na retomada da fase de apelações do sistema passaram a buscar alternativas, por meio do que se convencionou chamar “grupo de Ottawa”. Enquanto não se alcançava consenso nas propostas do grupo sobre o OAp, Vidigal (2019) relembra que existiam, em princípio, três outras possibilidades para se lidar com a paralização do órgão. As partes poderiam fazer um acordo para não apelarem das decisões dos painéis; as partes poderiam entabular acordos bilaterais de arbitragem para apelação, nos termos do artigo 25 do ESC; e, ainda, as partes poderiam chegar a uma solução ex ante, plurilateral, de recurso à arbitragem, igualmente amparada pelo artigo 25 do ESC. Explicando os prós e contras de cada alternativa, Vidigal se inclina pela terceira opção. Advertia, entretanto, que a arbitragem não seria capaz de substituir totalmente o OAp, mas permitiria aos Membros da OMC prosseguir com a adjudicação, contornando o imbróglio de seu não funcionamento.

Em termos práticos, foi o que ocorreu. Inicialmente, dezesseis Membros da OMC se organizaram para, em março de 2020, criar o denominado Multi-Party Interim Appeal Arrangement (MPIA), com uma lista de 10 árbitros. O mecanismo foi notificado oficialmente à OMC em abril de 2020, já contando com mais de 40 Membros. Nascia com um estatuto próprio que buscava esclarecer quem assessoria os árbitros, quais regras se aplicariam à arbitragem e quais seriam as inovações do sistema. O artigo 1 do instrumento reconhecia a temporalidade do mecanismo, criado para ser utilizado enquanto o OAp não pudesse receber apelações acerca das decisões dos painéis em disputas, devido a insuficiência de membros do OAp. Em seu artigo 3, indicava-se que o procedimento arbitral de apelação seria baseado nos aspectos substantivos e processuais de apelação, nos termos do artigo 17 do ESC. O mesmo dispositivo deixava clara a intenção dos Membros de manterem as características centrais do OAp, incluindo independência e imparcialidade, ao mesmo tempo em que buscava aumentar a eficiência processual dos procedimentos de apelação, crítica frequente dos EUA, por meio das regras do Anexo 1 ao instrumento.

Até setembro de 2022, o MPIA contava com 52 partes, se considerarmos os Estados Membros da União Europeia (UE) de forma individual. Além da UE, Brasil e China também optaram pelo mecanismo, tendo o MPIA recebido 12 casos, até a corrente data (9 pendentes, 1 retirado, 1 finalizado e 1 para o qual se chegou a uma solução mutuamente acordada). Estados Unidos, Índia, Japão, Coreia do Sul, Rússia, entre outros, não fazem parte do MPIA.

Enquanto persiste o bloqueio, as discussões sobre o futuro do OAp continuam a ocorrer na OMC. O documento final da MC 12 deixa, entretanto, poucas pistas sobre seu delineamento. O parágrafo 4 do instrumento reconhece a existência de desafios e preocupações em torno do SSC, incluindo aqueles relacionados ao OAp, admitindo-se a importância e a urgência de endereçá-los. O compromisso expressado foi o de “conduzir discussões com o objetivo de retomar a total operacionalidade do sistema até 2024”.

Alguns Membros da OMC já expressaram as condições do jogo dessas discussões. As do EUA estão, formalmente, bem mapeadas, uma vez que se retorna aos argumentos externados no relatório de 2018 do USTR. Já as dos europeus estão resumidas em um documento de 2021. Em recente participação da Diretora Geral de Comércio da Comissão Europeia, Sabine Weyand, em evento sobre tendências do comércio na atual geopolítica, a diretora classificou como essencial a existência de uma fase de apelação. Isso parece afastar a possibilidade de se retornar a um modelo de instância única, que “desbloquearia” o mecanismo de forma radical, pela simples extinção do órgão. Ela relembra, ainda, que algumas das preocupações dos EUA encontram eco na visão europeia, como a necessidade de maior eficiência e efetividade do sistema, além de se buscar mais qualidade nos integrantes do OAP (e dos painéis).

Parece-nos, assim, que questões procedimentais, como obediência aos limites de 90 dias para decisões das apelações, podem encontrar espaço para evolução, como o próprio do MPIA já busca endereçar. Por outro lado, o tratamento acerca da força dos precedentes e como melhor trabalhar para que decisões não aumentem ou diminuam direitos dos Membros podem requerer ajustes mais delicados, pois envolvem regras de interpretação mais amplas de direito internacional. Basta lembrar, como indica Guillaume (2011), que as cortes internacionais podem se referir aos seus precedentes, mas sem caráter vinculante. O conceito de stare decisis não existe, simplesmente, para o direito internacional. Isso mostra que a conduta da OAp tem muito mais a ver com a prática de utilizar seus julgados anteriores como argumento de persuasão, e não como uma regra de vinculação, que necessitaria ser alterada.

Monitoremos as discussões. Longe de se caracterizar por um debate exclusivamente jurídico, de direito internacional, o modelo quase-judicial e de dupla instância do sistema, junto com o próprio multilateralismo, está sendo colocado à prova. A depender dos rumos, os resultados até 2024 poderão ter consequências amplas para o funcionamento das disputas no comércio internacional.

  • Professor do CEUB (Brasília), com atuação em Comércio Internacional, Direito Internacional Privado, Direito e Tecnologia e Metodologia. Faz parte do quadro técnico da ApexBrasil desde 2018. Doutor em Direito pela Maurer School of Law, Indiana University Bloomington (EUA), bolsista CAPES/FULBRIGHT (revalidado UFSC, 2010). Mestre em Direito (UFSC, 2004). Bacharel em Direito (UFMG, 2002) e Ciência da Computação (UFMG, 1996). As contribuições deste autor não representam a opinião de qualquer uma das instituições as quais se filia. E-mail: Gustavo.Ribeiro@ceub.edu.br

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