Armas Nucleares e Segurança Comum

Coluna “Desarmamento e Desnuclearização”

A humanidade está diante de uma escolha clara e urgente: falência ou superação

António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas

Em seu famoso artigo “O Fim da História?” publicado logo após a implosão da União Soviética, o filósofo e historiador Francis Fukuyama especulava se a Rússia pós-URSS emularia a trajetória da Europa ocidental a partir do final da Segunda Guerra ou se tomaria consciência de sua originalidade, permanecendo “encalhada na História”. O artigo terminava indagando se a “nostalgia pelo tempo em que a História existia” continuaria a alimentar a competição e o conflito. Essa pergunta parece haver sido respondida pela Rússia de Putin. 

Nos anos imediatamente seguintes à publicação do artigo de Fukuyama, a perspectiva de “destruição mútua assegurada”, eloquente e assustadoramente descrita pelo acrônimo em inglês MAD (Mutual Assured Destruction), começou a ser substituída por uma espécie de complacência, baseada na convicção de que as doutrinas de dissuasão nuclear teriam a virtude de impedir a catástrofe. As duas principais potências nucleares reconhecidas pelo Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) – Rússia e Estados Unidos – passaram a tratar de reforçar sua capacidade bélica com armas cada vez mais destruidoras e velozes em busca de uma ilusória supremacia e nos dias de hoje continuam empenhadas em uma acelerada corrida armamentista, seguidas a considerável distância pela China. Outros países preferiram não desenvolver seus próprios arsenais e confiar sua segurança à oferta de resposta nuclear por parte de uma ou outra das potências armadas, em caso de agressão. Alguns obtiveram capacidade nuclear própria, embora em níveis muito inferiores aos dos Estados Unidos e Rússia, com a qual pretendem dissuadir potenciais agressores. Todos esses parecem considerar o TNP como havendo conferido aos atuais possuidores uma espécie de licença para desenvolver legalmente seus próprios arsenais e mantê-los indefinidamente, ao mesmo tempo em que proíbe a todos os demais seguir o mesmo exemplo. As nove potências nucleares não se mostram inclinadas a considerar com seriedade propostas de eliminação dessas armas.   

Em contraposição, já na segunda metade dos anos da Guerra Fria a maior parte da comunidade internacional havia compreendido que a obtenção de armamento atômico seria prejudicial a sua segurança e à de todos os demais, além de provavelmente contraproducente do ponto de vista da estabilidade mundial. Assim, a grande maioria dos países gradualmente conformou-se com a discriminação, inerente ao TNP, entre “países nucleares e não nucleares” na esperança de que a vaga promessa de desarmamento contida no artigo VI viesse a tornar-se realidade. 

No Preâmbulo da Carta da organização mundial adotada em São Francisco em 1945 e posteriormente subscrita por todos os países, os povos das Nações Unidas se comprometeram a “poupar as gerações seguintes do flagelo da guerra”. Consagraram também, entre outros, os princípios fundamentais em que se baseiam a convivência e a internacional e a segurança comum: igualdade soberana entre os estados, cumprimento de boa fé dos compromissos assumidos e abstenção da ameaça ou uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer estado. Além disso, em caso de disputas capazes de colocar em perigo a paz e a segurança, concordaram em procurar antes de tudo soluções por meios pacíficos, tais como negociações, consultas, mediação, conciliação, arbitragem, decisões judiciais e outros. O Conselho de Segurança é o órgão responsável pela manutenção da paz e segurança internacionais. 

Apesar de suas notórias deficiências, durante as décadas passadas a ordem internacional vigente após a Guerra Fria baseada na Carta das Nações Unidas e em pactos globais e regionais parecia suficiente para atender às preocupações de segurança da maior parte das nações. Por sua vez, a confiança na dissuasão nuclear e a exclusividade garantida pelo TNP satisfaziam as potências centrais.  É interessante notar que a Carta não menciona o armamento atômico, pois foi adotada cerca de três semanas antes da primeira detonação experimental.  Entre os defensores do status quo nuclear não faltam vozes que atribuem a não eclosão de uma nova guerra mundial à existência do armamento atômico. No entanto, continuam a ocorrer inúmeros conflitos convencionais em diversas partes do mundo, principalmente em países em desenvolvimento, muitas vezes provocados ou estimulados por interesses políticos ou comerciais estranhos aos países diretamente envolvidos.

A invasão da Ucrânia por parte da Rússia, em fevereiro do ano corrente, causou uma brusca mudança no relacionamento internacional e abalou os fundamentos da ordem vigente. Demonstrou, principalmente, flagrante desprezo pelas normas do direito internacional, tais como expressas na Carta, em inúmeros tratados e acordos e na prática das relações internacionais. Constitui também uma advertência urgente sobre a importância da cooperação para a segurança comum baseada em regras universalmente aceitas e respeitadas.  A ameaça russa de uso preventivo de armas nucleares e a decisão de diversos países europeus de incrementar seus gastos com armamentos acentuam a percepção de fragilidade da atual situação no campo da segurança. 

O conceito de que “uma guerra nuclear não terá vencedores e não deverá nunca ser travada” foi formulado em 1967 por Ronald Reagan e Mikhail Gorbachov e reafirmado conjuntamente em junho de 2021 pelos novos mandatários dos dois países e em seguida pelas cinco nações reconhecidas como possuidoras de armas nucleares pelo TNP.  Ao final do encontro, Joe Biden e Vladimir Putin declararam conjuntamente sua disposição de “iniciar em breve um amplo diálogo bilateral sobre segurança estratégica”. No entanto, não houve seguimento e as relações entre ambos os países se deterioraram progressivamente a partir de então, enquanto se acelerava a erosão da arquitetura internacional sobre desarmamento e controle de armamentos. 

Embora em 2009 os presidentes Barack Obama e Dmitri Medvedev houvessem negociado e adotado importantes reduções nos arsenais nucleares de ambas as potências, ainda existem hoje mais de 13.000 dessas armas em mãos dos nove possuidores, 95% das quais em poder dos Estados Unidos e da União Soviética. Cerca de 4.000 se encontram em posição de disparo imediato ou em poucos minutos. 

Setenta e sete anos depois da adoção da Carta das Nações Unidas o mundo se vê em uma situação altamente perigosa, caracterizada pela extrema hostilidade entre dois campos adversários e pelas ameaças existenciais de uma guerra nuclear, da mudança do clima e do espectro de pandemias recorrentes. Esses desafios se tornam mais alarmantes diante da mescla tóxica de extremismo, nacionalismo exacerbado, violência contra minorias e redução do espaço democrático em diversos países. Torna-se, assim, urgentemente necessária a adoção de um novo paradigma que privilegie a cooperação para a paz e o desenvolvimento, o combate à desigualdade e o repúdio ao autoritarismo, assegurando a limitação do armamento convencional e abolição de todas as armas de destruição em massa. 

No ano passado, o Centro Internacional Olof Palme convocou um grupo de diplomatas, acadêmicos em relações internacionais e dirigentes de organizações não governamentais para atualizar o relatório preparado em 1982 por iniciativa do então primeiro-ministro da Suécia. O relatório Palme* desenvolvia o conceito de “Segurança Comum”, isto é, a noção de que nações e populações somente poderão sentir-se seguras quando todas as demais se sentirem igualmente seguras. Estabeleceu também certo número de princípios, inclusive o de que todas as nações têm direito à segurança, o de que a força militar não é um meio legítimo de resolver as disputas entre nações e o de que as reduções de armamentos são necessárias para a segurança mútua. 

 Um grupo de especialistas convidados pelo Centro Olof Palme em meados do ano passado elaborou uma nova versão daquele relatório. O texto será publicado em fins de abril corrente e aponta a necessidade de reafirmar a Carta das Nações Unidas e especialmente o respeito pelo direito internacional, inclusive em sua vertente humanitária, além de atualizar os princípios para a convivência entre os povos propostos pela primeira Comissão Palme. Acentua também a importância de que a base da ordem internacional deve ser a necessidade humana, pois não pode haver desenvolvimento sem paz e nem paz sem desenvolvimento; ambos não existiriam sem o respeito aos direitos humanos. :

Diante da crescente hostilidade entre a OTAN e a Rússia, da indefinição e ameaça de alargamento do conflito entre ambas e de menções recentes das mais altas autoridades russas à possibilidade de uso de armas nucleares, a ênfase sobre a segurança comum se torna ainda mais oportuna e premente. Desde a crise dos mísseis de Cuba, em 1962, o mundo não se via tão próximo de uma confrontação nuclear. Bastaria a detonação de uma pequena fração dos arsenais atômicos existentes para tornar a Terra inabitável. Em lugar do “fim da História” concebido por Hegel e outros filósofos que inspiraram Fukuyama, isto é, o estágio final da evolução sociocultural da humanidade, que inauguraria uma era de estabilidade e cooperação sob uma forma de governança justa e duradoura, chegaríamos assim à extinção completa da civilização tal como a conhecemos. Esse seria, na verdade, o fim da história humana.

*Independent Commission on Disarmament and Security Issues (1982) – Common Security: a Programme for Disarmament. (Londres: Pan World Affairs).

  • Embaixador, ex-Alto Representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento. Presidente das Conferências Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais. Colunista do IntLawAgendas.

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