A Responsabilidade Internacional do Brasil pelos Ataques Criminosos a Consulados no Rio de Janeiro

Nos últimos meses dois acontecimentos envolvendo repartições consulares no Rio de Janeiro entraram nas páginas policiais dos jornais. No dia 16 de setembro de 2021 um explosivo foi lançado por um homem ainda não identificado contra o prédio do Consulado-Geral da China na capital carioca, provocando danos ao edifício. Por meio de nota o Consulado considerou o incidente como um “grave ato de violência” e solicitou a “investigação minuciosa sobre o ataque, a punição do culpado nos termos da lei e medidas cabíveis para evitar que incidentes similares voltem a ocorrer”. No dia 30 de outubro foi a vez do Consulado-Geral de Portugal na cidade ser invadido por um grupo de homens armados, que fizeram o cônsul e sua família reféns enquanto o imóvel era assaltado. Os dois casos levantam a questão da responsabilidade internacional do Brasil pelos atos e suas obrigações internacionais em relação à proteção de missões estrangeiras no país, tema do qual o presente contributo pretende tratar. Em especial, será analisada a existência de uma obrigação em adotar medidas para prevenir novos ataques e investigar os ataques ocorridos.

As obrigações do Brasil como Estado receptor em relação a uma repartição consular são definidas em linhas gerais pela Convenção de Viena sobre Relações Consulares de 1963, da qual o Brasil é parte desde 1967. O parágrafo 1º do Artigo 31 da Convenção estabelece o princípio da inviolabilidade dos locais das repartições consulares, que também é aplicado a missões diplomáticas e organizações internacionais. O parágrafo 2º estabelece que ‘o Estado receptor terá a obrigação especial de tomar as medidas apropriadas para proteger os locais consulares contra qualquer invasão ou dano’. 

A principal característica da obrigação de um Estado em adotar medidas de proteção a espaços consulares é o seu caráter como uma obrigação de prevenção. Tal regra não estabelece a obrigação do Estado em impedir a violação dos locais consulares, mas de adotar todas as medidas possíveis para assegurar tal fim. Em outras palavras, o artigo estabelece um dever de proteção contra ações de agentes, grupos ou entidades privadas nocivas às funções consulares. Desta forma, o Estado receptor não se torna responsável direto por invasões ou danos à repartição consular, mas possui um dever específico de prevenir tais atos.

Este dever se manifesta prevalentemente em uma obrigação de conduta e requer do Estado receptor uma diligência especial em razão das especificidades da função consular. Conforme explica a Comissão de Direito Internacional no projeto que originou a Convenção de Viena de 1963, a expressão ‘obrigação especial’ empregada pelo parágrafo 2º do Artigo 31 foi utilizada justamente para enfatizar que o dever de proteção do Estado inclui a adoção de medidas que vão além daquelas normalmente adotadas para a manutenção da ordem pública.

Tendo sido determinada a existência da obrigação de proteção, resta saber como esta obrigação pode ser cumprida ou violada, tendo em vista que a Convenção de Viena de 1963 não determina as medidas necessárias requeridas ao Estado receptor. O direito internacional geral prevê a existência de um dever costumeiro dos Estados em proteger Estados estrangeiros contra atos hostis [1]. Este dever envolve a obrigação do Estado de usar seu aparato jurídico e administrativo para prevenir atividades nocivas e para investigar e punir tais atividades [2].

No campo do direito consular o dever de proteção se manifesta de maneira ainda mais específica. Algumas medidas concretas a serem adotadas pelo Estado receptor podem ser encontradas em diversas resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas de semelhante conteúdo que tratam de “considerações de medidas eficazes para aumentar a proteção, segurança e proteção de missões diplomáticas e consulares e representantes”. O tópico tem permanecido constante na agenda de discussões da Assembleia Geral nos últimos 40 anos e recentemente deu origem à Resolução 75/139 (2020). Mesmo sem caráter vinculante, a Resolução e suas antecedentes aprovadas de forma unânime pela Assembleia-Geral podem ser entendidas como manifestações do entendimento da comunidade internacional sobre a existência e o conteúdo de normas internacionais costumeiras sobre o tema, servindo de referência para a identificação de medidas concretas em relação ao dever especial de proteção dos locais consulares.

Em relação à prevenção à ocorrência de atos de violência contra repartições consulares, representantes e funcionários, a Resolução 75/139 (2020) insta em especial que os Estados adotem ‘medidas práticas para prevenir e proibir em seus territórios atividades ilegais de pessoas, grupos e organizações que incentivam, instigam, organizam ou envolver-se na perpetração de atos contra a segurança de tais missões, representantes e oficiais’ (para. 3). Neste caso específico, a obrigação de prevenção se materializa no monitoramento por parte de órgãos de inteligência de possíveis atividades criminosas contra os consulados ou que possam afetá-los e no estabelecimento de um aparato legal capaz de lidar com tais atividades. 

Este aspecto é especialmente relevante no caso do atentado contra o Consulado-Geral da China, tendo em vista uma tendência nos últimos anos de ofensivas contra asiáticos no Brasil e no mundo. Em 2020 a Polícia Federal realizou uma operação para investigar a ameaça de ataques terroristas contra o Consulado da China em São Paulo, poucas semanas após a ocorrência de alegadas ameaças terroristas contra a Embaixada Chinesa em Washington. Tais precedentes indicam a possibilidade de conhecimento por parte das autoridades brasileiras sobre a existência de ameaças anteriores contra missões do país. 

A Resolução 75/139 também solicita que os Estados assegurem que atos de violência já praticados ‘sejam investigados com o objetivo de levar os infratores à justiça’ (para 4), recomendado a cooperação com outros Estados na troca de informações e assistência às autoridades judiciais (para. 8). Tal dever de investigação não obriga que o Estado receptor garanta a punição dos envolvimentos em condutas nocivas a consulados, estabelecendo apenas o dever de realização de um esforço diligente para tal fim. Neste caso, a realização de uma investigação competente com o eventual acionamento dos órgãos do poder judiciário e colaboração com os Estados que enviam satisfaria tal dever.

A existência de tal obrigação é confirmada pelos casos analisados. Em nota à imprensa divulgada em relação ao assalto à casa do Cônsul Português, o Ministério das Relações Exteriores garantiu o ‘máximo empenho das autoridades brasileiras na investigação’ do caso, ‘auxiliando as investigações’ e oferecendo apoio à Embaixada e aos consulados de Portugal. Em nota divulgada em 30 de setembro, o Itamaraty afirmou que o Departamento de Polícia do Rio de Janeiro está conduzindo com ‘celeridade e presteza’ as investigações sobre o atentado contra o Consulado-Geral da China, de modo que ‘todos os esforços serão empregados para elucidar o caso e levar o responsável ou responsáveis à Justiça’. A preocupação do Itamaraty em ressaltar que os atos de violência serão investigados de maneira diligente indicam que a investigação, mesmo não estando expressamente prevista na Convenção de Viena sobre Relações Consulares de 1963, é considerada um dever do país.

As obrigações de prevenção e investigação incumbentes ao Brasil não se limitam aos interesses dos países já afetados pela violência, interessando também outras repartições consulares e missões diplomáticas no país. Este interesse pode ser visto na manifestação da Embaixada dos Estados Unidos de repúdio ao ataque contra o Consulado da China e na afirmação do Itamaraty de que serão empregados todos os esforços ‘para proteger a segurança do corpo diplomático e consular acreditado no Brasil’ de forma geral. 

Este aspecto de interesse comum do dever de proteção de repartições consulares também fora ressaltado pela Corte Internacional de Justiça no caso da invasão da Embaixada e Consulados dos Estados Unidos no Irã em 1979, quando esta entendeu que o incidente não poderia ser visto como algo “secundário” ou “marginal” em razão dos princípios legais envolvidos e do papel das atividades consulares na promoção do desenvolvimento de relações amistosas entre nações (paras. 23 e 25).

Em conclusão, até o momento não é possível afirmar que o Brasil possa ser responsabilizado pelos incidentes ocorridos em consulados no Rio de Janeiro. No entanto, o dever de proteção incumbente ao Estado brasileiro requer que esforços sejam feitos no sentido de adotar medidas práticas para evitar novas ocorrências e buscar a investigação e punição dos responsáveis pelos incidentes, pondo em prática as promessas feitas pelo Itamaraty. A longo prazo o descumprimento de tais medidas pode ter como efeito a responsabilização do Brasil por omissão e o aumento da insegurança por parte de missões estrangeiras, o que teria um efeito nefasto nas relações exteriores do país.

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[1] Tal obrigação pode ser observada também no direito da neutralidade em caso de conflito armado. Tal princípio foi reconhecido no célebre caso das Reclamações do Alabama de 1872, ocasião em que o tribunal arbitral considerou que o Reino Unido ‘falhou em usar a diligência devida no desempenho de suas obrigações como país neutro’. [2] PISILLO-MAZZESCHI, Riccardo, The Due Diligence Rule and the Nature of the International Responsibility of States. German Yearbook of International Law, v. 32, pp. 9-51, 1992, p. 34.

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