Em 26 de julho de 2023 um golpe de Estado deflagrado no Níger por forças militares lideradas pelo Chefe da Guarda Presidencial Abdourahamane Tchiani afastou o presidente Mohamed Bazoum, e suspendeu a constituição do país. A Comunidade Econômica de Estados da África Ocidental (CEDEAO) convocou uma sessão extraordinária da Autoridade de Chefes de Estado e Governo (“Autoridade”) para debater a situação. O comunicado final não apenas condenou a ruptura, mas determinou que a CEDEAO deveria “tomar todas as medidas necessárias para restituir a ordem constitucional na República do Níger. Essas medidas podem incluir o uso da força” caso Bazoum não fosse reconduzido ao posto em uma semana. A Autoridade também instituiu a aplicação de oito “medidas” com efeito imediato.
A ameaça de uso da força pela organização é o chamariz do comunicado e foi tema de análise por outros autores como Tsagourias e Buchan, Stefanelli e Hammady. Todavia, este ensaio quer se dedicar às demais medidas impostas, mais especificamente quanto sua legalidade sob o direito internacional. O objetivo é responder à seguinte questão: as medidas adotadas pela Autoridade são lícitas sob as normas do quadro legal da CEDEAO e sob o direito internacional geral? Para tanto, será preciso investigar a violação de um dever de manutenção do regime democrático pelo Níger (1), a competência da Autoridade para a implementação das medidas (2), a legalidade dessas medidas quanto a obrigações oponíveis aos membros da organização (3) e a hipótese de que as medidas possam ser consideradas contramedidas de terceiros adotadas unilateralmente, embora por meio dos mecanismos da Comunidade (4).
- As obrigações do Níger quanto à preservação do regime democrático
A adoção das medidas pela Autoridade foi justificada pelo rompimento constitucional no Níger. O Art 4º do Tratado da CEDEAO (1993), seu instrumento constitutivo, afirma que a Comunidade adota como princípio “a promoção e consolidação do sistema democrático em cada um dos Estados membros”. Contudo, embora o Art. 5º(2) imponha uma obrigação de “se abster de qualquer ação que possa ameaçar [os objetivos da CEDEAO]” uma interpretação textual da convenção conclui que o termo “objetivos”, na verdade, se refere ao Art. 3º, em que não consta a preservação do regime democrático. Por outro lado, o Art. 2º(c) do Protocolo sobre o Mecanismo de Prevenção de Conflitos (1999) prevê que os membros “reafirmam seu compromisso” com “a promoção e consolidação de um regime democrático e instituições democráticas em cada um dos Estados membros”.
Uma interpretação alternativa dos termos “promoção e consolidação” da democracia poderia sugerir que o dispositivo teria caráter progressivo, exigindo consideração das condições políticas do Estado e se propondo antes a veicular diretrizes do que impor uma obrigação cujo descumprimento ensejaria responsabilização sob as normas da CEDEAO. Entretanto, uma interpretação sistêmica – i.e., levando em consideração o quadro legal da organização como um todo – sublinharia a relação inerente entre “promover e consolidar” a democracia e sua perpetuação, de modo que rupturas autoritárias poderiam ensejar a responsabilidade por não cumprir esta obrigação. Conclui-se que o Níger se encontrava sob uma obrigação de promover e consolidar o regime democrático e suas instituições sob o Protocolo de 1999, possivelmente violada pelo golpe.
- A competência da “Autoridade” da CEDEAO para a imposição das medidas
Um segundo nível de análise investiga a competência da Autoridade para adotar as medidas. Esta questão se desdobra em duas: (i) saber contra quais atos cometidos pelos Estados membros a Autoridade possui competência para aplicar medidas e (ii) saber quais medidas a Autoridade está autorizada a ordenar.
O Art. 77(1) do Tratado de 1993 impõe que, mediante o descumprimento de uma obrigação “devida à Comunidade”, a Autoridade pode impor sanções ao membro recalcitrante. Sabe-se que obrigação de manutenção do regime democrático advinha não do tratado constitutivo, mas do Protocolo de 1999. Contudo, a redação visa todo o quadro legal da organização, e não somente ao tratado constitutivo, ensejando a competência para adotar sanções mediante uma violação do Protocolo. Embora esse dispositivo não tenha sido citado pelo comunicado, trata-se, especulativamente, de sua provável base legal.
Uma segunda fonte de competência seria o Art. 10 do Protocolo de 1999. Esse dispositivo determina que compete à CEDEAO adotar decisões “sobre temas de paz e segurança”, por meio de todas as formas de intervenção ou de resolução de conflitos. O Art. 25(3), mais específico, garante a aplicação do mecanismo em casos de conflito interno que suscite um desastre humanitário ou séria ameaça à paz e estabilidade na subrregião. É esta hipótese que parece ser adequada para descrever o “evento motivador” das medidas.
A latitude do dispositivo ignora se o golpe pode ser considerado uma “séria ameaça à paz e estabilidade”. Por outro lado, termos amplificados como “todas as formas” induzem a uma pretensão de legitimidade para adotar medidas nessas circunstâncias. Assim, considera-se que a Comunidade possui competência para impor medidas retaliatórias.
Em relação à segunda questão: quais medidas poderia impor a Autoridade?
As medidas elencadas pelo comunicado exigem dos membros: (i) o fechamento dos espaços terrestre e aéreo (ii) a proibição de transporte aéreo comercial; (iii) a suspensão de transações; (iv) o congelamento de transações de serviços; (v) o congelamento de ativos em bancos centrais; (vi) o congelamento de ativos do governo e de empresas estatais em bancos comerciais; (vii) a suspensão de programas de assistência e (viii) o banimento de viagens, bem como o congelamento de ativos dos organizadores do golpe.
Já o Art. 77(2) do Tratado de 1993 elenca taxativamente sanções muito menos gravosas passíveis de serem adotadas – como a suspensão de direitos ao voto e participação nas atividades comunitárias ou a suspensão de projetos de cooperação. O contraste revela uma diferença fundamental: ao contrário das sanções propostas pelo Tratado, aquelas adotadas contra o Níger implicam no descumprimento de outras obrigações internacionais dos Estados membros (seja sob o quadro legal da Comunidade, seja fora dele). Uma argumentação isolada à CEDEAO pararia por aqui. Contudo, a Comunidade não opera em um regime autocontido. É preciso ponderar quais obrigações devidas pela organização e seus membros sob podem ser violadas ao implementar as medidas – e seu impacto na legalidade das próprias medidas.
3. A legalidade das medidas sob o direito internacional
O cumprimento das medidas exigidas pela Autoridade implica no descumprimento de outras obrigações internacionais oponíveis aos membros da CEDEAO. Eis o argumento que as torna questionáveis, pois o quadro legal da CEDEAO não impõe que as obrigações dele decorrentes são hierarquicamente superiores a outras obrigações devidas pelos Estados – analogamente ao Art. 103 da Carta da ONU. Por consequência, sustenta-se que as medidas devem ser compreendidas como contramedidas de terceiros, pois (i) implicam no descumprimento de obrigações internacionais (ii) justificado pelos Estados membros não lesados pela violação, mas sim partes de um tratado que impõe obrigações erga omnes partes, (iii) em função de uma violação anterior.
O primeiro grupo de violações corresponde a compromissos do próprio Tratado de 1993 – os deveres de cooperação nos âmbitos da agricultura, energia, turismo, comércio etc. As medidas adotadas pelos membros demonstram violações desses dispositivos. Por exemplo: a cessação de fornecimento de energia ao Níger pela Nigéria não se coaduna com o Art. 28(2), que exorta os Estados a coordenar a oferta confiável de energia entre os membros. Por sua vez, a Costa do Marfim suspendeu todas as relações comerciais com o Níger, em contraste com o Art. 41 sobre a derrogação de restrições ao comércio. Já as medidas que proíbem circulação não se conciliam com as obrigações sob o Art. 34. Enfim, o congelamento de ativos e a proibição de transações e empréstimos afetam as obrigações de movimentação de capitais.
As medidas podem também violar obrigações devidas sob o direito internacional geral. O congelamento de ativos estrangeiros sem indenização pode descumprir obrigações sob o direito costumeiro dos investimentos e da cooperação econômica, como a de tratamento justo e equânime – um problema enfrentado pela Corte Internacional em Certain Iranian Assets (2023) discutido aqui. Outras medidas podem ser compreendidas como uma intervenção nos assuntos domésticos de um Estado – atividades sobre as quais os Estados têm liberdade de ação absoluta (eg, a escolha do regime político). Ao adotar medidas prima facie ilícitas visando alterar o regime nigerino, os Estados podem incorrer em uma violação. Uma terceira hipótese parte dos efeitos provocados pelas medidas aos direitos humanos da população, acarretando a responsabilidade dos membros a partir de tratados de direitos humanos.
4. Conclusão: Contramedidas de terceiros por meio de organizações internacionais?
A análise acima revela que há subsídios para se interpretar as medidas adotadas não como sanções sob o quadro legal da Comunidade, mas como contramedidas de terceiros adotadas pelos Estados membros não-lesados através do aparelho institucional da organização. Essa conclusão não seria inédita, inclusive na própria CEDEAO: em 1980, a comunidade impôs medidas à ruptura democrática na Libéria, como a suspensão da membresia – a suspensão não era uma sanção prevista pela Comunidade. Exemplos recentes incluem o congelamento de ativos da Síria pela Liga Árabe em 2011 e sua suspensão da Organização para Cooperação Islâmica em 2012, esta última manifestamente contrária ao Art. 3(3) da Carta, segundo o qual “nada na presente Carta deve comprometer os direitos de um Estado membro em relação à membresia.” Por fim, as medidas impostas pelo Conselho de Cooperação do Golfo contra o Qatar em 2017 procedem ao descumprimento de obrigações relativas a aviação e a proteção de ativos devidas entre membros.
Embora essas medidas tenham sido adotadas por órgãos competentes e sob os ritos processuais, o uso de organizações internacionais para a imposição de medidas unilaterais coercitivas ultra vires é um desenvolvimento questionável. O fenômeno implica em mais uma camada de justificativa para a legalidade de contramedidas de terceiros – desta vez a partir da prática de Estados frequentemente críticos do uso de tais medidas. Um terceiro eixo se revela ao se questionar se estas sanções observam as limitações ao uso de contramedidas, como o teste de proporcionalidade, ou ainda a não-afetação de obrigações de direitos humanos. De todo modo, é claro que as medidas impostas pela CEDEAO contra o Níger não são expressamente permitidas pelo seu quadro-legal e implicam, ao serem executadas pelos Estados membros, no descumprimento de outras obrigações internacionais as quais estes estão submetidos. Trata-se de um desenvolvimento eloquente do direito das medidas prima facie ilícitas, ou contramedidas de terceiros.
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Rodrigo Machado Franco é Mestrando em Direito Internacional Público pela Universidade Federal de Minas Gerais. Membro do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais Stylus Cyuriarum (UFMG/CNPq).