A decisão da Corte Internacional de Justiça no caso Certain Iranian Assets

A decisão da Corte Internacional de Justiça (CIJ ou ‘Corte’) de 30 de março de 2023 encerrou a disputa Certain Iranian Assets entre Irã e Estados Unidos (EUA) iniciada em 2016. A controvérsia referia-se às supostas violações cometidas pelos EUA do Tratado de Amizade, Relações Econômicas e Direitos Consulares firmado pelos dois Estados em 1955 e em vigor até 2018. Essas violações teriam sido cometidas mediante a aplicação de sanções unilaterais na forma de congelamento de bens de companhias iranianas – e executados por tribunais dos EUA como reparação a indivíduos vítimas de atos de terrorismo pretensamente financiados pelo Irã. A argumentação iraniana sublinhou o caráter ilícito das sanções, bem como acusou o tratamento discriminatório e injusto adotado pelos EUA mediante o não-reconhecimento da personalidade jurídica e das imunidades de empresas iranianas diante de seus tribunais domésticos e a expropriação sem compensação de seus bens e fundos alocados nos EUA. Mediante tais ações e omissões, segundo o Irã, os EUA teriam procedido em violação a diversas disposições do Tratado de 1955. 

A Corte decidiu que os EUA violaram o Tratado de 1955 ao (i) não-reconhecerem o “status jurídico” das companhias iranianas e suas cortes domésticas (Art. III, 1); (ii) negarem tratamento equânime e justo e não-discriminatório às companhias iranianas (Art. IV, 1); (iii) expropriarem sem a devida compensação bens e fundos de propriedade iraniana (Art. IV, 2) e impedirem a liberdade de comércio e navegação entre os dois países por meio da adoção das sanções (Art. X). Por estas violações, a Corte impôs aos EUA o dever de cumprir com a reparação, cujo valor deve ser negociado entre as partes.

Nesse breve ensaio, três aspectos da decisão serão explorados: a clarificação pela Corte sobre a doutrina processual das “mãos limpas”, o exercício de interpretação do Tratado de 1955 pela Corte e a ausência do direito das contramedidas na decisão. Em sua decisão, a Corte esclareceu um ponto ainda inconcluso de seu direito processual ao interpretar sua jurisprudência anterior, realizou um exercício heterodoxo de interpretação de tratados sob a crítica de um número considerável de seus juízes e se absteve de discutir o papel interpretativo das regras secundárias de responsabilidade internacional – à modelo dos demais casos apresentados pelo Irã sob a cláusula de jurisdição do Tratado de 1955. Por consequência, a decisão pode ser lida como uma extensa discussão sobre o papel da Corte como intérprete do direito internacional. 

A doutrina das mãos limpas e a Corte Internacional de Justiça

A decisão lançou luz sobre um aspecto obscuro do direito processual da Corte. Em suas objeções preliminares, os EUA afirmaram que o Irã acionara a Corte “com as mãos sujas” pois a República Islâmica conduziria “uma constante campanha política para avançar seus próprios interesses por atos desestabilizadores e contrários ao direito internacional” – em alusão ao suposto apoio pelo governo iraniano a grupos terroristas e engajamento em “guerras por procuração” no Oriente Médio. A doutrina das “mãos limpas” prescreve que, como decorrência de princípios gerais do direito como a boa-fé e ex injuria jus non oritur, uma parte não pode basear sua apelação a um tribunal internacional em decorrência da prática de um ato ilícito.

Em sua decisão preliminar de 2019, a CIJ não aceitara a alegação estadounidense. No entanto, a defesa dos EUA apresentou o mesmo argumento durante a fase de mérito, desta vez não como objeção à jurisdição, mas como defesa contra as alegações iranianas. A Corte afirmou que a “doutrina das mãos limpas” foi raramente reconhecida por órgãos judiciais internacionais, e recordou sua decisão em Jadhav (2019) segundo a qual “uma objeção com base na doutrina das mãos limpas não poderia tornar inadmissível uma petição baseada em um título de jurisdição válido” – interpretação já sugestionada em Oil Platforms (2003) e em contradição com sua antiga jurisprudência no caso River Meuse (1937). Além disso, a Corte asseverou que a aplicação da doutrina dependia de critérios estritos, entre eles “que a violação cometida pela parte demandada apresentasse algum nexo com as alegações da disputa”. No caso, a Corte recusou qualquer pretensa violação do Tratado de 1955 pelo Irã na condução de suas alegadas práticas de desestabilização regional.  

Embora a decisão da Corte sobre a doutrina das mãos limpas pareça uma singela adição ao seu complexo sistema processual, seu potencial de repercussão em casos futuros é grande – notadamente em disputas inseridas em contextos de conflitos armados, rivalidades políticas ou regimes sancionatórios. A mudança jurisprudencial parece empenhada em proteger o exercício da função judicial da Corte mesmo quando a conduta do Estado apelante não for “irrepreensível ou acima de qualquer crítica”, reservando seu direito de utilizar a mesma conduta como instrumento para interpretação e delineamento da disputa. Trata-se de uma bem-vinda flexibilização dos muitos impasses à estreita jurisdição da CIJ. 

A interpretação do Tratado de 1955

A decisão em Certain Iranian Assets foi estruturada como um exercício de interpretação do Tratado de 1955. A Corte já procedeu, no passado, a exercícios complexos de interpretação de tratados e alinhou-se à regra geral inscrita no Art. 31 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (CVDT), segundo a qual “um tratado deve ser interpretado de boa-fé, segundo o sentido comum atribuído aos termos do tratado em seu contexto e à luz de seu objeto e finalidade.”

Na controvérsia, as partes discordaram quanto à caracterização do Banco Markazi como uma “companhia” capaz de desenvolver “atividades comerciais” nos termos do Tratado de 1955. Em sua decisão preliminar de 2019, a Corte afirmou que o Banco Markazi possuía personalidade jurídica própria no direito doméstico iraniano e que, como qualquer outro banco, poderia potencialmente engajar-se em atividades soberanas (i.e. o exercício do controle da política monetária) ou comerciais (e.g. em transações financeiras).  

Não obstante, em 2023, a Corte afirmou que, diante das provas apresentadas pelas partes, ela seria incapaz de designar as práticas do Banco Markazi como “atividades comerciais” ao interpretar o Tratado de 1955 no âmbito da disputa. Em seguida, a decisão sublinhou que, ao conduzir transações financeiras, o Banco Markazi agiria “nos quadros e pelos propósitos de sua principal atividade (…) sua função soberana como banco central.”

Trata-se de um exercício heterodoxo dos poderes de interpretação de tratados internacionais. A Corte não seguiu o critério adotado em sua decisão de 2019 segundo o qual a natureza da entidade decorre das atividades por ela praticadas. No caso do Banco Markazi, essas atividades estão elencadas na Lei Iraniana Monetária e Bancária de 1960 e formam parte integrante da personalidade jurídica da instituição reconhecida pela própria Corte.  A compra e venda de ativos, conduta em questão no caso, encontra-se entre as atividades reconhecidas pela Lei de 1960 como “típicas”. Por consequência, a argumentação da Corte de que o Irã não foi capaz de oferecer  evidências para a caracterização do Banco Markazi como uma companhia que “exercia atividades comerciais ao tempo da disputa” parece entrar em contradição com a própria metodologia adotada pela Corte. Isto porque a defesa iraniana apresentou não apenas a fonte jurídica a partir da qual o Banco Markazi seria competente para realizar atividades comerciais, mas também a prova de que, no tempo relevante e no âmbito da disputa, tais atividades foram efetivamente conduzidas por meio da compra e venda de ativos e gestão e investimento de títulos de crédito. Essa questão foi solevada nas opiniões separadas ou dissidentes dos juízes Benounna, Robinson, Salam, Yusuf e do juiz ad hoc Momtaz

A argumentação da Corte aponta para o fato de que tais atividades seriam meramente uma forma pela qual o Banco Markazi exercia sua função soberana na condução da política monetária. Nesse sentido, a atividade exercida pelo Banco deveria ser compreendida, segundo a Corte, “dentro de um contexto” e “levando em consideração quaisquer laços [entre a atividade e] sua função soberana.” Contudo, a decisão não avança ao caracterizar o exercício de uma atividade comercial “com fim em si mesma” em distinção a uma atividade “como meio para realização de outro fim”. Além disso, ela não explicita qual norma do direito internacional exigiria que, para além da atividade conduzida pelo Banco Markazi, sua caracterização como “companhia” nos termos do Tratado de 1955 dependeria, em paralelo, das ligações entre essa atividade e a função soberana típica da instituição. Enfim, a Corte também não esclarece por que a proteção dos ativos do Banco Markazi não se insere no “objeto e finalidade” de um tratado que visa “garantir direitos e oferecer proteção às pessoas físicas e jurídicas que desenvolvem atividades de natureza comercial” em cada um dos Estados-partes.

Tendo em vista que o afastamento da demanda referente ao Banco Markazi produziu um impacto considerável no valor das compensações a serem pagas pelos EUA – 1.75 bilhões de dólares dos ativos congelados eram de propriedade do Banco Markazi, contra alguns poucos milhões pertencentes a outras entidades – a interpretação adotada parece de algum modo contraditória e não completamente de acordo com a prática interpretativa adotada pela Corte no passado.

Por que não contramedidas?

A disputa em Certain Iranian Assets tem como pano de fundo as sanções unilaterais adotadas pelos EUA contra o Irã. Em 1996, em emenda ao Foreign Sovereign Immunities Act (FSIA), as cortes estadunidenses passaram a afastar sistematicamente as imunidades de jurisdição do Irã em casos impetrados contra o Estado iraniano ou entidades públicas iranianas por vítimas de atos terroristas alegadamente patrocinados por Teerã – por exemplo, o caso Peterson, apresentado por vítimas do bombardeio das instalações militares dos EUA em Beirute em 1983 à Suprema Corte. Já em 2002, os EUA promulgaram o Terrorism Risk Insurance Act (TRIA) que passou a servir como mecanismo de execução da emenda do FSIA, na medida em que permitia que as cortes domésticas utilizassem bens e recursos congelados do Estado designado como “patrocinador” como satisfação para as vítimas de terrorismo. Essa determinação foi expandida em 2012 pelo Iran Threat Reduction Act, bem como pela adoção de novas medidas dedicadas ao represamento de bens e recursos iranianos – destaque para a Ordem Executiva 13599 que bloqueou todos os ativos iranianos “no território dos EUA ou sob possessão e controle dos EUA.”

Uma vez que a suspensão de imunidades de jurisdição, o congelamento de ativos e o não-reconhecimento do direito à propriedade são ab initio práticas ilícitas sob o direito internacional, é curioso que os Estados Unidos tenham optado por não apresentar como defesa , nos termos do direito da responsabilidade dos Estados, um argumento inscrito nas regras relativas a contramedidas como circunstância excludente de ilicitude. Segundo a Parte III dos Artigos sobre Responsabilidade dos Estados da CDI (ARSIWA) e a própria CIJ em Gabcikovo-Nagymaros (1997) e ICAO Council Jurisdiction (2020) uma contramedida é um ato ilícito cuja ilicitude é afastada pelo fato de ser cometido “em reação a outro ato ilícito praticado por um terceiro.” Esse novo elemento na apresentação da controvérsia permitiria à Corte interpretar as alegadas violações pelos EUA do Tratado de 1955 como reações aos atos ilícitos cometidos pelo Irã em sua suposta campanha de desestabilização e financiamento a práticas agressivas. Essa possibilidade é plausível, na medida em que os EUA justificaram reiteradamente suas práticas pela “necessidade de obter reparações às vítimas de atos terroristas apoiados ou financiados pelo Irã.” 

Não é menos curioso que também o Irã tenha se recusado a apresentar a disputa, ainda que subsidiariamente, nos termos do direito das contramedidas. A disputa poderia apontar que os Estados Unidos, ao adotarem ações como o congelamento de ativos e a suspensão de imunidades, não respeitaram o requisito de proporcionalidade exigido pela regra costumeira refletida no Art. 51 dos ARSIWA, ou ainda não cumpriram com a necessidade de suspender as contramedidas quando “a disputa está pendente perante um tribunal que tem autoridade para tomar decisões vinculativas sobre as partes” nos termos do Art. 52, 3, (b).

É evidente que a jurisdição ratione materiae da Corte decorria expressamente do Tratado de 1955, e a disputa a ela colocada não dizia respeito à legalidade das ações de desestabilização conduzidas pelo Irã ou aos seus efeitos sobre cidadãos dos EUA. Dessa maneira, a Corte não estaria autorizada a, proprio motu, adjudicar ou discorrer sobre o tema das contramedidas. No entanto, isso não a impediria de mobilizar as regras secundárias de responsabilidade internacional com o objetivo de interpretar o Tratado de 1955 por meio de “outras normas relevantes” nos termos do Art. 31, 3(c) da CVDT. As razões pelas quais a Corte não adotou uma categoria jurídica mais clara do que “medidas ilícitas” e “sanções” ao se referir às práticas dos EUA só se explicam pelo comportamento das partes. 

Vale, em conclusão, ter em conta as linhas escritas pelo Juiz Robinson em sua opinião dissidente segundo as quais somente a desorganização da comunidade internacional justifica a prática de sanções unilaterais. Segundo o juiz, “é a disfuncionalidade do Conselho de Segurança, resultante do poder de veto (…) que cria um vácuo preenchido pela soberania dos Estados.” A serem verificadas as repercussões dessa fala no latente tema das medidas unilaterais coercitivas ou “contramedidas de terceiros”.

“Old habits die hard”

Irã e EUA são litigantes veteranos na Corte Internacional de Justiça. Além das quatro controvérsias em que as partes já se opuseram no passado, uma quinta encontra-se pendente. Os dois Estados romperam suas relações diplomáticas na esteira da Revolução Islâmica e experimentaram uma escalada de tensão sem precedentes após o assassinato do General iraniano Qasem Soleimani em 2020, o que conduziu a um cenário de profunda desconfiança entre as partes durante todo o período em que correu o procedimento em Certain Iranian Assets. A Corte cumpriu com sua função de apaziguadora de disputas por meio do direito internacional e resolveu uma complexa disputa relativa ao controverso tema das sanções unilaterais. Por outro lado, a retirada dos EUA do Tratado de Amizade, Relações Econômicas e Direitos Consulares em 2018 pode tornar mais raras as controvérsias com Irã e EUA em lados opostos do Grande Salão do Palácio da Paz.

  • Rodrigo Machado Franco é Mestrando em Direito Internacional Público pela Universidade Federal de Minas Gerais. Membro do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais Stylus Cyuriarum (UFMG/CNPq).

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