A Convenção sobre Assistência Jurídica Mútua para Crimes Internacionais: Comentários sobre a Conferência Diplomática de Ljubljana

Entre 15 e 26 de maio, diplomatas de diversos Estados se reunirão no Grand Hotel Union em Ljubljana, Eslovênia, a fim de eliminar uma relevante lacuna no sistema jurídico internacional: a ausência de um tratado multilateral que detalhadamente regule cooperação interestatal para a investigação e punição dos crimes internacionais mais graves. Além da inexistência de um tratado sobre crimes contra a humanidade (aqui, §§10-15), o regime jurídico para a cooperação internacional voltada a punir os responsáveis por genocídio e crimes de guerra na Convenção do Genocídio de 1948 e nas Convenções de Genebra de 1949, respectivamente, são insuficientes e ultrapassados. Além disso, o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (TPI) centra na cooperação vertical entre os Estados e o Tribunal, não abordando a cooperação horizontal entre os Estados para investigar e processar suspeitos em suas cortes nacionais. A Conferência de Ljubljana tentará erradicar esta lacuna por meio da adoção da Convenção sobre Cooperação Internacional na Investigação e Punição do Crime de Genocídio, Crimes contra a Humanidade, Crimes de Guerra e outros Crimes Internacionais (Convenção).

O projeto dedicado à adoção deste tratado teve início em novembro de 2011, quando a Bélgica, os Países Baixos e a Eslovênia coorganizaram uma reunião de especialistas na Haia sobre cooperação criminal internacional. O evento confirmou a necessidade urgente de um novo tratado que regule assistência jurídica mútua e extradição entre os Estados para o julgamento nacional de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Em resposta, aqueles três Estados, juntamente com a Argentina, estabeleceram a Iniciativa de Assistência Jurídica Mútua (Iniciativa), voltada a promover discussões e negociações para a adoção deste necessário tratado, e assumiram a função de Mesa Diretora (‘Core Group’ em inglês) responsável por liderar o processo. A fim de garantir diversidade geográfica, o Senegal e a Mongólia posteriormente se juntaram à Mesa Diretora da Iniciativa.

Após uma tentativa fracassada, em abril de 2013, de introduzir a Iniciativa na agenda da Comissão da ONU sobre Prevenção ao Crime e Justiça Criminal (aqui, §321), a Mesa Diretora continuou a dar seguimento à Iniciativa de forma independente, como um processo autônomo fora da ONU e da Assembleia dos Estados Partes do TPI. Essa independência é uma diferença importante em relação ao Projeto de Artigos sobre a Prevenção e Punição de Crimes contra a Humanidade (Projeto de Artigos), que foi elaborado pela Comissão de Direito Internacional (CDI) sob os auspícios da ONU e atualmente tramita na Sexta Comissão da Assembleia Geral da ONU (aqui, aqui).

A autonomia da Iniciativa garantiu maior flexibilidade à sua Mesa Diretora. Contudo, a ausência de uma estrutura institucional e processual pré-estabelecida e o opaco processo de tomada de decisão da Mesa Diretora desencadearam críticas à Iniciativa, acusando-a de falta de transparência e inclusão (aqui, p. 105). Medidas foram tomadas para remediar estas críticas, em especial a atualização do site da Iniciativa com materiais relevantes e a realização de conferências preparatórias, consultas informais e eventos para debater publicamente o projeto. Em relação à Conferência de Ljubljana, as Regras 17 e 37 de seu Regulamento Interno preveem que as reuniões serão públicas, a menos que o contrário seja decidido em casos excepcionais, e a Secretaria da Conferência preparará atas das reuniões. Não obstante estas medidas, quando comparada com o Projeto de Artigos da CDI, a Iniciativa ainda se revela insuficiente em termos de disponibilidade de um registro escrito de seus trabalhos preparatórios e transparência no processo de tomada de decisão antes da Conferência.

Como parte da Iniciativa, a Mesa Diretora realizou duas conferências preparatórias nos Países Baixos: a primeira em outubro de 2017 e a segunda em março de 2019. Além do Projeto Preliminar de Tratado distribuído em novembro de 2018 pela Mesa Diretora, essa emitiu o seu Primeiro Projeto de Convenção em 2 de outubro de 2019, o qual foi objeto de consultas informais na Haia em janeiro de 2020. O Segundo Projeto de Convenção, publicado pela Mesa em 20 de março de 2020, serviria de base para a conferência diplomática de plenipotenciários a ser realizada em Ljubljana, em junho de 2020. No entanto, a conferência foi adiada devido à pandemia de COVID-19.

Em 20 de abril de 2021, a Mesa Diretora emitiu o seu Terceiro Projeto de Convenção, que foi objeto de três rodadas de consultas virtuais em junho e novembro de 2021 e junho de 2022. Essas consultas levaram à publicação do Quarto Projeto de Convenção em 30 de novembro de 2022 (Projeto de Convenção), que constituirá a base para as negociações durante a Conferência de Ljubljana. O Projeto de Convenção contém um escopo amplo, compreendendo não apenas extradição e assistência jurídica mútua, mas também a definição dos crimes abrangidos, criminalização e jurisdição internas e direitos das vítimas. Além de oito curtos anexos, o instrumento proposto possui 87 artigos, que foram agrupados em sete partes: disposições gerais (Arts. 1-16); autoridades centrais e comunicação (Arts. 17-19); assistência jurídica mútua (Arts. 20-42); extradição (Arts. 43-58); transferência de pessoas condenadas (Arts. 58-72); vítimas, testemunhas, peritos e outros (Arts. 73-75); e disposições finais (Arts. 76-87).

Este ensaio abordará seis tópicos relevantes que podem ser objeto de debate na Conferência de Ljubljana: (1) a não universalidade da Iniciativa; (2) o escopo da futura Convenção; (3) a técnica de redação legislativa adotada pela Mesa Diretora, a qual se centra na reutilização de linguagem proveniente de outros tratados; (4) a duplicidade com o Projeto de Artigos da CDI; (5) anistias; e (6) direitos das vítimas.

Universalidade

Uma vantagem da natureza autônoma da Iniciativa é a sua abertura a todos os Estados. Por exemplo, a separação em relação à Assembleia dos Estados Partes do TPI garante que os Estados não partes do Estatuto de Roma possam aderir à Iniciativa. No entanto, dos 70 Estados membros da ONU que não aderiram este Estatuto, apenas seis apoiaram formalmente a Iniciativa antes da Conferência de Ljubljana: Belarus, Cazaquistão, Ruanda, São Tomé e Príncipe, Togo e Vietnã. Esse número representa apenas 8% do total de 78 Estados patrocinadores da Iniciativa em 5 de maio de 2023 (Brasil não é um deles). Indaga-se se um número expressivo de Estados não partes do Estatuto de Roma eventualmente ratificarão a Convenção.

Em uma perspectiva mais ampla, Alison Bisset apontou que o reduzido número de Estados patrocinadores da Iniciativa (apenas 40% do total de membros da ONU) e a proeminência europeia entre eles devem ser motivo de preocupação. Em 5 de maio de 2023, a Iniciativa contava com 41 Estados patrocinadores europeus (53%), 17 africanos (22%), 15 americanos (19%) e 5 asiáticos (6%). Dessa forma, a soma de todos os patrocinadores não europeus não atinge o número de europeus. O escasso apoio advindo da Ásia também chama a atenção. Ademais, alguns Estados com influência significativa optaram por não aderir à Iniciativa, como Estados Unidos, Rússia, China, Japão, Austrália, Nova Zelândia, Turquia, Índia, além do já mencionado Brasil.

Os Estados que não expressaram apoio formal à Iniciativa podem participar da Conferência de Ljubljana apenas como observadores, o que implica que eles podem fazer declarações orais exclusivamente “mediante convite do Presidente e sujeito à aprovação da Conferência”. Eles também não têm direito a voto, prerrogativa outorgada apenas aos Estados patrocinadores (Regras 23 e 33, Regulamento Interno da Conferência). Talvez alguns Estados, especialmente não europeus, decidam formalmente patrocinar a Iniciativa às vésperas da Conferência, como forma de obter o direito de voto e participar mais livremente das negociações. Caso isso não ocorra e o número de Estados patrocinadores permaneça em 78, a eventual adoção consensual da Convenção implicará que este consenso corresponde a menos da metade do total de membros da ONU, em sua maioria Estados europeus. Este resultado poderia colocar em questão a legitimidade de todo o processo, bem como o prospecto da Convenção alcançar ampla adesão, particularmente por Estados fora da Europa.

Escopo

Uma das questões mais controversas acerca da Iniciativa é o escopo da futura Convenção. Duas abordagens principais se formaram: o escopo amplo e o escopo limitado à cooperação. A Mesa Diretora da Iniciativa, apoiada pela sociedade civil (cf., por exemplo, aqui), defende o escopo amplo: a Convenção não deve se limitar a apenas regulamentar extradição e assistência jurídica mútua entre os Estados, mas também deve incluir as definições dos crimes abrangidos e impor aos Estados Partes a obrigação de criminalizar esses delitos em suas legislações internas, estender a jurisdição de seus tribunais nacionais sobre os crimes e garantir direitos às vítimas. Nessa abordagem de natureza idealista, limitar o escopo apenas à cooperação poderia erodir a efetividade e utilidade da Convenção em seu objetivo de eliminar a existente lacuna para a investigação e punição dos crimes internacionais mais graves.

Por outro lado, a abordagem voltada a limitar o escopo da Convenção apenas à cooperação sustenta que esse tratado deve abordar exclusivamente extradição e assistência jurídica mútua: todas as disposições sobre direito penal substantivo e jurisdição nacional devem ser deletadas. Como um dos principais defensores dessa abordagem, a Suíça circulou o seu próprio projeto de convenção em 12 de março de 2020, focado apenas em cooperação interestatal. Segundo essa abordagem, a adoção de um tratado unicamente sobre extradição e assistência jurídica mútua ainda seria inovador e útil aos Estados, dada a inexistência de um instrumento suficientemente abrangente e atual nessa seara, aplicável aos crimes internacionais mais graves. Adotando uma visão pragmática, o objetivo último dessa abordagem é adotar a estratégia que garantirá a maior adesão possível à Convenção pelos Estados. Isso porque, a adoção de um texto que vai além do que seja estritamente essencial para garantir cooperação interestatal poderia condenar a Convenção a obter um número reduzido de Estados Partes. Em termos práticos, esse resultado preservaria a lacuna jurídica que originalmente motivou a criação da Iniciativa, já que a existência de um tratado sem ampla adesão seria inapto a fomentar cooperação em matéria penal a nível global.

Conforme indicado acima, o Projeto de Convenção da Mesa Diretora, a ser debatido na Conferência de Ljubljana, adotou o escopo amplo. Porém, o seu texto é silente acerca de várias questões associadas à criminalização e jurisdição internas, tais como anistia, prescrição, imunidades, exclusão de crimes internacionais da competência de tribunais militares e responsabilidade dos comandantes e outros superiores. A não inclusão destas questões talvez tenha sido uma tentativa de encontrar uma solução de meio termo, a fim de apaziguar os Estados que preferem um tratado unicamente sobre extradição e assistência jurídica mútua. Não obstante, é razoável antecipar que a questão do escopo possa ser colocada em pauta novamente na Plenária e no Grupo de Trabalho 1 da Conferência.

Abordagem de Redação 

Semelhante ao Projeto de Artigos da CDI, o reuso da linguagem e soluções jurídicas existentes em tratados pretéritos teve papel central na produção do Projeto de Convenção pela Mesa Diretora. Por fins de transparência, a Mesa adicionou notas de rodapé ao longo do texto indicando de qual instrumento específico a linguagem foi copiada.

O tratado mais amplamente utilizado pela Mesa Diretora foi a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. A adesão praticamente universal a este tratado (191 Estados Partes em maio de 2023) poderia justificar essa escolha da Mesa. No entanto, o crime organizado transnacional e os crimes internacionais mais graves abordados pela Convenção têm elementos e níveis de reprovação distintos e geralmente ocorrem em diferentes contextos sociais (crimes internacionais geralmente são cometidos em um teatro amplo de atrocidades). A natureza processual da maioria das disposições da Convenção pode indicar que a linguagem pretérita copiada poderia a priori ser aplicada a qualquer crime, já que ‘as questões que surgem no contexto de extradição [e assistência jurídica mútua] são fundamentalmente as mesmas, independentemente da natureza do crime’ (aqui, §§83, 152).

Contudo, as diferenças entre os crimes internacionais mais graves e outros delitos indicam que os diplomatas na Conferência de Ljubljana devem exercer a devida cautela ao ‘copiar e colar’ linguagem oriunda de outros tratados. Agir de maneira apressada e não crítica ao redigir a Convenção usando esta abordagem de produção legislativa poderia ignorar consequências indesejadas no futuro ou levar à adoção de um regime convencional incapaz de capturar a complexidade e as características únicas dos crimes internacionais a serem regulamentados.   

A escolha de qual tratado deve ser replicado também pode afetar o prospecto da Convenção de alcançar ampla adesão. Por exemplo, o uso de linguagem dos instrumentos estatutários do TPI na maioria das definições incluídas no Projeto de Convenção (cf., Arts. 2 e 73 e Anexos A-E e H) pode motivar os Estados não partes do Estatuto de Roma ou Estados com definições diferentes em seus ordenamentos internos a não aderir à Convenção. Também cabe questionar se a inclusão dessas definições detalhadas no texto pode tornar a Convenção obsoleta em um futuro próximo, prejudicando a sua utilidade no longo prazo.

A Mesa Diretora também se baseou na linguagem de alguns tratados europeus para definir o conteúdo de várias disposições do Projeto de Convenção, especialmente a Convenção de 1983 sobre a Transferência de Pessoas Condenadas, o Segundo Protocolo Adicional de 2001 à Convenção Europeia sobre Assistência Mútua em Matéria Penal e a Convenção Europeia de 1957 sobre Extradição. O transplante dessa linguagem criada regionalmente para a Convenção deve ser realizado com especial cautela, avaliando se a linguagem é apropriada para o escopo global de aplicação da Convenção.

Duplicidade com o Projeto de Artigos da CDI

Existem algumas diferenças importantes entre o Projeto de Artigos da CDI e a Iniciativa aqui discutida. A mais evidente delas é a abrangência dos dois projetos: enquanto o trabalho da CDI se refere apenas a crimes contra a humanidade, a Iniciativa abrange, além destes delitos, genocídio, crimes de guerra, agressão, tortura e desaparecimento forçado. Além disso, em comparação com o Projeto de Artigos da CDI, a Iniciativa contém uma regulamentação mais detalhada em suas disposições sobre assistência jurídica mútua e extradição.

Apesar destas diferenças, a identidade na gama de tópicos abarcados pelas duas iniciativas é de tal extensão que o Relator Especial da CDI sobre crimes contra a humanidade, Sean Murphy, posicionou-se contrariamente à implementação simultânea dos dois projetos. Ele argumentou que ‘se ambas as iniciativas forem adotadas como tratados, isso poderia resultar em dois grupos de Estados que sejam partes de duas convenções diferentes cobrindo muito do mesmo conteúdo, mas não mutuamente vinculadas entre si’ (aqui, §331). No entanto, a maioria dos Estados, incluindo a Mesa Diretora da Iniciativa, discorda do Relator Especial, sustentando que os dois projetos são complementares. Assim, a Iniciativa e o Projeto de Artigos da CDI têm sido implementados em paralelo ao longo dos anos.

Possíveis esforços dos diplomatas em Ljubljana voltados a harmonizar a Convenção ao texto atual do Projeto de Artigos da CDI, a fim de assegurar consistência entre as disposições específicas dos dois projetos, podem ser em vão, uma vez que a Sexta Comissão da Assembleia Geral da ONU ainda está debatendo possíveis alterações no conteúdo normativo do trabalho da CDI. Além disso, dado que a Convenção provavelmente será adotada antes da adoção de um tratado sobre crimes contra a humanidade, indaga-se acerca do impacto da Convenção, se algum, no prospecto do Projeto de Artigos da CDI se tornar um tratado, especialmente se a Convenção tiver um escopo amplo, abrangendo criminalização, jurisdição nacional e direitos das vítimas.

Anistia

O Artigo 52 do Projeto Preliminar de Tratado circulado pela Mesa Diretora da Iniciativa em 2018 expressamente permitia a concessão de anistia para crimes internacionais. A maioria das delegações na Segunda Conferência Preparatória de 2019 decidiu excluir esta cláusula. Todos as versões subsequentes da Convenção permaneceram silentes sobre a questão da anistia. A complexidade e a natureza política do debate levaram a CDI a também se manter omissa sobre este tema em seu Projeto de Artigos, ainda que esta questão tenha sido mencionada nos comentários a estes artigos (aqui, p. 95-98). A CDI concluiu que ‘a anistia adotada por um Estado não é apta a impedir uma ação penal em outro Estado com jurisdição concorrente sobre o mesmo crime’ (p. 98). Além disso, ‘a permissibilidade de conceder anistias deve ser avaliada, inter alia, à luz das obrigações do Estado […] de tipificar crimes contra a humanidade e de cumprir com sua obrigação aut dedere aut judicare e suas obrigações em relação às vítimas e outros’ (p. 98).

A Conferência de Ljubljana poderia voltar a debater a questão da anistia. Se o objetivo é levar a sério a criminalização e jurisdição domésticas, parece fundamental que a possibilidade de conceder anistia seja abordada, especialmente devido ao seu potencial de impactar o cumprimento do princípio aut dedere aut judicare e os direitos das vítimas (aqui). Ademais, embora o Artigo 8 do Projeto de Convenção indique que ‘[p]ara os fins de cooperação judiciária internacional, prescrição não pode ser invocada como motivo de recusa pelo Estado Parte requerido’, este Projeto é omisso sobre se essa mesma regra se aplica a anistias. As delegações poderiam dar o nível necessário de finesse ao debate, abordando a distinção entre anistias gerais e condicionais (aqui, aqui, aqui). No entanto, pode-se questionar se, durante a Conferência, o preço a ser pago para garantir um amplo escopo à Convenção (em oposição ao escopo limitado à cooperação) será uma cláusula sobre anistia.

Proteção de Vítimas

O Artigo 73 do Projeto de Convenção contém uma definição de vítimas que espelha o Regra 85 do Regulamento Interno do TPI. Dado que a definição é ampla, abrangendo não apenas pessoas físicas, mas também certas organizações e instituições, os Estados com definições mais simples em suas legislações nacionais seriam obrigados a alterar os seus diplomas legais, fato que poderia desencorajar estes Estados a aderir à Convenção. Essa possibilidade, alinhada à constatação de que a maioria dos tratados sobre crimes não define ‘vítimas’, levou a CDI a não adicionar uma definição em seu Projeto de Artigos (aqui, §§222-223). Deste modo, a diferente abordagem da Mesa Diretora da Iniciativa — ao incluir uma definição de vítimas — pode gerar debate em Ljubljana, especialmente se o referido Artigo 73 deve ser mantido. 

Além disso, paralelamente à questão de escopo se a Convenção deve ou não abordar direitos de vítimas, outro ponto de discussão pode ser o regime amplo de reparações às vítimas incluído no Artigo 75 do Projeto de Convenção. Embora a maioria das convenções sobre crimes se refira apenas à compensação, o Artigo 24 da Convenção Internacional de 2010 para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado foi muito além, reconhecendo também o direito das vítimas à restituição, reabilitação, satisfação e garantias de não repetição (o mesmo aqui). Ainda que a CDI tenha transplantado esse regime mais amplo de reparações para crimes contra a humanidade (Art. 12(3), Projeto de Artigos; aqui, §§190-195), a Mesa Diretora, por meio do dito Artigo 75, propôs aplicar este regime a todos os crimes internacionais abarcados pela Iniciativa.

Assim, o Artigo 75 do Projeto de Convenção tem o potencial de constituir um importante passo para o fortalecimento dos direitos das vítimas de crimes internacionais. No entanto, a redação deste dispositivo ainda é ambígua. Resta incerto se as vítimas podem pleitear reparações amplas apenas no contexto de ações criminais ou se o Artigo 75 também pode servir como base legal para processos civis. Outra questão é se as vítimas podem requerer reparação em face do indivíduo responsável pelos crimes e do Estado ou apenas em face do primeiro.

Conclusão

A Convenção pode vir a se tornar um importante instrumento a fim de fortalecer o sistema jurídico internacional voltado a combater impunidade. No entanto, como dito por Sean Murphy, ‘o objetivo final [deve ser] não apenas ter uma convenção, nem mesmo conseguir adesão generalizada a ela, mas ter uma convenção que aumente significativa e efetivamente a prevenção e a punição de atrocidades’. Embora Murphy estivesse se referindo ao Projeto de Artigos da CDI, acreditamos que essa observação também deve ser feita em relação à Convenção ora discutida. Portanto, os delegados na Conferência de Ljubljana devem debater o Projeto de Convenção conscientes de que suas barganhas e decisões podem ser profundamente impactantes, potencialmente afetando indivíduos e comunidades vítimas dos crimes mais graves.

*As opiniões expressas neste ensaio refletem a posição pessoal dos autores.

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