ONU Toma Medidas para a Eventual Adoção de uma Convenção sobre Crimes contra a Humanidade

Coluna “Prática Penal Internacional”

Uma importante lacuna no Direito Internacional é a inexistência de uma convenção voltada à prevenção e punição de crimes contra a humanidade (CcaH). Estes delitos consistem em ofensas graves “cometid[as] no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil”, incluindo homicídio, extermínio, escravidão, tortura, estupro, perseguição e apartheid (Artigo 7o, Estatuto de Roma do TPI). Com o objetivo de enfim adotar um tratado sobre CcaH, a Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas (CDI) iniciou estudos acerca do tema em 2014, sob a Relatoria Especial do professor estadunidense Sean D. Murphy. Em maio de 2019, a CDI finalizou, em segunda leitura, o seu Projeto de Artigos sobre a Prevenção e Punição de Crimes contra a Humanidade (Projeto). Em agosto do mesmo ano, a CDI decidiu recomendar à Sexta Comissão da Assembleia Geral das Nações Unidas (6CAGNU), a comissão para assuntos jurídicos, a elaboração de uma convenção pela própria AGNU ou por uma conferência internacional de plenipotenciários com base no Projeto.

Em outubro de 2019, a 6CAGNU se debruçou sobre o Projeto e a recomendação da CDI de transformá-lo em um tratado. Ainda que um grande número dos Estados tenha apoiado a adoção de medidas concretas para a convocação de uma conferência de plenipotenciários, uma decisão nesse sentido foi inviabilizada pois algumas delegações desejavam mais tempo para estudar o Projeto. A AGNU se limitou em 2019 a adotar uma resolução tomando nota do Projeto e prorrogando o debate para a próxima sessão. Em 2020, a pandemia de COVID-19 impediu qualquer decisão e o debate foi novamente prorrogado. Apesar do tema ter sido antecipado com significativo otimismo em 2021, um grupo minoritário de Estados recalcitrantes impediu qualquer medida concreta e uma decisão foi prorrogada pela terceira vez em dezembro daquele ano.

2022 foi o ano de ruptura com a inércia da 6CAGNU. Por meio da Resolução A/C.6/77/L.4 (Resolução), aprovada em 18 de novembro de 2022 por consenso, um processo e cronograma específicos foram finalmente adotados, com as seguintes etapas:

1) A 6CAGNU realizará uma sub-sessão especial por cinco dias, de 10 a 14 de abril de 2023, para debater o conteúdo do Projeto e a recomendação da CDI de transformá-lo em um tratado;  

2) Até o final de 2023, os Estados devem encaminhar comentários e sugestões escritas acerca do Projeto e da recomendação da CDI;

3) O Secretário-Geral da ONU preparará uma compilação dos comentários e sugestões recebidas e a circulará aos Estados antes da segunda sub-sessão especial da 6CAGNU mencionada no ponto abaixo;

4) A 6CAGNU realizará outra sub-sessão especial por seis dias, em 1 a 5 e 11 de abril de 2024, para continuar discutindo o conteúdo do Projeto e a recomendação da CDI;

5) Ao final desta segunda sub-sessão especial, a 6CAGNU preparará um resumo escrito das deliberações orais durante as duas sub-sessões; e

6) Com base neste resumo das deliberações e na compilação dos comentários e sugestões escritas anteriormente submetidas pelos Estados, a 6CAGNU voltará a debater o Projeto e a recomendação da CDI na 79ª Sessão da AGNU, no segundo semestre de 2024, “e tomará uma decisão sobre a matéria, sem prejuízo da possibilidade de decidir adotar a convenção apenas no futuro ou outra ação apropriada”.

Em termos práticos, o objetivo da Resolução foi instituir um espaço focado de discussão, voltado a debater as principais objeções dos Estados recalcitrantes e atingir acordos (compromises) aceitáveis a todas as partes, de forma a viabilizar as negociações durante a futura conferência, bem como a subsequente adoção da convenção por consenso. Apesar desta importante conquista, a Resolução deve ser vista como uma solução de meio termo, já que a proposta inicial para debater o Projeto foi a criação de um comitê ad hoc. Depois de semanas de negociações informais, tal proposta foi abandonada em favor de manter o debate centrado na 6CAGNU como um todo, mas em duas sub-sessões separadas e seguindo um processo e cronograma definidos. Os Estados recalcitrantes também deixaram claro no texto da Resolução que implementar este processo não significa necessariamente que eles aceitarão convocar a conferência.  

Em resumo, a Resolução é motivo para cauteloso otimismo. Ao estabelecer um cronograma e processo concretos, o documento representa um importante avanço, pois rompeu com a já trienal letargia da 6CAGNU e contará com a participação de Estados resistentes ao Projeto. Porém, considerando os debates até agora na 6CAGNU, pode-se antecipar que o diálogo não será fácil e significativas barganhas deverão ser atingidas para que um documento apto a servir de base às negociações na futura conferência seja produzido. Resta esperar para constatar como estas barganhas afetarão o conteúdo do Projeto.

 

CONTEÚDOS RELACIONADOS / RELATED CONTENT:

Compartilhe / Share:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter