A acessão do Brasil à OCDE: um processo técnico, político e ideacional

Em 10 de junho de 2022, foi aprovado o roteiro da acessão do Brasil à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O roteiro decorre da decisão do Conselho da OCDE de abrir discussões ao acesso do Brasil, junto com cinco outros países (Argentina, Bulgária, Croácia, Peru e Romênia), tomada pouco antes, em janeiro deste ano.

O documento era aguardado pelo governo brasileiro, que vem trabalhando de forma intensa e contínua para esse desfecho, desde a formalização do pedido em 2017, ainda no governo Temer. Porém, no governo Bolsonaro, o ingresso na OCDE tornou-se a principal política de inserção internacional do Brasil, liderada pelo Ministério da Economia, em conjunto com o Ministério das Relações Exteriores. O roteiro estabelece os termos, as condições e o processo de acessão, para que, ao final, o Conselho da OCDE decida se convida o Brasil a tornar-se membro pleno da organização. Durante o processo, o país deve preparar-se, adaptar-se, lenta ou rapidamente, a depender da sua capacidade de convergência aos padrões da OCDE, consubstanciados nos seus instrumentos legais, como decisões, recomendações e diversos outros instrumentos de soft law. É o que prevê explicitamente o roteiro: “O objetivo central do processo é alcançar a convergência do Brasil com os padrões, melhores políticas e práticas da OCDE” (tradução nossa). 

O roteiro possui um caráter bastante técnico, prevendo ampla revisão das políticas e legislação brasileiras por vinte e seis Comitês Temáticos da organização. Mas, antes de adentrar nessas questões técnicas, o documento, em seu parágrafo de abertura, menciona os critérios de admissão do “Relatório Noboru”, que em 2004 estabeleceu as premissas para a ampliação da OCDE. São eles: i) o grau de identidade do país (like-mindedness) com os valores fundamentais da organização, ii) ser um player relevante, iii) benefícios mútuos, e iv) considerações globais. Qual seria a relevância desses critérios, passados quase 20 anos? Que papel desempenham no contexto geral do processo de acessão e como se relacionam à condição atual do Brasil?

Esses critérios trazem uma dimensão política, subjacente aos valores centrais da OCDE, à natureza única dessa organização e aos seus mecanismos de funcionamento, notadamente o de revisão por pares (peer review). Há um sofisticado entrelaçamento entre os quatro critérios, sendo impossível falar de um sem fazer referência aos outros. Este blogpost objetiva analisá-los em face das circunstâncias atuais da acessão do Brasil, sugerindo existir três dimensões nesse processo: a técnica, a política e a ideacional. 

A acessão é um processo difícil e de alto custo material. Uma grande estrutura burocrática vem sendo montada no Brasil para fazer frente a ele. Representantes da diplomacia brasileira já deixaram claro que o processo é tecnicamente árduo, porém, permanece essencialmente político. Mas além da necessidade de uma estutura institucional própria, como o Brasil responde aos quatro critérios essenciais?

Começando pelo critério aparentemente mais fácil, não parece haver dúvidas de que o Brasil seja um player relevante. Se o Brasil quer tanto entrar na OCDE, também é certo que a OCDE precisa do Brasil como membro, dada a importância de sua economia dentre as dez maiores do mundo. Esse fato faz com que os critérios de relevância e o de benefícios mútuos estejam diretamente relacionados. No pós-pandemia, o Brasil voltou a integrar a lista das dez maiores economias do mundo, com Produto Interno Bruto (PIB) na casa dos US$ 2.054 trilhões, à frente de Itália, Canadá, Coréia do Sul, Austrália, Espanha e México. Dentre os dez maiores PIBs do mundo, apenas Brasil e Índia não são membros da OCDE, e este último não tem demonstrado interesse por ingressar na organização. Por outro lado, o PIB per capita do Brasil (US$ 7.518) continua bem abaixo da maioria dos países da OCDE, mais próximo apenas do México (US$ 9.926), Turquia (US$ 9.586) e Colômbia (US$ 6.131).

Sobre o interesse da OCDE no Brasil, vale lembrar o processo de “engajamento ampliado” com Brasil, China, Índia, África do Sul e Indonésia, iniciado em 2007. Esse engajamento permitiu à OCDE acompanhar o chamado “diálogo do desenvolvimento“, buscando assegurar a relevância da instituição em um novo cenário geopolítico. Em 2012, o programa de engajamento foi redimensionado, conferindo aos cinco países o status de parceiros-chave. Esse processo diz muito sobre o interesse da OCDE no Brasil, tanto em 2007 quanto hoje, já que é o único dos parceiros-chave que manteve o interesse em aceder e vem consistentemente aderindo aos instrumentos legais. A figura abaixo compara o grau de adesão aos instrumentos da OCDE entre os cinco países.

Fonte: OECD

Do lado do Brasil, o interesse é crescente desde 2015, passando por três diferentes governos, o que atesta, aparentemente, uma superação de divisões existentes no passado, relacionada à possível perda de soberania, caso o Brasil ingressasse na OCDE. O debate passou do “se” aceder ou não, para o “como” e “porque” aceder. No primeiro momento houve certo otimismo de que a acessão pode levar à modernização do Estado e das políticas públicas, inserção nas cadeias globais de valor e melhoria do ambiente de negócios, mudando a percepção de investidores. Consequentemente, levaria ao aumento de investimentos e redução de desigualdades. Enfim, um remédio para quase todos os males. 

Recentemente, vozes mais críticas têm levado o debate à uma fase de maturidade. Estudos têm procurado estabelecer, a partir de evidências, a relação entre o ingresso de países na OCDE e o aumento de investimentos externos e crescimento econômico. Contudo, ainda há grande dificuldade para se estabelecer essas correlações. O fortalecimento institucional parece ser o resultado mais palpável da efetiva acessão. Em estudos de casos sobre o processo de acessão do Japão, México, Coréia do Sul e República Tcheca, Christina Davis ressalta o que está por trás em termos da seleção de países pela OCDE e do interesse destes em pagar o preço de entrada (o critério de interesses mútuos, portanto). Davis analisa os lados da demanda e oferta do processo de acessão em si, demonstrando que a informalidade dos critérios tem permitido uma flexibilidade à OCDE para subir ou descer a “barra” de entrada, a depender do caso concreto. Do lado da demanda, a motivação desses países foi o desejo de promover reformas, mas acima de tudo, ingressaram na OCDE buscando o status de associar-se a um grupo seleto de Estados e aumentar sua reputação na ordem internacional. Esse argumento contraria a lógica de teorias funcionais de escolha racional. 

A pergunta essencial por trás dos critérios de player relevante e interesses mútuos é: “por que Estados decidem ingressar em instituições internacionais?” Neo-realistas e liberais divergem. Mas, o ponto comum é a ideia de que organizações internacionais são necessárias para auxiliar os Estados a atingir seus objetivos, especialmente o de cooperação. Porém, os neo-realistas insistem em nos lembrar que alguns Estados mais poderosos lucram mais do que outros com a cooperação. Robert Keohane, atenuando sua posição liberal, responde que, dentre as condições para a cooperação, a mais importante é a existência de interesses comuns entre os envolvidos. Portanto, a ideia de cooperação efetiva somente se sustenta quando há a certeza de que os interesses convergem. Organizações que aspiram à universalidade precisam também lidar com a divergências de interesses. Esse não é o caso da OCDE.

O argumento de Keohane nos leva à relação entre o critério de interesses mútuos e o de identidade (like-mindedness), que é o primeiro do Relatório Noboru. Possuiria o Brasil o grau de identidade necessário com os países da OCDE? A OCDE é uma organização com características únicas. Não possui o grau de legalização da Organização Mundial do Comércio (OMC), com seu sofisticado mecanismo de solução de controvérsias, que o Brasil aprendeu a usar com eficiência. Seu acervo normativo possui apenas 24 decisões juridicamente vinculantes. Para garantir seu cumprimento, o único mecanismo é o de peer review, cuja força não pode ser subestimada. Ao tornar-se membro, o país ratifica uma Convenção com apenas 21 artigos. No art. 3, os membros concordam em manter-se mutuamente informados e fornecer à organização todas as informações necessárias ao cumprimento de seu mister. Na prática, significa abrir o país à constante avaliação, possibilitando permanente supervisão, monitoramento, e comparação a partir de diversos indicadores. Segundo o Relatório Noboru, só com um alto grau de like-mindedness, o mecanismo de peer review permanece eficaz, o que confirma o argumento de Keohane. Somente “entre iguais” o sistema se mantém coeso e efetivo. 

O sistema de peer review da OCDE é estudado pela teoria construtivista em Relações Internacionais como um fenômeno cultural, um processo de construção social de identidade, que se estabelece por meio da persuasão e argumentação entre pares, em substituição ao processo convencional de barganha e assunção de compromissos entre Estados. Segundo Robert Wolfe, “o que mais se modifica por causa da OCDE é o pensamento das pessoas envolvidas, desde a burocracia técnica até ministros de Estado“. A OCDE, antes de ser um formulador de políticas baseadas em evidências, é um “artista ideacional“. Tornar-se membro envolve um processo de construção de identidade, que se estabelece ao longo do próprio processo de acessão. A OCDE é um exemplo paradigmático de organização internacional definidora dos padrões de conduta de Estados “modernos, liberais, eficientes e market-friendly“. Progressivamente, o Brasil vai se identificando mais com a OCDE e seus valores.

O último critério, considerações globais, foi concebido em 2004, num contexto de crescente globalização pós-Guerra Fria. Com o fim da divisão internacional em campos opostos, durante o qual a OCDE teve papel central de manter coeso um grupo de sociedades democráticas, a organização precisava provar sua utilidade na nova arquitetura global. Assim, a  OCDE pretendia encontrar uma nova identidade, passando a buscar membros que trouxessem “diversidade”, mantendo-se porém, o grau de like-mindedness. O critério considerações globais foi formulado de forma que futuros membros passassem a refletir também a composição geral do quadro de membros. Desse modo, importava não apenas que os países estivessem aptos a ingressar, mas deveria haver um equilíbrio. Existia um receio de que, com o fim da Guerra Fria, muitos países do bloco europeu desbalanceassem o quadro geral de membros. Na prática, esse critério passou a traduzir-se na alternância entre países suportados politicamente ora pelos membros europeus, ora pelos Estados Unidos. Nesse contexto, dinâmicas regionais também desempenharam papel relevante, inclusive na sequência mais recente da acessão de países da América Latina. 

O Brasil, além de latino-americano, é um parceiro-chave, junto com os países do BRICS e a Indonésia. Portanto, aqui o critério considerações globais e dinâmicas regionais mesclam-se ao de player relevante. Sobre a participação do Brasil simultaneamente nos BRICS  e na OCDE, há quem defenda ser possível, e até desejável, já que daria ao Brasil uma condição única. No entanto, o atual conflito entre Rússia e Ucrânia vem alterando as configurações geopolíticas e exigindo posicionamentos mais claros dos países. 

A análise cuidadosa dos critérios de admissibilidade revelam as dimensões técnica, política e ideacional do processo de acessão à OCDE. Os quatro critérios permanecem vigentes e estão explícitos no roteiro entregue ao Brasil, mas adquirem novos contornos em 2022, com os quais o Brasil terá que lidar no seu percurso. 

  • Doutoranda em Direito e Desenvolvimento pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, FGV Direito SP. LL.M. em International Legal Studies pela Washington College of Law, American University, Washington, DC. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Centro de Estudos do Comércio Global e Investimentos (CCGI) da Escola de Economia da Fundação Getúlio Vargas e do Núcleo de Direito Global e Desenvolvimento da FGV Direito SP. Beneficiária da Bolsa Mario Henrique Simonsen e da Bolsa CAPES/PROSUP. Advogada nas áreas de Direito Internacional Econômico, Direito do Comércio Internacional, Direito Administrativo e Regulatório. Email: magalifavaretto@gmail.com / LinkedIn: www.linkedin.com/in/magalifavaretto / Lattes: http://lattes.cnpq.br/1572919051291970 / ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0254-0775

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