O novo conceito estratégico da OTAN

Coluna “Desarmamento e Não Proliferação de Armas Nucleares”

A Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) realizou sua reunião de cúpula de 28 a 30 de junho último, com o objetivo principal de adaptar a Aliança Atlântica às mudanças ocorridas no mundo desde a reunião anterior, em 2010. Não há dúvida de que a ordem mundial estabelecida desde 1945 já não corresponde à realidade contemporânea. O arcabouço de normas e pressupostos em que se baseava a convivência internacional desde o fim da Segunda Guerra Mundial se encontra gravemente combalido.

O documento adotado pela reunião, intitulado “Conceito Estratégico” enfatiza o caráter defensivo da aliança atlântica e sua fidelidade aos propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas e do Tratado do Atlântico Norte. Dedica grande atenção ao conflito russo-ucraniano e identifica a Rússia como “a ameaça mais importante e direta à segurança dos aliados”. Pela primeira vez trata da China afirmando que as ambições declaradas e políticas coercitivas de Pequim constituem desafios aos interesses, segurança e valores da Aliança, acrescentando que o aprofundamento da parceria estratégica entre Pequim e Moscou busca prejudicar a ordem internacional baseada em normas e contraria os valores da OTAN. Menciona outros desafios, como o uso hostil da cibernética e o terrorismo, este considerado a mais direta ameaça assimétrica à segurança dos cidadãos dos países da Aliança.

A invasão da Ucrânia pela Rússia acarretou desorganização do fornecimento de combustíveis à Europa ocidental e ameaça o desabastecimento de grãos básicos oriundos da Ucrânia para regiões menos desenvolvidas do mundo, sem falar na tragédia humana e social representada pela destruição e pelo deslocamento de milhões de pessoas afetadas pela guerra.

Em lugar de opor um freio à expansão da OTAN, a invasão teve o efeito contrário de reforçar a união dos países ocidentais, promovendo a admissão de novos membros e o aumento do orçamento militar da Organização. Os efetivos militares das forças de reação rápida passarão de 40 mil para 300 mil homens

Entre as decisões tomadas pela reunião estão o aumento das forças militares em alerta, especialmente na fronteira leste; o compromisso de cada país de dedicar ao menos 2% do PIB para a defesa até 2024; o prosseguimento do apoio militar à Ucrânia e promessas de ajuda a outros parceiros em situação de risco, inclusive Bósnia-Herzegovina, Moldávia e Geórgia; o lançamento de um Fundo de Inovação, que investirá € 1 bilhão ao longo dos próximos 15 anos para desenvolvimento de tecnologias de uso duplo; o convite oficial à Suécia e à Finlândia para fazerem parte da Aliança e a reafirmação da política de “portas abertas” para ingresso de novos membros.

O Conceito Estratégico sepulta as esperanças de uma era de entendimento e cooperação que parecia haver-se aberto entre a Federação Russa e o Ocidente com o fim da União Soviética. A sensação inicial de otimismo seguinte ao acordo Novo START foi sendo substituída por progressiva desconfiança mútua e abandono dos acordos bilaterais de controle de armamentos entre os Estados Unidos e a Rússia. Embora os limites fixados por aquele acordo permaneçam em vigor, nenhum dos dois países se mostra interessado em estabelecer novos padrões de controle sobre seu armamento. Por sua vez, a China se esforça por acompanhar a evolução da tecnologia bélica e expande sua presença militar no oceano Pacífico e sua influência no mundo em desenvolvimento.

O avanço da Aliança Atlântica para o leste, englobando a maior parte dos países da Europa Oriental que anteriormente se encontravam sob o domínio da URSS, acentuou a preocupação de Moscou com sua segurança. A Rússia parece agora empenhada em recuperar a capacidade militar, importância e prestígio de superpotência de que desfrutou nos tempos da Guerra Fria. Por sua vez, nos últimos anos os Estados Unidos vêm adotando uma orientação de aberta confrontação com sua rival e destinam recursos crescentes à “modernização” de seus arsenais.

O documento reconhece o impacto negativo da erosão da arquitetura de controle de armamentos, desarmamento e não proliferação sobre a estabilidade estratégica e acusa a Rússia de implementação seletiva de suas obrigações nesse particular. A declaração dos presidentes das duas potências em junho de 2021 no sentido de que “uma guerra nuclear não terá vencedores e não deverá jamais ser travada” não teve seguimento, apesar de manifestações recentes de ambos os lados sobre a necessidade de manter e reforçar os contatos bilaterais.

O novo Conceito Estratégico 2022 revela a percepção da existência de ameaças persistentes de terrorismo, instabilidade, competição estratégica crescente e avanço do autoritarismo, em contraposição aos interesses e valores da Aliança. Define também os três elementos básicos de sua ação: dissuasão e defesa, prevenção e gestão de crises e segurança cooperativa, além de ressaltar o caráter essencialmente defensivo da instituição.

A expansão da influência da China e a crescente projeção de seu poder, mantendo pouco transparentes suas intenções, são consideradas uma ameaça aos interesses, segurança e valores da OTAN. O documento, contudo, confirma a disposição de levar adiante um engajamento construtivo com a potência asiática.

Mais além do horizonte europeu e asiático o Conceito Estratégico afirma a importância estratégica dos Bálcans ocidentais e da região do Mar Negro para a OTAN e aborda a existência de conflitos e a fragilidade e instabilidade na África, particularmente no norte e no Sahel, onde mudanças climáticas e insegurança alimentar continuam a estimular o êxodo de imigrantes para a Europa. Afirma que a situação no Oriente Médio afeta diretamente a segurança da OTAN e seus parceiros e ressalta a importância da região do Indo-Pacífico para o tratamento de desafios comuns e interesses compartilhados. Não há nenhuma menção à América Latina.

O documento reafirma o compromisso com a implementação integral do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), inclusive o Artigo VI, e reitera o objetivo de “criar um ambiente de segurança para um mundo sem armas nucleares”.

O Conceito Estratégico é perfeitamente claro e incisivo ao definir e defender os interesses da aliança atlântica, que até certo ponto coincidem, ainda que com nuances, com os de boa parte da comunidade internacional, com a qual a OTAN se declara disposta a cooperar. O documento se dirige também a outros países do entorno europeu que pretendam se tornar membros, inclusive a Geórgia e a Ucrânia, confirmando o que parece ser a intenção de prosseguir em direção ao leste. Nesse particular, é evidente a profunda divergência com o interesse da Rússia de evitar a expansão da Aliança para o Cáucaso e mais além. No curto prazo este é o principal fator de instabilidade, e não apenas para a Europa.

O tom das menções e acusações à China ao longo do texto é mais suave do que o utilizado em relação à Rússia. Na visão da OTAN, esta última busca o estabelecimento de esferas de influência e de controle direto mediante coerção, subversão, agressão e anexação de territórios, além de disposição de usar a força para seus objetivos políticos e para solapar a ordem internacional baseada em normas. Pequim é acusada de ambicionar o controle de setores-chave de tecnologia, infraestrutura, materiais estratégicos e cadeias de suprimento.

Rússia e China reagiram imediatamente. O presidente Putin disse que não vê problemas na entrada da Suécia e Finlândia para a OTAN, mas que tomará as medidas de segurança que considerar cabíveis. A China, observou que o verdadeiro desafio sistêmico à paz e estabilidade mundiais é a própria OTAN, que não cessa de ampliar-se além de seus limites regionais. Para Pequim, essa atitude representa uma “relíquia da Guerra Fria”.

Não é demais recordar que algumas das estratégias e métodos atribuídos à China no relacionamento com o mundo em desenvolvimento em pouco ou nada diferem dos utilizados pelos países ocidentais em outros momentos da História para obter e assegurar hegemonia política e econômica, principalmente no mundo em desenvolvimento.

A mudança do clima é caracterizada como o desafio definidor da era atual, com profundo impacto na segurança devido à possibilidade de exacerbação de conflitos fragilidades e competição geopolítica. A Aliança pretende combater as mudanças climáticas mediante a redução de emissões de gases de efeito estufa, aperfeiçoamento da eficiência energética e investimentos na transição para fontes não poluentes, assegurando ao mesmo tempo a eficácia militar e uma postura defensiva confiável.

O Conceito retoma a ideia de que é necessário subordinar a adoção de medidas efetivas de desarmamento nuclear à criação de um ambiente de segurança favorável. Nesse sentido, o documento justifica a permanência do armamento atômico da OTAN “enquanto as armas nucleares existirem”. Tal convicção, expressa com essa fórmula que não denota interesse em eliminá-las, explica a feroz resistência a iniciativas de proibição linear das armas nucleares como passo inicial para sua completa eliminação.

A comunidade internacional certamente compartilha os propósitos descritos no final do Prefácio do Conceito Estratégico: “um mundo no qual a soberania, integridade territorial, os direitos humanos e o Direito Internacional sejam respeitados e no qual cada país possa escolher seu próprio caminho, livre de agressão, coerção ou subversão”. Para assegurar coerência e inclusão, é preciso que toda a comunidade internacional participe do desenvolvimento, elaboração e adoção dos instrumentos que permitam atingir esses objetivos.

  • Embaixador, ex-Alto Representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento. Presidente das Conferências Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais. Colunista do IntLawAgendas.

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