Um clássico e seu tema fugitivo

Uma Leitura de: “Direito Internacional do Meio Ambiente – Emergência, Obrigações e Responsabilidades” de Guido Fernando Silva Soares
Por Salem Nasser

Se muitos, por muito tempo, enxergaram o Direito Internacional como a “perfumaria” do Direito, eu vivi os primeiros anos de meu contato com essa Ordem Jurídica percebendo o Direito Internacional do Meio Ambiente como uma espécie de “perfumaria da perfumaria”. Que chance tinham, afinal, normas e estruturas preocupadas com animais em extinção, habitats em perigo, poluição e florestas, de competirem com a necessidade de ordenar a grande política internacional, a paz e a guerra…?

Tratava-se, no meu caso, certamente, de algo que talvez se pudesse chamar uma inflexão da alma, uma tendência, uma preferência pessoal. Mas havia mais. Eu estava inserido, enquanto era apresentado ao Direito Internacional, na academia francesa, numa tradição de apreço pelas normas e pela linguagem específica do Direito, da sua positividade, da precisão das fronteiras entre o Direito e o não-Direito.

O meu entorno, portanto, também olhava com desconfiança os “novos temas” (ainda que nem tão novos!) que vinham bater às portas do Direito Internacional, convidando-o inclusive a rever suas concepções de fontes do Direito e, portanto, das próprias fronteiras entre o jurídico e o mundo externo ao jurídico.

E assim segui, cético, por alguns anos. Não direi que o encontro com o saudoso e querido Guido Soares e com sua obra tenham servido a imediatamente me redimir e colocar no bom caminho. Resisti ainda por um tempo.

O encontro, no entanto, com o homem, com o professor e com a obra, permitiu que um caminho começasse a ser pavimentado. A combinação única que Guido e sua obra ofereciam, que permitiria a nova aventura, balanceava, em equilíbrio quase perfeito, a tradição, o domínio da linguagem do Direito, o gosto da precisão, tudo isso de um lado, e a abertura para o novo, para os desafios e, sobretudo, uma visão humanista do mundo e de seus problemas, de outro lado.

Quando me aceitou como orientando, para uma tese de doutorado que teria por tema as transformações no processo de gênese das normas jurídicas internacionais, eu era um animal estranho entre tantos ambientalistas. Ele já era então Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Tinha acedido à posição justamente com um trabalho, finalizado em 1996, sobre Direito Internacional do Meio Ambiente, que viria a ser publicado em 2001.

Salvo engano meu, não houve antes, nem desde então, outra obra produzida no Brasil e por autor pátrio, que tivesse tamanha ambição em relação a tema que apenas se anunciava então como um dos ramos mais vitais, mais extensos, mais pulsantes e cambiantes, do Direito Internacional.

Ainda hoje, quando percorremos as muitas páginas do livro, experimentamos uma sensação que pode ser quase opressiva, de início, tal a abundância do texto, a generosidade das informações, a atenção a inúmeros detalhes, que somos convidados a conhecer e absorver.

Isso que chamo de abundância do texto – e minha intenção é a de um elogio admirado – era uma marca de Guido Soares. Penso que fosse apenas natural para ele discorrer, com vagar e ritmo constante, sobre o muito que sabia e que descobria, como quem se entrega a uma contínua conversa sobre o Direito e seus impactos no mundo. Ainda assim, sinto que essa generosidade em nenhum outro lugar se concretizou como o fez neste livro.

E no entanto, o próprio tema que escolheu para sobre ele construir o que talvez seja sua obra mais ambiciosa e mais profunda constituía um desafio de monta: a obra de grande ambição pretendia capturar um tema fugidio, cambiante, em intensa transformação. O próprio Guido Soares, no prefácio ao livro, nota, e lamenta em parte, o fato de que a evolução do Direito Internacional do Meio Ambiente insistia em ser mais rápida do que as tentativas de sua apreensão e sua descrição. Nota que, em poucos anos, entre a redação do essencial do texto e a sua publicação, muito de novo havia surgido, novos instrumentos, novos acordos, novos desenvolvimentos.

Ainda assim, o conteúdo do livro é precioso, por mais de uma razão.

A primeira que me ocorre é que o livro prova, a meu ver, que Guido Soares era, antes de outra coisa, um grande jus-internacionalista que, percebendo a urgência das questões ambientais e do equilíbrio ecológico para a vida na Terra e, percebendo os desafios aportados por essas questões ao Direito Internacional, enquanto linguagem e enquanto técnica, resolveu fazer do Direito Internacional do Meio Ambiente o seu objeto de fazer intelectual. E o fez no momento em que a fera, por assim dizer, fazia o seu salto, no momento em que os desafios emergiam e em que era preciso enfrentar o conforto dos saberes constituídos e abordar o novo com espírito mais jovem do que deixaria pensar a própria idade.

A segunda razão que faz do livro uma preciosidade está no fato de que ele contém aquilo que para Guido Soares era a função do professor: um dia ouvi-o dizer que nossa função, antes de ensinar o Direito Internacional aos alunos, era seduzir os alunos para o Direito Internacional. E suas aulas eram sempre exercícios nesse caminho de uma aproximação, quase afetiva, com esse universo do Direito.

Alguém dirá que dificilmente se pode sustentar que um livro de 900 páginas, sobre Direito, é campo propício para a sedução. Mas eu defendo a posição.

É verdade que a estrutura do livro, sua divisão em três grandes partes – uma contando da emergência do Direito Internacional do Meio ambiente, uma outra falando sobre as fontes e os conteúdos normativos desse Direito e uma última analisando a operação das normas pela responsabilização dos sujeitos – tem algo de tradicional – revelando mais uma vez o pertencimento do autor a uma escola antiga e sólida.

Mas, quem quiser, com paciência, viajar pelas várias camadas de erudição do autor, muito mais ampla do que o Direito Internacional e seu novo ramo, e entrar em contato com a discussão atenta e alongada de tantos novos temas, corre de fato o risco de se deixar apanhar pela promessa de interessantes aventuras intelectuais.

Finalmente, talvez a mais importante das razões por que o livro de Guido Soares é um clássico – mesmo tendo necessariamente “perdido a corrida” para o seu tema em rápida evolução e em parte por ter justamente enfrentado esse difícil desafio da “corrida” – está nas portas que abre para algumas das transformações mais importantes que atingiram e atingem o Direito Internacional de forma mais intensa do que em qualquer tempo do passado, está no anúncio dessas transformações e na sua discussão.

Transformações, que a temática ambiental convidou como nenhum outro problema o fez, tais como os tratados moldura, os tratados guarda-chuva, as novas estruturas organizacionais, de financiamento, de verificação e fiscalização, de construção do conhecimento científico, e tantas outras, estão presentes no livro de Guido Soares e são ali anunciadas como novidades revolucionárias, de fato, mas tratadas com a sobriedade dos bons juristas. É uma combinação rara.

É certamente uma lástima que Guido Soares já não esteja entre nós, para continuar a seduzir as novas gerações para o Direito Internacional e, mais importante, para uma visão profundamente humanista e generosa do mundo, mas também para continuar a tentar capturar esse grande tema – que, nunca é demais dizer, ao final, trata da possibilidade de continuidade da vida na Terra – e apreendê-lo na sua extrema velocidade de evolução.

Não se pode desafiar os desígnios da vida. Antes devemos ficar gratos por termos tido quem tenha nos seduzido e, com seu livro, nos deixado um generoso convite para o aprendizado, para a descoberta, para a ambição de descobrirmos o que o livro não teve tempo de nos contar.

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