Uma análise do estado atual das discussões sobre taxação global de carbono pela indústria marítima

Introdução

A descarbonização da indústria marítima é uma das principais pautas de discussão na Organização Marítima Internacional (OMI). A organização já adotou medidas iniciais de descarbonização, mas alguns países defendem a necessidade de posições mais energéticas, como a adoção das chamadas medidas baseadas em mercado (MBMs). A MBM mais discutida é a taxação global de carbono. O presente blogpost busca apresentar um sumário das discussões na literatura e na OMI, incluindo os argumentos utilizados pelos países que defendem a referida taxação e o status das discussões, bem como um resumo dos estudos sobre possíveis impactos para países em desenvolvimento, fazendo parte de pesquisa realizada a durante o programa de mestrado em Direito Marítimo da University College London. 

As discussões oficiais sobre descarbonização datam de 1997, em razão do Protocolo de Kyoto, e seguiram após a adoção do Acordo de Paris, uma vez que a organização entende ter competência originária para ser o fórum de discussão e adoção de documentos internacionais em razão do Anexo VII da Convenção Internacional para Prevenção de Poluição por Navios (MARPOL), que apesar de ser obrigatório apenas para os Estados que a ratificaram, conta com aproximadamente 96% da arqueação bruta (gt) internacional. As medidas nacionais adotadas pelos Estados signatários portuários, costeiros e de bandeira podem ser exigidas também aos navios registrados em Estados não signatários na medida tanto em razão das normas da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, quanto em razão do princípio do “tratamento não mais favorável” da MARPOL.

O último relatório da OMI  indicou que a indústria marítima é responsável pelo correspondente a 2,89% do total da emissão global antropogênica de CO2, havendo uma projeção de aumento de 130% nos valores até 2050. Assim, a adoção de medidas de mitigação e redução de emissões dos gases do efeito estufa são fundamentais para que as metas do Acordo de Paris sejam atingidas. Nesse contexto, a OMI já teve sucesso na adoção algumas medidas específicas para a indústria, como a adoção dos índices operacionais, como o de Eficiência Energética de Navios Existentes (EEXI) e o de Intensidade de Carbono Operacional (CII). 

Ainda assim, há um entendimento de que essas medidas não são suficientes e que as metas de redução de emissão de carbono só poderão ser alcançadas a partir da implementação de MBMs. As MBMs foram apresentadas pelos países membros da OMI como medidas de médio e longo prazo a serem adotadas pela OMI no âmbito do Anexo VII da MARPOL e estão em análise pela Organização. Há uma grande expectativa sobre a adoção da taxação global de carbono que vincularia todos os Estados membros, porém, ainda não foi definido quem arcaria com as taxas (donos dos navios, afretadores, importador/exportador etc.).

Método

Primeiramente, ao se realizar análise sobre as atuais discussões acadêmicas sobre o tema, analisou-se a bibliografia de forma sistemática e não exaustiva, compreendendo o período até 02/2024 (sem limitação de data inicial). As palavras-chave, incluindo sinônimos, “indústria marítima” e “taxação de carbono” ou “imposto de carbono”, foram pesquisadas nas seguintes plataformas: Google Scholar, Science Direct e Scielo. Foram identificados 581 artigos, dos quais 554 foram excluídos pelos critérios de pesquisa (não ser relacionado ao direito ou apenas citar a existência das propostas de taxação, sem se aprofundar no estudo). 

O argumento de países e documentos emitidos pela OMI foram analisados a partir de documentos disponíveis na plataforma IMODOCS, acessada durante o período de estágio de pesquisa realizado junto à OMI. Assim, considerando que a plataforma não é integralmente pública, a pesquisa é limitada até 06/2023.

Análise bibliométrica 

A pesquisa bibliométrica (estudo quantitativo sobre a produção científica) foi realizada a partir da plataforma Web of Science e do software VOSviewer 1.6.20. Foram encontradas 1.923 publicações, cuja maioria está concentrada nas ciências ambientais (figura 1) e em inglês (figura 2), motivo pelo qual optou-se por escrever o presente artigo em português.

Figura 1: número de publicações x área científica.

Figura 2: número de publicações x língua.

Também foi possível identificar uma predominância de publicações nos Estados Unidos e nos países europeus (figura 3). Contudo, é expressivo o número de publicações realizado por autores afiliados a universidades brasileiras (figura 4), indicando que o tema não é novidade no cenário nacional.

Figura 3: número de publicações x nacionalidade dos autores.

Figura 4: número de publicações x afiliação dos autores.

Discussão

Desde 2003, a OMI incluiu a discussão sobre a adoção de MBMs como uma prioridade do Comitê de Proteção ao Meio Ambiente Marinho (MEPC). Essas medidas poderiam tornar os combustíveis alternativos mais atrativos em relação aos combustíveis fósseis (que chegam a ser de duas a cinco vezes mais baratos, segundo a UNCTAD). De acordo com a OMI, dez propostas apresentadas pelos membros da organização estão em análise. Chamam atenção as medidas de taxação de carbono, por gerarem maior discussão no âmbito da organização, estando presente nos registros da OMI ao menos desde 2000.

A taxação do carbono foi originalmente proposta na OMI em um projeto comum do Chipre, Dinamarca, Ilhas Marshal, Nigéria e a International Parcel Tanker Association. O objetivo seria incentivar o abandono dos combustíveis com maior pegada de carbono e promover a transição energética (abandono de combustíveis fósseis). Na ideia original, a taxa seria paga pelos navios ao comprar combustível. A taxação pode funcionar de diversas formas, havendo uma proposta do Japão para taxar combustíveis, mas devolver parte do valor para navios que atingissem as metas de eficiência. Há, ainda, uma proposta da Jamaica para que a taxa seja paga no Estado portuário, no momento de aquisição do combustível, ao invés de ser cobrada dos fornecedores de combustível. 

O tema é controverso e nem todos os países defendem a taxação. Os Estados Unidos, o Reino Unido e a França, por exemplo, apresentaram propostas separadas de criação de sistema de comércio de créditos de emissão (chamados de ECTs). Há, também, um movimento de países que já se posicionaram contrários à adoção da taxação, como China, Índia, Brasil e Arábia Saudita, que entendem que se trata de uma proposta de países desenvolvidos. Esse argumento encontra base nos estudos iniciais, que indicavam que os Estados em desenvolvimento seriam prejudicados com a adoção das medidas. Até o momento, não houve um posicionamento final dos países na OMI.

Os efeitos negativos são abordados na bibliografia. Segundo Psaraftis, a taxação transformaria os pequenos Estados insulares em desenvolvimento em mega hubs de transporte marítimo em razão das possíveis exceções aplicáveis a esses países. Chircop defendeu um possível conflito entre o princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas com o princípio do “tratamento não mais favorável” da MARPOL, que tornaria difícil a elaboração prática das MBMs. Em outro artigo publicado em coautoria, Psaraftis discutiu a criação de imperfeições de mercado com diferentes incentivos sendo ofertados para os donos de navios e os afretadores por tempo (podendo incentivar até uma troca de modal se for adotado de forma isolada pela indústria marítima). Para TC Lee e outros, o imposto promoveria o comércio regional e diminuiria o comércio internacional.

Apesar da identificação inicial dos impactos negativos, há uma aparente tendência de mudança por meio da análise sob a perspectiva do uso da receita gerada pelo imposto. Países em desenvolvimento e pequenas ilhas insulares, como a Antígua (em 2018) e as Ilhas Marshall (em 2020) estariam seguindo uma “nova” linha argumentativa e defendendo que as medidas adotadas pela OMI terão impactos nesses países de qualquer forma, enquanto as MBMs e, especificamente, a taxação do carbono seria a única medida capaz de gerar uma receita que poderia ser utilizada para diminuir os impactos sofridos pelos países em desenvolvimento.

Esse discurso encontra espaço na indefinição sobre qual MBM será adotada e destinação da receita gerada. Segundo Dominioni, a receitas geradas por uma taxação global de carbono seriam significativas (em torno de 40 a 60 bilhões de dólares por anos até 2050) e seriam uma potencial fonte de financiamento para projetos relacionados a clima e desenvolvimento em países em desenvolvimento.

Resultados

A análise bibliométrica evidenciou (i) menor pesquisa científica jurídica sobre o tema; (ii) poucas publicações em português, apesar de um aparente destaque de publicações realizadas por autores afiliados tanto a universidades brasileiras; e (iii) uma maior concentração das discussões em países desenvolvidos. O Brasil e a China se destacam entre os países do Sul Global na discussão do tema.

A análise bibliográfica permitiu concluir que o tema segue indefinido e sob ampla discussão no fórum internacional de competência. Não há dúvidas sobre a competência da OMI para adotar uma MBM no âmbito da MARPOL, já que versa sobre o comércio marítimo. Nesse fórum, há uma pressão de países desenvolvidos para adoção de MBMs. Os impactos negativos seriam percebidos de forma mais severa pelos países em desenvolvimento, conforme apontado pela bibliografia especializada. Ainda assim, há uma aparente tendência de mudança do posicionamento dos países em desenvolvimento para apoiarem a taxação de carbono. O novo argumento seria baseado na geração de receita e possível fonte de financiamento para (i) diminuir as desigualdades entre os países; (ii) auxiliar os países em desenvolvimento na mitigação dos possíveis efeitos negativos e (iii) implementar ações climáticas em geral.  

Essas novas tendências abrem espaço para novas linhas de pesquisa e um provável novo capítulo nas discussões internacionais, dessa vez com um cenário mais otimista para a taxação global de carbono.

  • LLM em Direito Marítimo pela University College London. Mestrado em Direito Internacional e Direito Comparado pela Universidade de São Paulo. Bacharela em Direito pela Universidade de São Paulo.

CONTEÚDOS RELACIONADOS / RELATED CONTENT:

Compartilhe / Share:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter