Um ano de guerra

Coluna “Desarmamento e Desnuclearização”
por Embaixador Sérgio Duarte

A Carta das Nações Unidas, adotada em junho de 1945, é uma das mais importantes fontes do Direito Internacional. O Capítulo I define os Objetivos da organização mundial e os Princípios fundamentais nos quais deve basear-se a convivência entre as nações. Entre esses últimos está a obrigação de todos membros de abster-se da ameaça ou uso de força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer estado e resolver as disputas internacionais por meios pacíficos, de tal modo que a paz e a segurança não sejam colocadas em perigo. A anexação de territórios pela força não é admissível. A invasão da Ucrânia pela Rússia constitui uma flagrante violação dessas normas, claramente expressadas na Carta. A guerra entre os dois países, iniciada em 24 de fevereiro do ano passado, prossegue desde então. É preciso encontrar urgentemente uma solução.    

A guerra obrigou dezenas de milhares de ucranianos, na maioria mulheres, crianças e pessoas idosas a refugiar-se em outros países, inclusive o Brasil, e causou ampla destruição em áreas urbanas e rurais do país. Até o  momento pereceram mais de 250 mil pessoas dos dois lados, entre combatentes e civis, e os prejuízos materiais são incalculáveis. As consequências econômicas e sociais do conflito são sentidas em muitas partes do mundo, comprometendo gravemente a paz e segurança internacionais. O risco de uso de armas nucleares, trazido à tona de maneira leviana por líderes da potências envolvidas, com maior ou menor estridência, cresce com o desenvolvimento de armas extremamente sofisticadas. Essa assustadora possibilidade parece cada vez mais provável à medida que o conflito se intensifica. Infelizmente, o temor de uma catástrofe nuclear não é desconhecido para a humanidade.   

Dezessete anos depois dos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki o mundo se viu diante da iminência de uma conflagração nuclear durante os treze dias da crise de mísseis de Cuba, em 1962.  Nas décadas posteriores houve diversas ocasiões em que o espectro da guerra nuclear rondou a humanidade. Nos tempos de hoje o temor do aniquilamento atômico volta a assombrar o mundo apesar da reafirmação pelos presidentes Vladimir Putin e Joe Biden, em junho de 2021, do princípio de que “uma guerra nuclear não terá vencedores e jamais deverá ocorrer”.  Os dois líderes anunciaram o compromisso de seus países de iniciar em breve um “diálogo decidido e robusto” a fim de lançar as bases de medidas futuras de controle de armamentos e redução de riscos. Em vez disso, porém, as relações entre ambos se deterioraram, atingindo o ponto mais baixo em várias décadas. O objetivo original de “eliminar as armas nucleares dos arsenais nacionais” expresso unanimemente na primeira resolução da  Assembleia Geral das  Nações Unidas em 1946 parece hoje completamente esquecido, enquanto o diálogo entre as duas maiores potências praticamente cessou. Ao mesmo tempo, os instrumentos de controle de armamentos negociados desde então vem sendo abandonados. A Rússia acaba de anunciar a “suspensão temporária” do último dentre esses acordos que ainda estavam em vigor.

Durante a Guerra Fria, políticos e analistas dos dois lados da confrontação ideológica costumavam atribuir à existência de armas nucleares a ausência de guerras na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Até o início da segunda década do século 21 as políticas de dissuasão nuclear eram consideradas responsáveis pelo mais longo período de paz no Velho Mundo na era moderna. A decisão russa de invadir a Ucrânia sob o pretexto de proteger sua segurança destroçou essa crença: pela primeira vez desde 1939 eclodiu uma guerra entre duas nações europeias. A diferença principal entre a Segunda Guerra Mundial e o conflito atual está em que agora se enfrentam de um lado uma potência nuclear reconhecida como tal pelo Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) e do outro um país não nuclear apoiado por uma aliança militar que dispõe dessas armas. Essa situação torna imperativo redobrar os esforços para eliminar o perigo de guerra nuclear e buscar uma paz duradoura. No entanto, as questões que terão que ser enfrentadas são extremamente complexas para os dois campos adversários.    

Nos termos da Carta das Nações Unidas, o Conselho de Segurança, órgão primordialmente encarregado da manutenção da paz e segurança internacional, tem autoridade para determinar a existência de qualquer ameaça ou rompimento da paz e de atos de agressão, assim como para fazer recomendações e decidir as medidas necessárias para o restabelecimento da paz e segurança, inclusive operações a cargo de forças a serem proporcionadas pelos membros da organização mundial, todos os quais estão obrigados a executar as decisões do Conselho.   

Durante os 77 anos de existência da ONU inúmeras situações passíveis de ação coercitiva foram trazidas à consideração do Conselho de Segurança. O direito de veto, atribuído exclusivamente a cinco potências – China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia – têm impedido na prática a intervenção desse órgão em casos de envolvimento direto dessas potências. No dia seguinte à invasão a Rússia vetou o projeto de resolução do Conselho que obrigaria à retirada de tropas e ensejaria intervenção internacional para o restabelecimento da paz. Outros membros permanentes já utilizaram o veto em diversas ocasiões, assegurando-se assim virtual imunidade contra ação militar ou sanções que lhes poderiam ser impostas. 

Em janeiro de 1950, na ausência voluntária da União Soviética, o Conselho aprovou  um precedente importante, consubstanciado na Resolução 82, que autoriza a intervenção de forças das Nações Unidas em apoio à resistência da porção setentrional da Coreia diante da invasão por parte do lado norte. Anos depois, um armistício resultou na  criação de uma zona desmilitarizada ao longo do paralelo 38 entre a República da Coreia, ao sul, e a República Popular e Democrática da Coreia, ao norte. Até hoje essa guerra formalmente não terminou. 

Em novembro daquele ano o Conselho adotou, ainda sem participação da URSS, a Resolução 377, conhecida como “União pela paz”, a qual decidiu que caso o Conselho se veja impossibilitado de exercer sua responsabilidade primordial de manutenção da paz e segurança internacional devido à falta de unanimidade entre os membros permanentes, a Assembléia Geral deverá ocupar-se imediatamente do assunto em sessão especial de emergência. 

Desde aquela época, dez sessões dessa natureza já foram realizadas pela Assembleia. A  Décima Primeira, ainda em curso, se ocupa do conflito na Ucrânia. Essa Sessão Especial adotou em março de 2022 a resolução ES-11/1, que entre outras decisões condenava a Rússia pela invasão da Ucrânia e exigia a imediata retirada das tropas russas, mas não autorizava o uso de forças armadas internacionais, o que mais uma vez põe em evidência os limites da ação da organização mundial no que se refere aos membros permanentes. Em 23 de fevereiro do ano corrente, véspera do primeiro aniversário da invasão, a XI Sessão Especial de Emergência adotou nova resolução, a qual pedia pela primeira vez a cessação de hostilidades. O Brasil, que se abstivera na resolução acima mencionada, foi responsável pela inclusão dessa exigência, vista como primeiro indício de busca de uma solução negociada.  A ES-11 pode ser reconvocada a qualquer momento. 

As guerras terminam em geral por meio da derrota de um dos litigantes ou por acordo entre eles. Um desfecho militar no futuro imediatamente previsível parece improvável.. Um cessar-fogo poderia constituir o primeiro passo nessa direção. A ação diplomática esclarecida, tanto de países diretamente interessados ou de outros mais afastados das hostilidades poderá  viabilizar esse objetivo inicial e iniciar um processo de paz. O  Brasil tem todas as condições para participar construtivamente desse esforço. 

A vontade política de ambas as partes é essencial, pois o êxito depende de concessões mútuas.  Um entendimento viável sobre o status das áreas contestadas no leste da Ucrânia deverá levar em conta a vontade livremente manifestada pelas populações envolvidas, inclusive no que se refere à Crimeia, anexada pela Rússia em 2014. 

A Ucrânia precisará contar com garantias internacionais firmes e permanentes de sua existência como estado independente, assim como da inviolabilidade de suas fronteiras. A invasão não deve ser recompensada, mas é necessário reconhecer as legítimas preocupações de segurança da Rússia, de forma que o resultado final não seja percebido como uma humilhação infligida pelo Ocidente. A relação entre a Ucrânia e a OTAN exigirá atenção especial. Vale recordar, a propósito, que no início do conflito o próprio presidente Zelensky descartou a participação de seu país no pacto militar atlântico. Qualquer que venha a ser, um acordo de paz envolverá escolhas difíceis para todas as partes interessadas, especialmente as que veem no conflito uma batalha épica entre o bem e o mal. 

O bem sucedido processo de descolonização de muitos territórios não autônomos, inclusive no recente caso de Timor Leste, trouxe às Nações Unidas uma valiosa experiência. Ao longo  do tempo a ONU levou a cabo inúmeras operações de restauração ou manutenção da paz em regiões em conflito,  em certos casos com o estabelecimento temporário de zonas desmilitarizadas.  Os recursos necessários para essas atividades são muito inferiores aos custos da condução de uma guerra prolongada. Concomitantemente com essas operações será preciso prever medidas eficazes de assistência às populações afetadas, assim como de fortalecimento da confiança entre as partes anteriormente em guerra. Novas fórmulas de redução de riscos nucleares e de limitação de tropas e armamentos na Europa  serão de grande utilidade nesse esforço. 

Ainda que não seja possível no momento iniciar negociações que levem à consecução de uma paz justa e duradoura, é importante que futuros acordos não venham a erodir o sistema de segurança internacional construído com base no Preâmbulo e nos Propósitos e Princípios da Carta das Nações Unidas.  Um acordo de paz equilibrado e eficaz poderá até mesmo contribuir para o aperfeiçoamento do atual modelo de interação internacional pacífica consubstanciado no Direito Internacional positivo, em busca de formas mais inclusivas e não discriminatórias de convivência internacional, em proveito da humanidade como um todo.

  • Embaixador, ex-Alto Representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento. Presidente das Conferências Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais. Colunista do IntLawAgendas.

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