O reconhecimento do Direito Humano ao Meio Ambiente Saudável pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU

Resolução adotada no Conselho de Direitos Humanos da ONU abre caminhos jurídicos para futuras implementações.

No dia 08 de outubro de 2021 o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (CDH) adotou Resolução (A/HRC/48/13)[1] reconhecendo o direito humano ao meio ambiente seguro, limpo, sadio e sustentável (safe, clean, healthy and sustainable environment, em inglês; doravante DHMA). Abre-se, assim, o debate sobre seus contornos, implicações e justiciabilidade; em outras palavras, sua consolidação. Proposta conjuntamente pelos governos da Costa Rica, Maldivas, Marrocos, Eslovênia e Suíça, a resolução angariou 43 votos favoráveis – incluindo o Brasil – e quatro abstenções. Sintetizando o espírito que movimentou Estados, sociedade civil e Academia no estímulo desse documento, a Alta Comissária para Direitos Humanos, Michelle Bachelet, na abertura de seu discurso da 48ª sessão do CDH, pontuou que “A safe, clean, healthy and sustainable environment is the foundation of human life”.

Cuida-se da primeira vez que o CDH reconhece autonomamente o direito – o que significa que se pode esperar ulteriores pronúncias sobre o tema. Em sintonia, já se fala de um protocolo à Convenção Europeia de Direitos Humanos envolvendo o DHMA. Apesar de breve, a Resolução essencialmente: (a) reconhece o direito humano ao meio ambiente seguro, limpo, sadio e sustentável; (b) pontua que o DHMA relaciona-se com outros direitos humanos e; (c) conecta a implementação do DHMA aos regimes de acordos ambientais multilaterais sob os princípios do Direito Internacional Ambiental; e (d) estimula Estados a adotarem medidas de promoção desse direito. Passo importante no estabelecimento autônomo do direito humano ao meio ambiente, a Resolução deixa ainda margem para especulação sobre seu significado. Nesse post, exploro três aspectos do DHMA: seu processo de consolidação no seio do CDH; o conteúdo reconhecido na resolução e; os desdobramentos práticos que este reconhecimento pode implicar, inclusive para o Brasil. Diante desses elementos, argumento que trata-se do momento de reforçar a incorporação e o uso do DHMA na litigância nacional e internacional – exatamente porquanto um conceito em construção.

É um truísmo que o pleno exercício de direitos humanos só possa ocorrer num meio ambiente plenamente equilibrado e que, consequentemente, o dano ambiental pode afetar diretamente todo e qualquer direito humano. O fato de que o DHMA não tenha sido autonomamente reconhecimento no momento de gênese da moderna construção dos direitos humanos – tradicionalmente vislumbrada nos Pactos de 1966 – gera evidentes resistências em relação a sua autonomia. Tal circunstância tem sido objeto de rápida contestação numa série de iniciativas recentes, tanto em esfera regional quanto universal. Seu reconhecimento pelo Conselho de Direitos Humanos é uma importante adição nesse sentido.

O tópico não é inédito no âmbito do Conselho. Desde 2013 Relatores Especiais vem trabalhando na matéria (John Knox e David R. Boyle) e produziram quatro relatórios fundamentais para o seu entendimento, cujo conteúdo está bastante refletido na resolução adotada.

Um dos aspectos mais dos relatórios é o levantamento feito no âmbito dos Estados para verificar de que forma, direta ou indireta, o direito ao meio ambiente saudável já é reconhecido. É eloquente o fato de que 126 Estados reconhecem o DHMA em tratados e 101 Estados reconhecem-no em suas normas internas. A Resolução menciona que o direito é reconhecido de alguma forma por 155 Estados. No entanto, os relatores evitam se pronunciar de maneira significativa sobre o impacto de tal reconhecimento no campo do direito internacional consuetudinário. Essa escolha talvez se explique pela necessidade de estimular apoio ao seu reconhecimento por meio de documentos internacionais – um apelo ao costume poderia eventualmente gerar resistência, caso não haja consenso em relação ao seu conteúdo. Observa-se que o direito humano ao meio ambiente saudável também se encontra previsto no Pacto Global para o Meio Ambiente, sendo um dos pilares da iniciativa.

Os relatórios e os Framework Principles desenvolvidos no âmbito do Comitê não são vinculantes, embora reflitam em grande medida o estado da arte em relação ao DHMA. Há ainda margem de ação para os Estados e outras instituições na produção normativa de delineamento de seu conteúdo. Note-se, porém, que os trabalhos dos Relatores Especiais foram particularmente influentes no âmbito interamericano no embasamento e inspiração da Opinião Consultiva no 23 da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre a relação entre Meio Ambiente e Direitos Humanos, demonstrando já um primeiro impacto dos trabalhos na esfera do CDH.

Há certamente alguma variação em relação aos exatos contornos e ao conteúdo do DHMA, especialmente em regimes distintos, e mesmo no interior dos trabalhos do CDH. Considere-se, por exemplo, o Comentário Geral 36 sobre o Pacto de Direitos Civis e Políticos, que associa a proteção do meio ambiente ao estabelecido direito humano à vida digna – o que pode ser inclusive compreendido como uma visão restritiva do DHMA ao coligá-lo tão somente a apenas um direito humano. Ou então leve-se em consideração a jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos no que endereça questões ambientais sob o guarda-chuva do direito à vida familiar e privada. O reconhecimento da autonomia do direito não gera automaticamente a sua justiciabilidade[2], mas constitui importante elemento em seu processo de consolidação no debate jurídico internacionalista.

Apesar de inovadora e importantíssima, a resolução adotada no dia 08 de outubro não oferece maiores esclarecimentos sobre o significado desse reconhecimento. Parece ter havido alguma prudência (ou cautela?) em firmar um primeiro passo antes de estabelecer todo o caminho. Sabe-se que a resolução encontrou a oposição de alguns Estados, os quais tentaram moldá-la para evitar demasiadas restrições à soberania – aqui o Brasil também se insere.

Nesse sentido, é oportuna uma reflexão sobre os contornos do DHMA no âmbito do direito internacional dos direitos humanos. Para que se possa entender o conteúdo do DHMA é necessário, por ora, mais uma vez valer-se dos relatórios dos Relatores Especiais. Nos relatórios, o DHMA possui duas dimensões: uma procedimental, outra material. A dimensão procedimental, como se sabe, é um dos principais avanços do direito internacional ambiental desde as Conferências do Rio de 1992. Ela  manifesta-se no acesso à informação, publicidade e transparência, participação pública, acesso à justiça, e remédios efetivos (effective remedies). A dimensão material está intimamente conectada com os regimes internacionais ambientais já vigentes, uma vez que inclui a proteção do ar puro, segurança climática, acesso a água potável e saneamento adequado, alimentos saudáveis e produzidos de forma sustentável, ambientes não tóxicos para se viver, trabalhar, estudar e se divertir, e biodiversidade e ecossistemas saudáveis. De certo modo, os contornos e alcances do DHMA baseiam-se na construção internacionalista de normas e standards que vem sendo acordados e desenvolvidos desde Estocolmo.

O reconhecimento internacional é o primeiro passo para uma melhor delimitação de seu conteúdo, âmbito de aplicação, efeitos e meios de reparação. Além disso, uma vez reconhecido internacionalmente, também através de foros de discussões internacionais (como ocorre com outros direitos através de seus respectivos instrumentos e órgãos de monitoramento, interpretação e aplicação) o conteúdo e interpretação do direito poderá ser refinado. Por conseguinte, ao determinar esses standards, inevitavelmente sua judicialização e litigância estratégica nos ordenamentos domésticos torna-se mais percuciente. Embora esteja-se ainda no momento de reconhecimento das noções básicas, não se pode excluir a possibilidade de algum tipo de institucionalização (como órgãos de monitoramento) bem como é essencial definir seu papel na litigância estratégica internacional.

Nessa ordem de ideias, defende-se que direito humano ao meio ambiente seguro, limpo, saudável e sustentável deve ser reforçado na litigância nacional e internacional. Não apenas por compreender um argumento forte, ancorado em diversos regimes jurídicos, mas também estreitando a dimensão individual de proteção. Cuida-se também de uma ferramenta em formação que pode auxiliar no processo de cunhagem de novas obrigações internacionais. Ferramenta essa que pode ser essencial para lidar com ações e omissões dos Estados que teimam em não garanti-lo eficazmente. O caminhar do reconhecimento do direito, sobretudo seu reconhecimento em instrumentos vinculantes, permitirá um uso sistêmico interpretativo, como por exemplo através do artigo 31.3.c da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados.

Pode-se conjecturar ao menos três potenciais impactos práticos que irradiariam do reconhecimento do direito internacional ao meio ambiente seguro, limpo, saudável e sustentável. Primeiro, a irrigação dos sistemas jurídicos nacionais que ainda não o reconhecem, aumentando a possibilidade de judicialização de sua proteção nos ordenamentos domésticos e, quando for o caso, nos sistemas regionais de proteção de direitos humanos. Segundo,  a possibilidade de expandir o seu conteúdo em termos de obrigações e direitos, quando sistemas nacionais forem eventualmente menos protetivos do que os standards internacionais. Terceiro, reforça-se a ideia de DHMA nos próprios organismos internacionais e regionais, bem como no interior de políticas públicas dos Estados.

A última questão que o reconhecimento soleva é a importância para o Estado brasileiro, cujo governo não apenas intentou incluir uma cláusula de soberania na resolução, mas também fez propostas em relação aos sistemas multilaterais existentes. Sabe-se que o DHMA é de certo modo reconhecido constitucionalmente e que a legislação ambiental brasileira tende em larga medida a incorporar standards avançados de proteção ambiental. Pode-se imaginar não apenas o DHMA como um argumento adicional na litigância ambiental e climática, mas também esforços e tentativas de incorporação de standards internacionais em desenvolvimento que sejam efetivamente mais protetivos.

Em termos práticos, o reconhecimento do direito humano ao meio ambiente sadio no domínio do Conselho de Direitos Humanos adiciona importante camada discursiva e juridicamente pragmática em relação aos instrumentos disponíveis para preservação e promoção de standards ambientais. Está em harmonia com outras tendências que reverberam na mesma frequência: o acordo de Escazú, a COP-26 de Glasgow e a análise das NDCs, bem como a prática consultiva do sistema interamericano. Esses são apenas alguns exemplos de uma série de iniciativas que reforçam a ideia do papel do direito internacional em face das emergências ambientais e climáticas que vive a comunidade internacional. Se o reconhecimento do direito demonstra que ele está no interior do processo em construção é conveniente que a oportunidade seja tempestivamente desfrutada.


[1] O texto final da resolução aguarda o processo de tradução para as línguas oficiais do órgão.

[2] Sobre a justiciabilidade do direito humano ao meio ambiente saudável, ver CtIDH, Caso Comunidades Indígenas Miembros de la Asociación Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) Vs. Argentina. Interpretación de la Sentencia de Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de noviembre de 2020. Serie C No. 420, primeiro caso contencioso em que a Corte Interamericana se pronuncia sobre o tema. Para uma análise da questão, ver LIMA, Lucas Carlos. The Protection of the Environment before the Inter-American Court of Human Rights: Recent Developments. Rivista Giuridica dell’Ambiente, 2020/3.

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  • Professor de Direito Internacional Público da Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais CNPq/UFMG. Membro da Diretoria da ILA-Brasil.

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