Paz e Segurança Internacional em 2023

Coluna “Desarmamento e Desnuclearização”
por Embaixador Sérgio Duarte

No limiar do ano de 2023 as perspectivas para a paz e segurança internacional nada têm de animadoras; ao contrário, suscitam grave preocupação. A guerra entre a Rússia e a Ucrânia, esta última com apoio político e militar da OTAN, prossegue sem tréguas e já causou o deslocamento de mais de sete milhões de pessoas das regiões de conflito para países vizinhos, trazendo sofrimentos humanos e prejuízos materiais incalculáveis, e não apenas para as regiões em conflito. Após onze meses de hostilidades, não se vislumbra a possibilidade de acordo e nem mesmo de um cessar-fogo duradouro que permita negociações frutíferas. Em outras partes do mundo, como no estreito de Taiwan, no nordeste asiático e no subcontinente indiano as divergências entre potências dotadas de armas nucleares continuam sem solução. Ao mesmo tempo, antigas rivalidades e interesses externos ameaçam a paz e a segurança no Oriente Médio e em partes da África. Em alguns países não possuidores de armas nucleares setores da opinião pública advogam a obtenção dessas arma. 

A falta de progresso decisivo no tratamento de problemas globais causa inquietação. Não tem sido possível, apesar de louváveis esforços nacionais e multilaterais, encontrar convergência sobre formas eficazes de enfrentar a deterioração do meio ambiente e minorar as consequências negativas da mudança do clima.  Enquanto isso, o agravamento da desigualdade entre os padrões de vida entre os países mais ricos e os mais pobres, que constituem grande parte da comunidade internacional, contribui para frustrações e ressentimentos que desembocam em situações capazes de produzir movimentos de população frequentemente geradores de resistência, tensões sociais e fricção.   

A Carta das Nações Unidas, adotada em 1945 ao término da Segunda Guerra Mundial, estabeleceu o Conselho de Segurança como principal órgão multilateral encarregado da manutenção da paz e segurança no mundo. Sua atuação nas décadas decorridas desde a fundação da organização mundial tem sido útil para evitar o agravamento de situações capazes de comprometer a segurança e encaminhar sua solução. A comunidade internacional tem colaborado com o Conselho para o êxito de operações destinadas ao restabelecimento ou à manutenção da paz em diversas regiões. A Carta das Nações Unidas, documento básico que define os objetivos e princípios em que deve basear-se a convivência entre as nações, estabelece claramente que a força deve ser usada exclusivamente no interesse comum e permite tomar as medidas necessárias para a prevenção e eliminação das ameaças à paz e para a supressão de atos de agressão. 

Sem dúvida, sempre se verificaram, ao longo desse período, desentendimentos, desconfiança e em certos casos aberta hostilidade entre as nações, especialmente as cinco que desde a formação do Conselho de Segurança desfrutam da qualidade de membros permanentes desse órgão e como tais possuem o poder de vetar suas decisões. Essas potências, vencedoras da Segunda Guerra Mundial (China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia) representavam em 1945 os principais polos de poder no mundo. Elas foram também reconhecidas como possuidoras exclusivas de armas atômicas pelo Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), de 1970. Deve-se esclarecer que esse reconhecimento não é absoluto e perpétuo, pois está limitado por condições mencionadas no mesmo Tratado. A dupla qualidade conferida com exclusividade a esses cinco países pela Carta e pelo TNP lhes dá responsabilidades especiais não somente no que toca à manutenção da paz e da segurança mas também no seu relacionamento mútuo e com os demais membros da comunidade internacional. 

Como indicado acima, na atualidade algumas dessas potências se encontram envolvidas, pela primeira vez na história do pós-guerra, em um grave conflito no território europeu, ao mesmo tempo em que profundas divergências entre elas permanecem sem solução, ameaçando comprometer a paz e a segurança de todos.  Embora não tenha havido, até o momento, enfrentamento militar direto entre elas, os riscos de agravamento ou expansão do atual conflito parecem cada vez maiores. 

Os países possuidores de armas nucleares adotam doutrinas que deixam aberta a eventualidade de seu uso nas circunstâncias que considerarem adequadas. As manifestações oficiais e a retórica de seus líderes tampouco são tranquilizadoras. Todos eles se empenham no aperfeiçoamento de seus arsenais e no desenvolvimento de novos engenhos ofensivos e sistemas de lançamento que os tornam cada vez mais rápidos e mortíferos, assim como de tecnologias avançadas de uso militar como mísseis hipersônicos, técnicas cibernéticas, emprego de inteligência artificial e outras especialidades bélicas.  O emprego de armas nucleares em uma guerra certamente terá consequências desastrosas além das fronteiras dos beligerantes e poderá inviabilizar a vida na Terra.   

Há mais de um século, desde a fundação da Liga das Nações em 1919, a humanidade tem procurado progredir na institucionalização do tratamento multilateral de assuntos e situações de interesse geral. A Liga acabou por desaparecer, mas sua substituição pela ONU levou adiante esse objetivo com significativo êxito. Apesar disso, nos últimos anos nota-se um retrocesso desse movimento em diversos campos da interação ente os países. Certas instâncias multilaterais dedicadas a questões relativas à segurança se encontram praticamente paralisadas ou disfuncionais, como a Conferência do Desarmamento (CD) e a Comissão de Desarmamento (UNDC), a primeira com atribuições negociadoras e a segunda com caráter deliberativo. O Tratado Abrangente de Proibição de Ensaios Nucleares (CTBT) até hoje não entrou em vigor e o Tratado de Proibição de Armas Nucleares (TPAN) enfrenta feros oposição por parte dos países nuclearmente armados e alguns de seus aliados. As recomendações da Primeira Comissão da Assembleia Geral raramente têm seguimento. Dificuldades semelhantes ocorrem em outras esferas de interesse da comunidade internacional, como no sistema de solução de controvérsias da Organização Mundial do Comércio (OMC). 

Uma avaliação isenta da ação do Conselho de Segurança na manutenção da paz e segurança internacionais, porém, deve levar em conta que esse órgão tem sido razoavelmente bem sucedido nas situações previstas nos Capítulos VI e VII da Carta – respectivamente, solução pacífica de controvérsias, atos que ameacem a paz e agressão – sempre que sua atuação não envolveu contrariar diretamente o interesse de qualquer dos cinco membros permanentes.  Nesses últimos casos o Conselho tem sido incapaz de agir. Acresce que sua composição, com a atribuição de status e privilégios especiais àqueles cinco países, já não corresponde à configuração política do mundo. Mais ainda, o diálogo e interação construtiva entre essas potências, elemento essencial para a busca de entendimento, têm sido prejudicados por crescente hostilidade e desconfiança, impedindo o progresso de iniciativas capazes de promover a estabilidade e a paz.

Por esse motivo torna-se urgente levar adiante a reforma do Conselho de Segurança a fim de conferir-lhe a autoridade e representatividade necessárias para agir com presteza e eficiência em situações que exijam decisões sobre o emprego de medidas que levem à manutenção ou  restauração da paz e segurança, mesmo – e talvez principalmente – quando houver necessidade de aplicar tais medidas a alguma daquelas cinco potências, em benefício da coletividade. Paz e segurança são bens comuns a toda a comunidade internacional e não devem estar sujeitas ao arbítrio dos poderosos em detrimento do interesse geral.

No inquietante panorama internacional dos dias de hoje é essencial o fortalecimento dos órgãos multilaterais das Nações Unidas, e em especial o Conselho de Segurança e a Assembleia Geral, a fim de promover a realização dos objetivos expressos no Preâmbulo da Carta: tolerância e convivência pacífica, união em torno da paz e segurança, uso de força armada exclusivamente no interesse comum e progresso econômico e social de todos os povos. 

Com base em sua tradição de solução pacífica de controvérsias e abstenção do uso da força e nos princípios consagrados em sua Constituição, o Brasil tem um papel fundamental a desempenhar para a consecução desses elevados propósitos.

  • Embaixador, ex-Alto Representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento. Presidente das Conferências Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais. Colunista do IntLawAgendas.

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