O “Tabu Nuclear” e o Direito Internacional Humanitário

Within, at the most, ten years, some of those
[nuclear] bombs are going off. I am saying this
as responsibly as I can. That is the certainty.

C. P. Snow, 1960

Até hoje a trágica profecia do físico e romancista inglês Charles Percy Snow na epígrafe deste artigo não se realizou, para surpresa de outros pensadores. Em 2002, Thomas C. Schelling, mais conhecido como economista mas também destacado professor de relações internacionais, segurança e estratégia nuclear, escreveu: “Há cinquenta anos atrás, quem poderia imaginar que chegaríamos a um novo século – um novo milênio –sem que nenhuma arma nuclear tivesse sido disparada em conflito? Ocorreu algo realmente inesperado, ou melhor, algo esperado por muitos na verdade não aconteceu.”

Os únicos ataques atômicos da história, realizados pelos Estados Unidos contra as cidades de Hiroshima e Nagasaki, ocorreram há 78 anos. Durante esse período, em diversas ocasiões o mundo se viu diante da possibilidade de novo uso bélico do armamento nuclear. Ao longo das décadas da Guerra Fria, o total de armas nucleares existentes no mundo chegou ao alarmante máximo de mais de 70 mil, a imensa maioria em poder de duas potências envolvidas em uma rivalidade e hostilidade que dura até nossos dias. Para alívio de muitos, o número de ogivas nucleares e seus vetores decresceu daquele total até as cerca de 13 mil que se estima existirem atualmente nos arsenais de nove países. Essa redução, no entanto, foi sendo paralelamente anulada pelos constantes aperfeiçoamentos tecnológicos que trouxeram maior velocidade, furtividade e poderio explosivo ao armamento. Ao mesmo tempo, seus possuidores continuam elaborando planos e cenários que contemplam sua utilização. O General Lee Butler, que foi chefe do Comando Estratégico norte-americano (STRATCOM) no início dos anos 1990, afirmou em uma entrevista em 2015 que “a humanidade escapou de um holocausto nuclear devido a uma combinação de competência, sorte e intervenção divina – provavelmente esta última em maior proporção”.

Acadêmicos e comentaristas têm procurado explicar por que motivo até hoje essas armas não foram usadas em guerra, apesar de inúmeras crises em que isso poderia ter acontecido. Pelo menos por duas vezes documentadas o mundo esteve à beira de uma catástrofe, somente evitada por circunstâncias fortuitas. O Relógio do Juízo Final marca noventa segundos para a meia-noite.

Em diversas outras ocasiões os comandantes militares deixaram de lado a opção nuclear, que parecia indicada nas circunstâncias. Na Guerra do Golfo, por exemplo, em 1991, o uso de armas nucleares de baixa potência possivelmente teria sido militarmente útil no deserto do Iraque, onde causariam relativamente poucos danos colaterais e não haveria resposta nuclear por parte do regime de Saddam Hussein, que efetivamente não possuía tais armas. No entanto, essa possibilidade aparentemente não entrou nos planos dos chefes.

Para justificar a posse exclusiva de capacidade nuclear bélica, as potências nucleares procuram atribuir em grande parte à teoria da dissuasão nuclear o fato de que não houve até hoje um enfrentamento atômico entre elas. Durante nos anos da Guerra Fria os líderes ocidentais costumavam observar, com certo orgulho, que devido à existência de armas nucleares, desde 1945 não houve guerras na Europa. Esse argumento dificilmente se sustenta agora, diante da eclosão do conflito entre a Rússia, detentora do maior arsenal nuclear do planeta, e a Ucrânia, apoiada militarmente pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), da qual fazem parte três outras potências atômicas – Estados Unidos, França e Reino Unido. A estridência das ameaças de lado a lado não tranquiliza a humanidade.

Desde a Antiguidade certos tipos de armamento têm sido estigmatizados e banidos devido a suas características excessivamente cruéis ou efeitos indiscriminados. Ao longo do tempo cristalizaram-se os princípios básicos do direito internacional humanitário aplicável aos conflitos armados: distinção entre combatentes e não combatentes, proporcionalidade na resposta a ataques, não causar danos ao meio-ambiente e evitar sofrimento excessivo ou desnecessário.

As armas nucleares costumam ser lançadas contra cidades inteiras, e não fazem distinção entre alvos civis e militares. Além disso, os efeitos da radiação duradoura após uma explosão nuclear não podem ser controlados e atingem todos os que se encontrem na área circunjacente. O princípio da proporcionalidade proíbe ataques que causem danos colaterais desmesurados em relação a suas vantagens militares. Por outro lado, o uso de armas atômicas produz consequências altamente danosas ao meio-ambiente e acarreta sofrimentos prolongados e extremamente cruéis, conforme amplamente documentado após os bombardeios de Hiroshima e Nagasaki.

Por esses motivos, a Corte Internacional de Justiça concluiu, em sua Opinião Consultiva de 1966 sobre a legalidade do uso de armas nucleares que “o uso ou ameaça de uso de armas nucleares seria em geral contrário às normas de direito internacional aplicáveis em conflitos armados, e em particular aos princípios e normas do direito humanitário”.

O “TABU NUCLEAR”

Existe hoje em todo o mundo uma crescente aversão à ideia de que as armas nucleares possam ser usadas como instrumento de afirmação de interesses nacionais. As doutrinas oficiais dos países possuidores atribuem a esse armamento um papel defensor em circunstâncias extremas, isto é, aquelas em que a própria existência do estado se encontre em perigo. Esse sentimento de aversão tem sido caracterizado por muitos autores como um “tabu” contra o uso de armas nucleares. Sua origem e implicações vêm sendo estudadas e identificadas desde o início da era atômica e possuem uma sólida base moral.

Desde o final da Segunda Guerra Mundial desenvolveu-se também a ideia de evitar o primeiro uso de armas nucleares. Dentre os nove países possuidores de tais armas, somente a China estabelece em sua doutrina militar a interdição voluntária do primeiro uso, reservando-se o direito de retaliação a um ataque nuclear. Embora os demais estados possuidores não possuam limitação similar, as características específicas e a capacidade destruidora dessas armas explicam em grande parte os motivos pelos quais elas não foram novamente usadas após 1945. Os efeitos mais visíveis da crescente consciência dos perigos da existência de armas atômicas têm sido, por um lado, os esforços multilaterais para deslegitimar as armas nucleares aos olhos da opinião pública mundial e por outro a valorização de seu potencial dissuasório na retórica dos possuidores e seus aliados.

A repulsa decorrente dos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki gerou o consenso nas Nações Unidas, em 1945, para a constituição de uma Comissão de membros do Conselho de Segurança, mais o Canadá, para elaborar propostas de eliminação das armas nucleares. Esse esforço não teve sucesso devido à rivalidade e animosidade entre as duas principais potências, mas proporcionou a adoção de medidas parciais, principalmente no campo da não proliferação.

A partir dos anos 1950 a comunidade internacional elaborou e implementou diversos importantes instrumentos, como os Tratados de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), de Proibição de Armas Químicas e sua Destruição (CWC)e de Proscrição Abrangente de Ensaios Nucleares (CTBT), entre outros. Desde meados da década de 1990, no entanto, os órgãos deliberativos e mecanismos negociadores das Nações Unidas criados pela I Sessão Especial da Assembleia Geral sobre Desarmamento (SSOD I), notadamente e Conferência do Desarmamento e a Comissão de Desarmamento, se encontram vitualmente paralisados, o que tem impedido progressos tangíveis no sentido de novos acordos multilaterais para o controle e eliminação das armas nucleares. Ao mesmo tempo, observa-se uma erosão da confiança e credibilidade dos acordos existentes, inclusive o TNP, considerado a “pedra angular” do regime internacional de não proliferação. Muitos países advogam a necessidade de realização de uma nova Sessão Especial a fim de revitalizar as estruturas internacionais dedicadas a esses temas, porém as potências armadas e seus aliados se mostram reticentes.

Essa situação gerou um sentimento de profunda frustração entre grande parte da comunidade internacional, que passou a procurar maneiras de promover avanços em direção a novos acordos de desarmamento. A oportunidade surgiu na Conferência de Exame do TNP em 2010, que registrou pela primeira vez, em seu documento final, a preocupação dos Estados-Parte do Tratado com as consequências “catastróficas” de qualquer uso de armas nucleares. Até essa Conferência, o tratamento internacional da questão das armas nucleares costumava focalizar a dissuasão, a estabilidade estratégica entre as grandes potências, os perigos da proliferação e os desafios de cumprimento dos compromissos dos países não nucleares. A Conferência de 2010 representou um divisor de águas: o foco principal passou a ser o próprio armamento e as consequências de seu possível uso sobre os indivíduos e o meio-ambiente. Isso modificou os termos do debate sobre a utilidade e aceitabilidade dessas armas, facilitando o exame crítico do contexto normativo vigente, no qual a ameaça de uso e o planejamento com esse objetivo são considerados legítimos, e permitindo o desenvolvimento de um novo contexto que desafia a alegada legitimidade. Foram realizadas três Conferências internacionais em 2013 e 2014, que apontaram com detalhe os efeitos ambientais, econômicos e sociais de detonações nucleares.

Com o apoio de organizações da sociedade civil, os países não nucleares mais ativos na promoção do desarmamento nuclear, inclusive o Brasil, assumiram a iniciativa. Apesar da oposição dos possuidores a Assembleia Geral da ONU aprovou em 2015 a convocação de uma Conferência encarregada de “negociar um instrumento juridicamente vinculante para proibir as armas nucleares e que leve a sua total eliminação”. O texto do Tratado de Proibição foi adotado pela Conferência negociadora em 7 de julho de 2017 com 122 votos a favor, uma abstenção um contrário e posteriormente aberto à assinatura dos estados. O TPAN é o único acordo em vigor que inequivocamente obriga todos os seus membros a destruir os arsenais nucleares existentes e a tomar medidas para a mitigação dos danos individuais e ambientais decorrentes de seu uso.

Nosso país foi o primeiro a assinar o Tratado, que se encontra atualmente em exame pelo Congresso Nacional, com vistas a sua ratificação. A adesão do Brasil a esse instrumento é elemento importante para o prosseguimento dos esforços de universalização do TPAN, transformando o tabu nuclear em norma de direito internacional reconhecida e respeitada por todos.

  • Embaixador, ex-Alto Representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento. Presidente das Conferências Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais. Colunista do IntLawAgendas.

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