O Mercosul e o futuro das negociações extrabloco

No momento de formação do MERCOSUL seus membros afirmaram que a existência do bloco “implica uma política comercial comum em relação a terceiros Estados ou agrupamentos de Estados e a coordenação de posições em foros econômico-comerciais regionais e internacionais” (Tratado de Assunção, art. 1º.) e que o bloco está fundado na reciprocidade de direitos e obrigações. Após a concepção do bloco, o texto da Decisão do Conselho Mercado Comum (CMC) nº 32/00 reafirmou o compromisso dos Estados Partes do MERCOSUL de negociar de forma conjunta acordos de natureza comercial com terceiros países ou blocos de países extrazona nos quais se outorguem preferências tarifárias. 

O Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT) prevê em seu artigo XXIV que a União Aduaneira será o território com leis ou tarifas distintas que sejam mantidas para parte substancial do comércio desse território com outros territórios. Não há previsão expressa sobre a capacidade negociadora da União Aduaneira ou de seus membros. Trata-se de uma opção política dos países e, no caso do MERCOSUL, formalizada por meio da Decisão CMC nº 32/00. 

A Decisão CMC nº 32/00 aparece como uma tentativa de fortalecer o MERCOSUL em razão da possiblidade de enfraquecimento do bloco caso os países decidissem realizar negociações individuais e esvaziar as preferências existentes no bloco. As negociações anteriores com a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e as ações individuais do Chile motivaram muitas das preocupações existentes à época, que culminaram na proposta da Decisão CMC nº 32/00. Além disso após a publicação da Decisão, até 2008, parte dos esforços dos países do bloco mercosulino se concentrou na revisão dos acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC) e das preferências negociadas multilateralmente, bem como na equalização dos interesses ofensivos na área agrícola (aqui). Nesse sentido, a Decisão nº 32/00 relança o mandato negociador do bloco e busca impulsionar ações futuras.

Com o enfraquecimento da Rodada Doha na OMC e das negociações multilaterais, um novo impulso de negociações regionais e bilaterais voltou a se intensificar e, com isso, o questionamento sobre a força e o alcance da Decisão nº 32/00 também ganhou espaço. 

Questiona-se, por exemplo, se ela precisaria ser internalizada pelo ordenamento jurídico interno dos países membros do MERCOSUL para entrar em vigor. De acordo com a plataforma oficial do MERCOSUL, a Decisão nº 32/00 requer incorporação pelos membros e, até o momento, tal incorporação não foi realizada por nenhum deles (aqui). Some-se a isso o fato de que, outras decisões do CMC normalmente dispõem expressamente quando seu conteúdo está dispensado de internalização para vigorar e, geralmente, isso ocorre para decisões que tratam de temas administrativos ou organizacionais do MERCOSUL. Essa situação dá margem para fragilidade do alcance da Decisão e para constantes dúvidas quanto à vontade política dos membros de sustentar a obrigação de negociar conjuntamente futuros acordos comerciais.

De outro lado, afirma-se que a Decisão CMC nº 32/00 reafirma uma obrigação já existente no Tratado de Assunção, e estaria dispensada de internalização para gerar as obrigações ali decorrentes. Essa dispensa estaria baseada no artigo 42 do Protocolo de Ouro Preto, o qual prevê que as normas do MERCOSUL deverão, quando necessário, ser incorporadas ao ordenamento jurídico dos países membros. 

O fato de haver uma reafirmação sobre dispositivo contido no artigo 1º do Tratado de Assunção, bem como a existência de obrigação de reciprocidade, indicaria que os países membros seriam um conjunto indissociável. Assim sendo, a revogação ou inexistência da Decisão CMC nº  32/00, por exemplo, não eliminaria a obrigação de negociar em bloco os acordos com terceiros.(PEÑA, 2015)

Em momentos de dúvidas ou dificuldades com relação ao fechamento de uma oferta negociadora única do MERCOSUL, os países do bloco, incluindo o Brasil, adotam posicionamentos distintos sobre o vínculo obrigacional da Decisão CMC nº 32/00 ou, mesmo sem citá-la, sobre a liberdade dos membros de adotar formato negociador mais flexível.

A Argentina tradicionalmente defende a união do bloco mercosulino em suas negociações externas. Na gestão do Presidente Alberto Fernandez há um reforço pela união do MERCOSUL e da sua força integradora (aqui). A negociação extrabloco não é desprezada, mas a Argentina deixa clara a necessidade de resolver questões internas do Mercosul e ao mesmo tempo proteger seus setores mais sensíveis durante tais negociações. Não se posiciona por uma negociação individual. (aqui

Apesar disso, essa mesma gestão adotou uma fala flexibilizadora da posição negociadora Argentina em relação a união do Mercosul, que possibilite o estabelecimento de velocidades distintas de compromissos. Essa posição foi adotada frente aos novos acordos que estão sendo negociados pelo Mercosul, notadamente com a Coreia do Sul. A Argentina inicialmente se retirou das negociações e depois voltou atrás advogando por uma negociação com compromissos diferenciados para ela, em relação aos demais membros do bloco, que seguem negociando 3+1 em diversos temas. (aqui; aqui

Em 2015, quando houve intensificação da negociação do acordo entre MERCOSUL e União Europeia e um potencial impasse interno do bloco mercosulino com relação às ofertas a serem negociadas e a dificuldade em unificar uma oferta conjunta do bloco, o Brasil noticiou – com o apoio do Uruguai – que poderia considerar a flexibilização para a apresentação de ofertas diferentes por cada país do bloco para forçar a conclusão do acordo. (aqui) Nessa fase se intensificaram debates importantes sobre as possiblidades jurídicas, institucionais e políticas de flexibilizar a Decisão CMC nº 32/00 para permitir a negociação de acordos com preferências comerciais pelos membros, de forma individual.

Ou seja, Brasil e Argentina em polos diferentes usam o mesmo argumento. 

Para o Uruguai não haveria impedimento à celebração de acordos de livre comércio de forma individual. Sinal disso são os recentes movimentos para celebrar acordos de preferência comercial com China e para adesão ao Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífica (CPTPP).

Em setembro de 2021, o Uruguai sinalizou sua intenção de celebrar acordo com a China individualmente, iniciativa combatida fortemente pela Argentina e demais membros do bloco. (aqui) Foram realizadas conversas exploratórias e em julho de 2022, Uruguai formalmente indicou que os dois países estariam prontos para iniciar negociações. Os demais membros do bloco seriam convidados a participar e aderir às negociações em um segundo momento. (aqui). O lado uruguaio entende que as regras do bloco não impedem o país de negociar unilateralmente acordos de preferência comercial. 

Agravando ainda mais tensão entre Uruguai e demais membros do bloco, pouco antes da LXI Cúpula do Mercosul, foi noticiado a solicitação de adesão do Uruguai ao CPTPP. Diante da eminência da solicitação de adesão do Uruguai, os demais membros do bloco apresentaram um texto conjunto de que poderiam “adotar as eventuais medidas que julguem necessárias para defender seus interesses nos âmbitos jurídico e comercial” caso o país decidisse efetivamente solicitar a adesão ao acordo. Tal notificação não impediu a solicitação de adesão pelo chanceler uruguaio, Francisco Bustillo, ao ministro de Comércio e Crescimento das Exportações da Nova Zelândia, durante visita à Oceania. Para o Uruguai não haveria impedimento no direito internacional dessas aproximações com blocos e países de fora do MERCOSUL. (aqui)

O argumento jurídico do Uruguai é de três ordens: em primeiro lugar a restrição contida na Decisão CMC nº 32/00 violaria a soberania política do Uruguai; em segundo lugar, a Decisão não teria sido internalizada no ordenamento jurídico interno do país e não teria validade como obrigação para cumprimento pelo país, e; em terceiro lugar, para ter vigência interna a Decisão teria que ser aprovada pelo Congresso Uruguaio por limitar ou restringir a atuação internacional do Estado. (aqui)

O encontro do Presidente Lula com o Presidente Uruguaio Lacalle Pou em janeiro não pacifica a questão, mas tenta colocar uma ordem de prioridades nas ações do bloco e dos países. Primeiro focar na conclusão do Acordo com a União Europeia e, depois, analisar viabilidade de acordo com China. Além disso, o fortalecimento da parceria entre Brasil e Uruguai pode contribuir para a diluição das intenções uruguaias com o parceiro asiático. Não há nesse momento, contudo, compromisso de que Uruguai suspenderá suas negociações individuais, algo que preocupa os demais países do bloco. (aqui

A falta de um entendimento do bloco sobre a Decisão CMC nº 32/00, perpetua dilemas e abre oportunidades para que os Estados interpretem e posicionem-se em relação ao tema. Ao mesmo tempo em que a rigidez da norma, tal como colocada, dificulta os Estados Partes (EP) a seguirem com determinados impulsos negociadores, talvez a previsão ali existente sirva justamente para frear iniciativas que poderiam enfraquecer a união do bloco. 

Percebendo que os EP de alguma forma já tentaram atenuar a norma da Decisão CMC nº 32/00 e vislumbraram como saída a possibilidade de negociações com velocidades distintas a depender do acordo, mas sem a retirada ou exclusão da membresia, questiona-se até que ponto um entendimento comum do bloco a respeito do alcance da Decisão CMC nº 32/00 ou alguma regulamentação específica poderia facilitar processos negociadores futuros, especialmente quando determinados membros do bloco têm mais ou menos apetite negociador. A partir da análise dos distintos formatos e estratégias adotadas pelos mega acordos contemporâneos – especialmente, CPTPP, Zona de Comércio Livre Continental Africana (AfCFTA) e Parceria Econômica Global Abrangente (RCEP) -, algumas dessas metodologias poderiam ser úteis para o atual impasse do MERCOSUL em termos de relacionamento externo: built-in agendas, acordos de múltiplas velocidades e compromissos variáveis para contemplar assimetrias. 

Essa medida pode favorecer transparência das posições negociadoras e evitaria subterfúgios atualmente colocados pelos EP para questionar a Decisão CMC nº 32/00. Manter a situação como está e ignorar o descompasso do texto da Decisão CMC nº 32/00 com o discurso dos diferentes membros do bloco, em momentos importantes de negociações extrablocos, pode dificultar e até mesmo travar o andamento de processos negociadores, a um alto custo político, que culmina no questionamento sobre a continuidade do MERCOSUL. É dizer, ao mesmo tempo em que negociar unilateralmente ou negar a Decisão CMC nº 32/00 enfraquece o MERCOSUL, reforçar que apenas em bloco os membros podem seguir negociando, também pode levar ao seu enfraquecimento.

O Brasil precisa liderar essa discussão interna – que parece cada vez mais inevitável – sobre como o MERCOSUL pode continuar oferecendo uma plataforma global de integração sem ao mesmo tempo tolher a vontade política de alguns EP, que se mostram determinados a seguir em frente com abertura comercial extrabloco. (aqui)

  • Advogada, Doutora em Direito Internacional pela PUC/SP. Consultora em comércio internacional. Pesquisadora do IPEA. Diretora da Rede Women Inside Trade e Editora do podcast WITcast. marina@marinaegydio.com.br

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