O Fim de uma Era

Coluna “Desarmamento e Desnuclearização”, por Embaixador Sérgio Duarte

Há oito décadas atrás, quando se aproximava o fim da Segunda Guerra Mundial, crescia o temor de que as duas principais potências que emergiam como líderes incontestáveis de boa parte da comunidade internacional se chocassem em seguida em um inevitável conflito de consequências imprevisíveis. Pela primeira vez na História os dois adversários possuíam armas capazes de extinguir a civilização humana.

Apesar dessa aterradora possibilidade, o que ocorreu ao longo dos anos foi uma confrontação política e ideológica sem enfrentamento militar direto entre ambos os lados, a que se convencionou chamar “Guerra Fria”.  Em outras partes do mundo, porém, a busca de influência política gerou inúmeros conflitos locais responsáveis por muitas mortes e graves prejuízos econômicos e sociais.  

As cinco principais potências vencedoras em 1945 conseguiram contornar suas rivalidades e divergências e desenhar um conjunto de normas e instituições que possibilitou por largo período uma incômoda convivência entre dois blocos política e ideologicamente antagônicos.  O primeiro desses arranjos antecedeu o fim da Segunda Guerra Mundial – o entendimento entre Roosevelt e Stalin, com o concurso de seus homólogos do Reino Unido, França e China, cujo que resultado foi o estabelecimento das Nações Unidas em 1945.  No Conselho de Segurança, órgão primordialmente encarregado da manutenção da paz e segurança do mundo, cada uma das cinco potências obteve a capacidade de impedir a tomada de decisões que considerasse contrárias a seus interesses de segurança por meio do direito de veto, que institucionalizou sua situação privilegiada. A fim de participar da construção de um mundo livre do flagelo da guerra os demais membros da comunidade internacional concordaram em aceitar a divisão assimétrica das responsabilidades e a primazia daquelas potências na condução do relacionamento entre todas as nações.

A primeira Assembleia Geral das Nações Unidas, realizada em janeiro de 1946, teve a oportunidade de lograr um acordo que poderia haver mudado as relações internacionais e inaugurado uma nova fase de cooperação em benefício de toda a humanidade. Ainda sob o impacto do horror despertado pelos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki, a Assembleia adotou a Resolução no. 1 que decidiu constituir uma comissão encarregada, inter alia, de formular propostas para a eliminação das armas atômicas.  No entanto, a desconfiança e animosidade entre os Estados Unidos e a União Soviética impediram o prosseguimento da iniciativa e a comissão acabou por ser desfeita em 1948, sem realizar seu propósito. A comunidade internacional passou a dedicar-se a medidas parciais de não proliferação e controle de armamentos, e o objetivo de “eliminação” foi ficando cada vez mais distante. 

Apesar do malogro da oportunidade de abolir para sempre o perigo nuclear, o mundo sobreviveu até agora à ameaça atômica, seja por uma combinação de habilidade política e sorte ou por interferência divina.  Mesmo em alguns momentos de gravíssimas crises não ocorreu um enfrentamento militar direto entre as principais potências, que buscaram concluir acordos entre si para reforçar a própria segurança, inspirando também a adoção de certo número de instrumentos que regularam durante as décadas posteriores o instável equilíbrio de poder.

Entre os acordos bilaterais ou plurilaterais concluídos nas primeiras décadas da Era Atômica estão os diversos instrumentos que definiram em diferentes momentos as forças convencionais e nucleares de que cada lado poderia dispor, estabelecendo também mecanismos de fortalecimento da confiança. Os principais são os decorrentes da Ata Final da Conferência de Helsinki sobre Segurança e Cooperação na Europa, de 1975, especialmente os conhecidos pela sigla CFE, assim como os vários acordos entre os Estados Unidos e a União Soviética (depois Rússia) além das séries SALT, SORT e START sobre armamentos nucleares, o tratado ABM sobre sistemas antimísseis e o tratado de “Céus Abertos” sobre inspeções mútuas. Deve-se mencionar também, nesse particular, o entendimento decorrente da solução da crise dos mísseis soviéticos em Cuba em 1962, que resultou na instalação pioneira de um sistema de comunicação direta entre a Casa Branca e o Kremlin para casos de emergência, apelidado “telefone vermelho”.  Em 1986 o Secretário-geral do Partido Comunista da URSS Mikhail Gorbachov e o Presidente norte-americano Ronald Reagan estiveram a ponto de chegar a um acordo sobre o desarmamento nuclear completo, durante um encontro em Reikjavik, na Islândia. No ano seguinte, ambos os países  retiraram os mísseis de alcance intermediário (até 5.000 km.) de que dispunham na Europa. 

Nenhum dos acordos bilaterais mencionados acima se encontra mais em vigor, com exceção do Novo START, negociado em 2009/2010 entre os Estados Unidos e a Rússia.  Ao que se sabe, os dois países vêm reduzindo suas forças nucleares conforme determinado nesse instrumento e  consideram satisfatório o cumprimento dos respectivos compromissos. Em 2021 os presidentes dos Estados Unidos e Rússia, reunidos em Viena, anunciaram conjuntamente a prorrogação do Novo START até 2026 e a decisão de dedicar-se em breve a um “diálogo bilateral integrado” sobre estabilidade estratégica, por meio do qual pretenderiam lançar as bases de futuras medidas de controle de armamentos e redução de riscos.  Até o momento, porém, não houve novas iniciativas nesse sentido. Reiteraram também o mantra de que “uma guerra nuclear não terá vencedores e jamais deverá ocorrer”, formulado por Reagan e Gorbachov em Reikjavik. No entanto, ambas as potências vêm dedicando vastos recursos técnicos e financeiros ao aperfeiçoamento de seu poderio nuclear, que já seria capaz de destruir várias vezes o mundo. Os demais países nucleares tratam igualmente de modernizar seus arsenais.

O mais importante instrumento concluído no campo multilateral foi o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), impulsionado pelas cinco potências com o objetivo de evitar que outros países viessem a desenvolver essas armas e ao mesmo tempo reservar para si sua posse exclusiva. O restante da comunidade internacional – menos quatro países – concordou em renunciar à opção nuclear bélica em troca da promessa de avanços no sentido do término da corrida armamentista e eventualmente do desarmamento nuclear. Outros instrumentos multilaterais adotados durante a Guerra Fria baniram armas atômicas em ambientes e territórios onde elas não existiam, como a Antártida, o espaço exterior e os fundos marinhos. Tratados regionais instituíram zonas livres de armas nucleares em varias partes do mundo.  Foram também negociadas e implementadas convenções que proibiram a fabricação, armazenamento e uso de armas bacteriológicas e químicas, obrigando seus possuidores a destruí-las. Em 1963 Rússia, Reino Unido e Estados Unidos promoveram e assinaram um tratado de proibição de ensaios nucleares na atmosfera e subaquáticos, complementado mais de trinta anos depois pela proibição de testes em todos os ambientes por meio do tratado conhecido pela sigla em inglês CTBT, concluído em 1996. Embora de ampla adesão, este último até hoje não se encontra em vigor por faltar a assinatura e/ou ratificação por parte de certos países nominalmente mencionados no artigo XIV do instrumento. 

Em que pese a relevância dos resultados alcançados, a perspectiva de progressos em direção ao desarmamento nuclear continua sendo desanimadora. Muitos membros nucleares do TNP se mostram insatisfeitos com o que consideram não cumprimento das obrigações de desarmamento constantes do tratado. A crescente dificuldade em chegar a consensos significativos nas conferências periódicas de exame contribui para o descrédito da eficácia do instrumento. Aliada a uma consciência mais clara dos catastróficos efeitos de quaisquer detonações nucleares, essa situação gerou a negociação de um tratado de proibição de armas nucleares, com vistas a sua eliminação. Adotado em 2017 e conhecido pela sigla em português TPAN, o novo instrumento entrou em vigor em 2021 e foi assinado até o momento por 98 países, dos quais 28 ainda não o ratificaram. Desde sua negociação e adoção o TPNW vem sofrendo intensa campanha de oposição por parte dos países nucleares e muitos de seus aliados, que o consideram “contraproducente” e afirmam a intenção de manter seu armamento enquanto julgarem necessário.  Por sua vez, a Rússia acaba de revogar sua ratificação do CTBT, em meio a notícias de que estaria sendo contemplada a retomada de ensaios nucleares por parte dos Estados Unidos e da China, que o assinaram mas ainda não o ratificaram. Os 114 membros das cinco zonas livres de armas nucleares existentes têm exigido, sem sucesso, que os países armados retirem as interpretações sobre a possibilidade de introdução dessas armas nas áreas delimitadas como tais. Por sua vez, o sistema de verificação do cumprimento dos compromissos constantes da Convenção de Proibição de Armas Químicas tem sofrido contestação, ensejando controvérsias sobre sua eficácia. 

A era da construção de entendimentos na esfera nuclear parece haver chegado ao fim. Ao mesmo tempo, cresce o sentimento de descrédito nas instituições e instrumentos elaborados ao longo das décadas passadas, assim como a inconformidade do restante da comunidade internacional com a percebida falta de empenho no cumprimento das obrigações assumidas pelas principais potências nos diversos tratados internacionais. Novos sistemas de armamentos, mais velozes, mais furtivos e mais potentes vêm sendo desenvolvidos e incorporados aos arsenais existentes, aumentando o perigo de enfrentamentos armados por desígnio ou acidente. A Guerra Fria ressurge, agora com contornos mais complexos e alarmantes. Aspirações não satisfeitas, perpetuação de desigualdades e prioridades conflitantes levam à disputa de influência e hegemonia entre os principais polos de poder, ao lado de polos menores cujas divergências poderão igualmente arrastar o mundo a uma conflagração capaz de levar à extinção da humanidade. 

Cada vez se torna mais evidente a necessidade e urgência de convocação de uma nova Sessão Especial da Assembleia Geral sobre Desarmamento (SSOD). Em 1978 a primeira Sessão desse tipo adotou um documento bastante equilibrado sobre as questões de desarmamento, controle de armamentos e não proliferação, com importantes diagnósticos e recomendações. A SSOD-I reformulou a estrutura do mecanismo das Nações Unidas nesse campo, atribuindo à Conferência do Desarmamento (CD) em Genebra o caráter de único órgão negociador e conferindo funções deliberativas à Primeira Comissão e à Comissão de Desarmamento, que dependem da Assembleia Geral. Criou também uma Junta Consultiva do secretário-geral da ONU, que propõe temas para debate e desenvolvimento de ações. Dado o tempo decorrido desde então, com profundas modificações no panorama estratégico mundial, uma Sessão Especial sobre Desarmamento seria de grande valia para a revitalização do tratamento dessas questões na organização mundial, em busca da identificação e promoção de interesses convergentes de maior parte da comunidade internacional.  

 Belo Horizonte, 28 de novembro de 2023

  • Embaixador, ex-Alto Representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento. Presidente das Conferências Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais. Colunista do IntLawAgendas.

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