O caráter emancipatório da Convenção Interamericana contra o Racismo e a necessária mudança de paradigma do pensamento jurídico brasileiro sobre a questão racial

No dia 10 de janeiro de 2022 o Estado brasileiro promoveu um significativo avanço no sentido de mobilizar categorias jurídicas adequadas ao enfrentamento da discriminação racial no País. Por meio do Decreto n. 10.932/2022, foi promulgada a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, aprovada em Assembleia da Organização dos Estados Americanos (OEA) no ano de 2013, na Guatemala. O documento foi recepcionado pelo ordenamento jurídico brasileiro com status de Emenda Constitucional, nos termos do art. 5º, §3º da Constituição da República. 

O texto da Convenção Interamericana contra o Racismo apresenta uma série de conceitos que vêm sendo consolidados pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, com o objetivo de exortar os Estados a conferirem máxima efetividade aos princípios da igualdade e não discriminação. Sob essa perspectiva, há de se problematizar a necessidade de uma aproximação entre profissionais e instituições do sistema de justiça com as categorias sociojurídicas que compõem os estudos relacionados ao direito antidiscriminatório. A própria expressão “categorias sociojurídicas” não está nesse texto por acaso: a erradicação de todas as formas de discriminação e intolerância sugere um reencontro do Direito com as demais ciências sociais, de forma a mobilizar respostas institucionais centradas na interdisciplinaridade. 

A complexidade das múltiplas formas de discriminação não tem no Direito o ponto de partida dos seus processos de compreensão e análise. A título de exemplo, menciona-se o papel dos estereótipos negativos e do preconceito como critérios de hierarquização entre seres humanos: trata-se de categorias próprias da psicologia social da discriminação, que exigirão do intérprete movimentos adequados a compreensão desse campo específico do conhecimento. 

A Convenção define discriminação racial como sendo “qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência, em qualquer área da vida pública ou privada, cujo propósito ou efeito seja anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdade fundamentais consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados Partes”. A redação é muito semelhante ao conceito estabelecido pela Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (ICERD). Esse diálogo de fontes está expressamente previsto na Convenção Interamericana contra o Racismo, que em seu Preâmbulo faz referência aos propósitos e princípios consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na ICERD, na Convenção Americana sobre os Direitos Humanos e na Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos.

A definição de discriminação racial trazida pela Convenção viabiliza uma abertura para a superação de insuficiências existentes na construção legal da ideia de racismo no Brasil. A expressão “qualquer” do art. 1.1 sugere que a discriminação por motivos de raça, cor, ascendência ou origem nacional ou étnica ostenta feições dinâmicas e sofisticadas que impedem a concretização de valores democráticos.

Esse panorama se torna mais nítido com a definição de discriminação racial indireta, prevista no art. 1.2. da Convenção. Nesse dispositivo, reconhece-se que a discriminação racial pode decorrer de práticas ou critérios aparentemente neutros, porém, com capacidade de acarretarem desvantagens para grupos específicos. É o caso, por exemplo, da desigualdade racial apontada em inúmeros indicadores sociais, que expõem o acesso precário de pessoas afrodescendentes e indígenas à saúde, educação e moradia, bem como a excessiva exposição de pessoas afrodescendentes à violência policial.

O conceito de discriminação racial indireta abre um mosaico de categorias que, confrontadas com o pensamento jurídico brasileiro tradicional, promove estranhamentos. A elite política e jurídica do Século XX, influenciada pelo mito da democracia racial, não vislumbrou o fenômeno do racismo no Brasil como algo além de condutas individuais, intencionais e episódicas. A partir disso, identificou-se na esfera penal uma resposta adequada do Direito para os atos de discriminação racial. 

O primeiro movimento do legislador brasileiro sobre o tema foi na década de cinquenta do século passado, por meio da Lei n. 1.390/1951 (Lei Afonso Arinos). O texto não previa um conceito de discriminação racial, e limitava-se a estabelecer uma série de condutas que caracterizariam “atos resultantes do preconceito de raça e de cor” como contravenção penal. A Lei Afonso Arinos foi sucedida pela Lei n. 7.716/1989, conhecida como Lei Caó, que disporia sobre os “crimes resultantes do preconceito de raça e de cor”. Naquele contexto histórico, era inquestionável a evolução do tema no plano normativo, uma vez que a Constituição da República, promulgada no ano anterior, não apenas tratou do crime de racismo, como previu a sua inafiançabilidade e imprescritibilidade. 

Em que pese a questão tenha adquirido assento constitucional, na prática, não se verificou a necessária ruptura de paradigma para que o sistema de justiça apresentasse respostas satisfatórias para o problema da discriminação racial no Brasil. Ao contrário, o pensamento jurídico continuava refletindo a perspectiva que resultou na promulgação da Lei Afonso Arinos, sob o manto da democracia racial. O silêncio do Direito em relação às dinâmicas do racismo fez do sistema de justiça brasileiro um mecanismo de legitimação de hierarquias raciais. 

A discriminação racial indireta também decorre da ausência de representatividade das minorias raciais em posições de poder e protagonismo. O sistema de justiça, sobretudo o sistema penal, não foge desse cenário. Trata-se de um locus de privilégio da centralidade branca, do modo de ser e viver hegemônico. E isso autoriza a inclusão de outro conceito essencial para a mudança de paradigma que ora se propõe: racismo sistêmico (em suas interfaces institucional e estrutural).

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no caso “Simone André Diniz vs. Brasil” (OEA, 2006), identificou uma condescendência do sistema de justiça brasileiro com a discriminação racial no trabalho contra pessoas afrodescendentes. A CIDH reconheceu que o racismo institucional era um obstáculo à aplicabilidade da lei antirracismo no Brasil, e que essa prática teria como efeito a discriminação indireta, uma vez que obstrui o reconhecimento do direito de uma pessoa negra não ser discriminada, bem como de aceder à justiça para ver reparada a violação.

Recentemente, ao tratar da situação dos direitos humanos das comunidades quilombolas no Brasil, a CIDH reconheceu que “a negação da identidade histórica, cultural e de direitos dessas pessoas é resultado da discriminação racial estrutural a que sempre estiveram submetidas no país”. Assim é que, no último dia 05 de janeiro, a CIDH apresentou perante a Corte IDH o Caso Comunidades Quilombolas de Alcântara vs. Brasil, que trata de questões relacionadas à violação da propriedade coletiva dessas comunidades, omissão do Estado brasileiro na emissão de títulos de propriedade, expropriação de suas terras e ausência de recursos judiciais para tratar da situação.

No âmbito do Sistema Universal, o conceito de racismo sistêmico é bastante elucidativo e deve ser interpretado de forma simétrica às diretrizes estabelecidas pela Convenção Interamericana contra o Racismo. Em relatório publicado no ano de 2021, a ONU define racismo sistêmico, incluindo-se o racismo estrutural e institucional, como sendo “a operação de um sistema complexo e inter-relacionado de leis, políticas, práticas e atitudes nas instituições do Estado, no setor privado e nas estruturas sociais que, combinadas, resultam em discriminação, distinção, exclusão, restrição ou preferência, direta ou indireta, intencional ou não intencional, de jure ou de facto, com base na raça, cor, ascendência ou origem nacional ou étnica”. O documento faz referência aos legados da escravidão e do colonialismo, que produzem estereótipos negativos e preconceitos contra as pessoas de ascendência africana. 

O art. 1.3 da Convenção Interamericana contra o Racismo aponta outra definição que exige uma compreensão mais nítida por parte das instituições jurídicas brasileiras: discriminação múltipla ou agravada. Também chamada de interseccionalidade ou discriminação interseccional, trata-se das hipóteses em que a distinção, exclusão ou restrição está baseada em mais de um critério de diferenciação (ex.: gênero, raça, classe, orientação sexual, religião). 

A Convenção reconhece que pessoas inseridas em mais de um marcador social da diferença são alvos de uma forma específica de discriminação. A particular vulnerabilidade das mulheres afrodescendentes, por estarem expostas a estereótipos de raça e gênero, foi reconhecida pela Corte IDH no caso “Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus Familiares vs. Brasil”

A discriminação múltipla foi objeto de análise por parte do Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário n. 494.601/RS, em questão envolvendo os fatores raça e religião. Discutia-se a possibilidade de sacrifício ritual de animais em cultos e liturgias de religiões de matriz africana. O STF reconheceu a necessidade de proteção especial aos cultos de religião de matriz africana em razão da estigmatização e do preconceito estrutural a que historicamente foram submetidos na sociedade brasileira.

As ações afirmativas, como medidas de superioridade jurídica orientadas à promoção de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais para grupos minoritários, ganharam tópico específico. Destaque para o art. 9 da Convenção, que dispõe sobre o compromisso dos Estados Partes em “garantir que seus sistemas políticos e jurídicos reflitam adequadamente a diversidade de suas sociedades, a fim de atender às necessidades legítimas de todos os setores da população”.

Por fim, outra definição indispensável à compreensão do alcance da Convenção Interamericana contra o Racismo pode ser apresentada a partir da leitura do art. 4º, iii a vi: o perfilamento racial.

De acordo com a ONU, no contexto da aplicação da lei, perfilamento racial tem sido definido como “a associação sistemática de um conjunto de características físicas, comportamentais ou psicológicas com delitos específicos e seu uso como base pra tomar decisões de aplicação da lei”. Trata-se de tema central para problematizar a excessiva violência policial contra pessoas afrodescendentes, ocasionadas pelo uso de generalizações e tomada de decisões discriminatórias.

O cumprimento da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância exigirá do Estado Brasileiro, sobretudo das instituições do sistema de justiça, um movimento muito mais denso do que sua internalização no ordenamento jurídico interno com status de Emenda Constitucional. 

A aproximação do DIDH, em especial, da Convenção Interamericana contra o Racismo, com a prática jurídica brasileira requer a apropriação de conceitos que desafiam profissionais da área e instituições, causando estranhamentos e desconfianças às instâncias mais tradicionais do Direito.

Retoma-se a ideia apresentada no início do texto a respeito da imprescindibilidade de uma atuação interdisciplinar, por meio da recepção de categorias próprias de outras áreas das ciências sociais, para que o sistema de justiça forneça respostas satisfatórias para o enfrentamento do racismo e cumpra o seu papel de consolidar a democracia e assegurar a efetividade dos direitos humanos.

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