No dia em que recebi a notícia de que o Professor Antônio Augusto Cançado Trindade nos deixara – o mesmo de seu falecimento – envolvi-me em auxiliar minha filha em uma tarefa de escola que consistia na leitura de um livro chamado Mania de Explicação, de Adriana Falcão. A obra, fascinante e consagrada na literatura infantil – saberia eu depois – é uma espécie de glossário de palavras que remetem a sentimentos os mais profundos, todos explicados, ainda que de modo denso, em uma linguagem acessível às crianças.
Quando estávamos nos encaminhando para o final do livro, deparamo-nos com a seguinte definição: “Saudade é quando o momento tenta fugir da lembrança pra acontecer de novo e não consegue.” Não completei a frase. Depois disso, somente solucei e chorei. Minha filha me olhou. Não disse palavra. Ela sabia o que se passava. Seu silêncio foi como um acalanto. Uma mensagem de que ali começava um luto do qual eu não deveria nem poderia fugir.
Foi nesse mesmo dia que o Professor Fábio Morosini gentilmente me pediu para escrever o obituário do Professor. Respondi que acreditava que não conseguiria, pois me faltavam forças. Todo luto é perda, e com ela vem a transformação. Eu ainda me pergunto quem sou neste mundo sem meu querido professor. Nem sei se me reconheço aqui. Não pesa somente a falta dos seus conselhos e palavras de incentivo, mas a falta de um ideal. Como certa nota ausente de uma melodia, aquela que a tornaria perfeita. A lacuna que a nota deixou, contudo, é a causa mais profunda do que torna a melodia imperfeita: o quase tudo que repentinamente se torna o nada absoluto.
Ao recordar-me daquele dia, lembro de outro, quando o Professor me contou que havia sido convidado para ministrar o Curso Geral da Academia de Direito Internacional da Haia. Abracei-o, então, tão fortemente, fazendo minha aquela conquista excepcional. Era um gesto, um abraço, que eu não mais conseguiria repetir. Era, enfim, o momento que tentava fugir da lembrança para novamente acontecer, mas não aconteceria.
Um grande amigo se foi, mas não me sinto, de nenhuma maneira, habilitado a escrever um obituário enquanto descrição minuciosa de sua vida profissional e de seus feitos. Isso deve ser tarefa de pesquisa detida e elaborada, ainda mais tendo em conta a quantidade de material escrito pelo Professor. Buscarei, de fato, repassar alguns aspectos de sua vida profissional e certas de suas conquistas sob a perspectiva de um estudante que o tomou, desde muito cedo, como referência acadêmica e ética a ser seguida.
***
Dificilmente um estudante inicia a leitura da obra de seus mestres pelos escritos iniciais destes. O mais comum é recorrer às obras consagradas e, posteriormente, enveredar pelos caminhos originais que levaram à formação do autor. Curiosamente, comecei a ler a obra do Professor Antônio Augusto, ainda nos tempos de minha Graduação, por um de seus primeiros escritos, intitulado Considerações Acerca do Relacionamento entre o Direito Internacional e o Direito Econômico. A obra me impressionou pela maturidade que demonstrava – sendo que seu autor tinha apenas cerca de 25 anos e, naquele tempo, 1972, há pouco havia se formado em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais. Tão impressionante como o livro era o pequeno prefácio escrito pelo Professor Washington Peluso Albino de Souza. Duas frases, do parágrafo inicial, chamaram enormemente minha atenção e frequentemente me voltam à mente. Dizia o Professor Albino de Souza: “O presente trabalho coloca-nos diante de um jovem jurista consciente do objetivo que se traçou e afincado à difícil tarefa de realizá-lo”. E, mais adiante, completava: “A partida para Cambridge, em estudos de pós-graduação que lhe permitam aprofundar-se ainda mais na área eleita, confirma a segurança de um invejável saber querer.” Quem seria esse autor tão obstinado? Quem teria tamanho afinco a uma difícil tarefa? Quem seria merecedor de tão elegante elogio: o de estar seguro de um invejável saber querer? Essas frases contidas no prefácio me faziam ver que a obra do Professor Antônio Augusto não era somente um produto intelectual, mas o exercício de uma devoção visando à plenitude do espírito: uma ascese, em outras palavras.
Ter consciência de que os escritos do Professor eram uma forma de ascese torna muito mais fácil entender aquilo que já intrigou muitos: por que sua premiada tese de doutorado (Prêmio Yorke), na Universidade de Cambridge, teve as impressionantes 1728 páginas. O sentimento de estupefação somente aumenta se se sabe que o tema da tese, o esgotamento dos recursos internos, tradicionalmente era visto como uma pequena parte do capítulo da responsabilidade internacional. Certamente não se tratava de um dos grandes temas do direito internacional em 1978, quando foi defendido o trabalho.
A tese foi publicada parcialmente no formato de artigos e dois livros – em inglês e, em versão mais enxuta, em português. Desde a década de 1970, o Professor Antônio Augusto pretendia erodir ainda mais o espaço soberano dos Estados ao defender que o esgotamento dos recursos internos tinha caráter apenas procedimental – não condicionava, portanto, a própria existência da responsabilidade internacional. Cabia ao juiz internacional interpretar a regra – e principalmente atenuá-la – para abrir espaço à responsabilização do Estado em diversos domínios, especialmente no campo dos direitos humanos. Ao falar sobre esgotamento dos recursos internos, a tese falava constantemente sobre a linguagem dos direitos humanos – ainda quando não se referia explicitamente ao tema. Com isso, o Professor não apenas se juntava aos esforços em torno da implementação dos direitos humanos – por meio dos tribunais internacionais – mas abria um grande espaço para que se falasse sobre direitos humanos no Brasil em pleno momento de reabertura política. Foi a maneira que encontrou para se opor à ditadura militar. Especialmente as partes da tese publicadas em português demonstravam uma nova forma de pesquisar sobre direito internacional no Brasil – o que é demonstrado pelo rigor no uso das fontes e, especialmente, pelo recurso a casos judiciais e à prática dos Estados. Não se pode negar que essa nova forma fosse impactante por ter fortes origens no sistema jurídico anglo-saxão, algo que não era comum no direito internacional que se praticava no Brasil dos anos 1970. O mais relevante, no entanto, é que tal forma já estava paulatinamente se afirmando academicamente e na dogmática do direito internacional também em sistemas jurídicos de traço romano-germânico: princípios mais abstratos começavam a ceder espaço a normas embasadas na prática estatal e no julgamento de casos por tribunais internacionais.
Após a defesa exitosa de sua tese de doutorado, o Professor Antônio Augusto se tornou professor do Curso de Relações Internacionais da Universidade de Brasília – de onde somente se retiraria com a aposentadoria, muitos anos depois. A relação de afeto para com a Universidade era recíproca: se ele exercia com muito carinho a docência, a instituição, especialmente por meio de seus estudantes, mas também de professores e técnicos-administrativos, reconhecia as suas qualidades como um educador comprometido. Pode-se dizer o mesmo de sua atuação como professor do Instituto Rio Branco, que teve início alguns anos após o ingresso na Universidade de Brasília, e durou mais de vinte anos.
Entre 1985 e 1990, o Professor Antônio Augusto ocupou o cargo de Consultor Jurídico do Ministério das Relações Exteriores. Seus pareceres, para além do alto valor doutrinário, expressam uma significativa preocupação com a prática brasileira em matéria de direito internacional. Não é por outra razão que, nesse período, ele dá corpo àquilo que já levava a cabo em sua obra, desde a tese de doutorado: a adoção do método comparado por meio da publicação do Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público, em 6 volumes. É nessa obra que se pode começar a responder, efetivamente, a pergunta sobre uma eventual tradição brasileira do direto internacional, e não a partir da especulação calcada em um ufanismo exacerbado ou um senso crítico sem fundamento. A importância do Repertório é essencialmente demonstrar que o direito internacional que se quer construir precisa revisitar um passado articulado em várias peças fragmentadas.
O período como consultor jurídico coincide com a redemocratização, e foi essencial para fornecer as bases da percepção que seria seguida, nos anos seguintes, por vários internacionalistas e mesmo pela política externa brasileira em questões de direitos humanos. Foram alguns de seus pareceres que abriram caminho para a ratificação, por parte do país, dos principais tratados de direitos humanos. Ademais, a atuação do Professor Antônio Augusto na Assembleia Nacional Constituinte foi decisiva para a consagração do § 2º do art. 5º da Constituição, que foi originalmente elaborado como uma cláusula constitucional aberta, apta a incorporar direitos oriundos de tratados no mesmo nível hierárquico que normas de natureza constitucional.
A partir dos anos 1990, o Professor passa a se dedicar mais direta e intensamente a temas relativos ao Direito Internacional dos Direitos Humanos. É na década de 1990 que iniciam suas funções como juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, primeiramente como juiz ad hoc, e, posteriormente, como juiz eleito – o que se estenderá até a segunda metade da década de 2000. A sua influência como juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos é definitiva para moldar a jurisprudência daquele tribunal até os dias atuais – o que certamente foi reforçado por sua posição de liderança como vice-presidente e presidente. Aquilo que hoje parece trivial no labor da Corte foi alcançado em grande parte por seu esforço incansável e pessoal, tal como a consagração do jus standi das vítimas ou a desnecessidade do dano como elemento constitutivo da responsabilidade internacional. A isso, agregue-se a introdução de ideias que teriam um impacto muito além dos próprios limites da disciplina do direito internacional, como o dano ao projeto de vida ou a relevância do papel da memória na reparação por violações a direitos humanos. Tais posições eram calcadas em uma bem fundamentada agenda não somente de expansão da linguagem dos direitos humanos, mas sobretudo de incremento da posição do juiz no direito internacional. Guardadas algumas diferenças, eu percebia, já neste momento, no Professor Antônio Augusto, a continuação do ideário que moveu um dos internacionalistas mais influentes do século XX, Hersch Lauterpacht. A construção de um international bill of rights e o reconhecimento do papel relevante e criador do juiz internacional foram as principais marcas do trabalho de Lauterpacht depois de 1945. Também em termos de concepções teóricas, as semelhanças recrudescem: é somente em suas fases mais maduras, enquanto pensadores do direito internacional, que Lauterpacht e o Professor Antônio Augusto se associam mais explicitamente ao jusnaturalismo.
É importante não esquecer que o jusnaturalismo professado pelo Professor era calcado não numa ideia de dualidade de ordens jurídicas em que uma delas se afasta do mundo em busca de um conceito ideal de justiça. Para ele, a justiça é construída a partir de vários rastros que a prática internacional deixa – sejam os Estados, os tribunais ou os indivíduos. É na consagração dessa prática que é moldada a ordem jurídica almejada por uma concepção jusnaturalista. Isso somente reforça como o método comparado de recurso à prática foi importante para a construção de sua obra inicial e posterior. Por exemplo, a ideia de consciência jurídica universal somente pode ser encontrada a partir do labor de uma investigação rigorosa. É o que se pode claramente perceber de sua magnus opus dedicada a temas gerais de direito internacional, o já mencionado curso que ministrou, na Academia de Direito Internacional da Haia, em 2005: International Law for Humankind: Towards a New Jus Gentium, em dois volumes.
A partir de 2009, o Professor Antônio Augusto inicia suas funções como juiz da Corte Internacional de Justiça e aquilo que já era patente em sua atuação na Corte Interamericana de Direitos Humanos só se intensifica pelo palco universal que agora tem à disposição. O juiz (internacional) possui o papel de ver e desvelar aquilo que já se encontra, ainda que de modo esparso, no sistema jurídico internacional. Dois casos podem ser lembrados nesse sentido – que o moviam profundamente, recordo-me, também no nível pessoal. No caso das Imunidades Jurisdicionais do Estado, em que foi, sozinho, voto vencido na maioria dos pontos resolutivos da sentença, a defesa da ideia de que graves violações de direitos humanos cometidas sob o manto de atos de império constituem, em verdade, delicta imperii, era uma forma de, por meio do exercício jurisprudencial internacional, e do juiz como ator privilegiado, levar um conceito já existente no sistema jurídico – o da imunidade relativa de jurisdição do Estado – às últimas consequências. Com isso, pretendia fazer com que a categoria de atos de império, que permanece mesmo quando se adota a imunidade relativa de jurisdição, colidisse consigo própria em casos envolvendo graves violações de direitos humanos. Outro exemplo é o caso das Obrigações relativas à cessação da corrida nuclear e ao desarmamento nuclear. Em sua perspectiva, não faltavam elementos – tratados, resoluções, trabalhos preparatórios de instrumentos etc. – para demonstrar um movimento forte e vigoroso do sistema jurídico internacional contra as armas nucleares e favorável ao seu desarmamento. Ao identificar os elementos desse movimento forte, o juiz mostra a medida da consciência jurídica universal para que ela possa ser aplicada e mesmo expandida.
Sei da parcialidade de minha posição, mas não tenho notícia histórica de nenhum internacionalista brasileiro que tanto tenha se destacado mundialmente pelas posições que ocupou, pela quantidade de escritos que legou e, sobretudo, pela influência que deixou sua obra. O Professor Antônio Augusto caminhou um percurso sem precedentes. E chega mesmo a ser assustador voltar, hoje, às palavras do Professor Washington Peluso Albino de Souza. O “objetivo que se traçou” e o afinco “à difícil tarefa de realizá-lo” tornaram-se reais. E aquele “invejável saber querer” foi a mola propulsora de tantas conquistas.
***
Aqui se encontram apenas alguns traços da trajetória profissional do Professor Antônio Augusto, certamente insuficientes para fazerem justiça ao seu legado. E tal legado, ainda que imenso, não se esgota nas tantas páginas publicadas. É nos alunos que deixou e nos amigos e colegas com quem dialogou que a sua memória persiste. Ele, para quem estar com as pessoas era um constante privilégio, conseguia enxergar o direito internacional por meio delas. A afirmação do indivíduo como sujeito internacional – sobre a qual tanto falou – não era um postulado no mundo das ideias, mas algo que lhe era palpável: o que compunha a sua ascese.
Ainda assim, a sua maior obra continua, diuturnamente, sendo escrita. Quem conhece seus filhos, Adriano, Otávio e Vinícius, sabe da dádiva que o Professor Antônio Augusto concedeu ao mundo. Dádiva que está sendo constantemente escrita em pedra pelas suas trajetórias tão cheias de bondade. Neles vejo o meu querido professor e me reacendo de esperança pela vida. Afinal, eles estão nas redondilhas de Drummond, quando recorda a própria filha no brilhante A mesa: “Esta é minha explicação,/meu verso melhor ou único,/meu tudo enchendo meu nada.”
Não desejo auto penitência, mas verdadeiramente não me sinto merecedor do que meu professor me ofereceu: confiança, doçura e sobretudo amizade expressas em tantas ocasiões e de tantas maneiras. No mais, fica ainda o privilégio de ter com ele convivido e aprendido a cultivar a fé nos seres humanos e na capacidade de a justiça encontrar um lugar na Terra. Mais que direito internacional, o Professor Antônio Augusto ensinou-me, com seu sorriso largo, a querer tornar-me humano, sobretudo a não ter medo de tornar-me humano. Isso é tanto! É muito mais o que um aluno, seja ele o mais aplicado, pode merecer!
O ideal, que menciono no início deste texto, agora parece pouco a pouco me reencontrar. Quiçá seja o sinal de que um dia o luto pela perda de meu querido Professor terá completado sua penosa jornada. Daí então, talvez, a dor seja suportável. Até lá, resta o pequeno consolo de que ele vive nas lições que recordarei, que me segurará para que evite o tropeço, que abrirá os caminhos para que não me fira. E se o olvido, a queda e a ferida vierem, restará o exemplo de quem, sabendo se reconstruir, construiu um mundo mais justo (apesar do próprio mundo!). Esse é o abraço tão forte que me dará. O abraço do mestre. O abraço do amigo.