O comércio internacional pode servir de instrumento para fazer inclusão e acalmar crises humanitárias deflagradas por desastres naturais. Vários instrumentos usualmente criticados como “mecanismos puramente de mercado” podem, de fato, servir para fazer a inclusão dos que são popularmente chamados ‘refugiados ambientais’. Existem instrumentos de mercado que podem ser usados seja para gerar emprego de forma sustentável, seja para promover proteção de direitos humanos ou reduzir desigualdades sociais. Após uma breve apresentação sobre aqueles que se enquadram como ‘refugiados ambientais’, o presente blogpost apresenta políticas comerciais e iniciativas que, além de constituírem importante nexus entre Comércio Internacional e Refugiados ambientais, podem ser desenhadas e implementadas para atingir os objetivos de integração humanitária desejados.
Sempre que um desastre natural acontece em proporções alarmantes, a migração forçada produzida é verificada. Alguns países absorvem o deslocamento interno provocado; outros geram ‘refugiados ambientais’. A expressão “refugiados ambientais” ou “refugiados climáticos” não é considerada tecnicamente correta. Tecnicamente, o correto seria dizer “migrantes forçados ambientais” ou “migrantes forçados por razões climáticas”. Ainda assim, a adoção do termo popular será preferida neste trabalho, após breve explicação do porquê de sua incorreção técnica.
De acordo com tratados internacionais e legislação nacional que os incorpora [1] e, por vezes, os expande, refugiado é todo aquele que é perseguido ou tem fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, opinião política, nacionalidade, por pertencimento a um grupo social (perseguição por gênero, por exemplo) e por ser proveniente de regiões de conflito generalizado de direitos humanos (regiões de guerra, por exemplo) e não pode se valer da proteção do Estado onde se encontra. Nesse sentido, o elemento “temor de perseguição” ou “fundado temor de perseguição” é componente necessário do migrante forçado que é tecnicamente denominado ‘refugiado’. Daí o migrante forçado ambiental ou climático não ser assim tipificado. Nada impede, contudo, que venha a ser tipificado como tal, por força legislativa nacional ou internacional. Afinal, no mundo jurídico, a lei também cria fatos e sujeitos. Mas enquanto os refugiados ambientais não são assim tipificados, convém sempre trazer esses tipos de esclarecimentos.
O Afeganistão está vivendo uma crise humanitária sem precedentes [2]. Sempre foi uma região de conflitos. Após a tomada de poder pelo grupo Talibã, em 2021, uma violação generalizada de direitos humanos tem provocado uma migração forçada maciça para aqueles que têm conseguido sair do país. Mas o Afeganistão vive também um outro tipo de crise: a crise climática e seus efeitos colaterais econômicos, que também têm gerado milhares de migrantes forçados ambientais. Após várias décadas de períodos prolongados de seca e aumentos significativos na temperatura da região (cerca de 1.8º C em 3 décadas), desde 2019, a escassez de chuvas e seca extrema prolongada tem transformado a paisagem, a agricultura e a economia da região, forçando milhares a deixarem suas terras e casas numa consequência direta de crise econômica provocada por crise climática. Infelizmente, o Afeganistão não se encontra sozinho nesse cenário de desastres ambientais e migrações forçadas.
Cerca de 100 milhões de seres humanos, atualmente, estão em situação de migrações forçadas em razão de desastres naturais, mudanças climáticas e conflitos generalizados; há estimativas de que cerca de 300 milhões de pessoas encontram-se em situação de necessidade de assistência humanitária. O último terremoto, em 2023, havido na Turquia e na Síria, provocou milhões de refugiados ambientais em uma das regiões que já provoca milhões de refugiados típicos. A seca dos últimos 60 anos na região conhecida como “Chifre da África” e a fome dela decorrente têm também provocado milhões de ‘refugiados climáticos’ todos os anos, que fogem para sobreviver.
De acordo com o World Ecnomic Forum (2023), os impactos da COVID-19 somados aos últimos desastres naturais havidos e as demais crises humanitárias deflagradas têm provocado uma crise sem precedentes no comércio internacional e suas cadeias de produção, produzindo uma consequente crise global de insegurança alimentar. Assim, por uma razão de interesse próprio, não apenas assistencial, o comércio internacional é convocado a intervir.
Em trabalho submetido recentemente ao Journal of Trade and Development [3], proponho e apresento o uso de instrumentos de mercado para lidar com essas e outras situações emergentes. O comércio internacional pode se tornar estratégico para remediar a fome e crises de saúde pública deflagradas por desastres ambientais. Alguns importantes instrumentos podem ser assim utilizados, a saber: i) cláusulas inseridas em Preferential Trade Agreements (PTAs), explicitando a necessidade de políticas de inclusão em momentos de catástrofes naturais; ii) o Generalized System of Preferences (GSP) da OMC; iii) regras aplicáveis ao comércio de serviços, que seriam excepcionadas das previsões do GATS, podendo auxiliar na realocação de trabalhadores qualificados e de empresas para lugares onde suas presenças são necessárias de maneira urgente.
A proliferação de instrumentos de comércio internacional para lidar com esses tipos de crises humanitárias assinala uma nova realidade: muitos acordos de comércio internacional (PTAs) têm, hoje, uma moldura de “acordos de governança global”. Quando a emergência é deflagrada, ao invés de se produzir um tratado comercial novo, pode-se simplesmente adicionar cláusulas ou ‘adendos’ ou mesmo ‘novas interpretações’ aos já existentes acordos de comércio. Exemplos desses tipos de arranjos emergenciais foram verificados no Acordo de Livre Comércio entre Canadá-Israel, onde se lê a necessidade de inclusão e melhora do ambiente de trabalho para mulheres, de maneira a se criar reais oportunidades de trabalho e segurança nos seus ambientes. Mesmo que pareça uma linguagem soft law, negociações posteriores podem vir a trazer medidas mais eficazes no momento de implementação dos tratados e arranjos posteriores podem servir de know-how adquirido na hora de se desenhar acordos de natureza hard law.
No caso de cláusulas relacionadas ao GSP, dada a sua natureza de não exigência de ‘reciprocidade’, incentivos comerciais podem acomodar uma cooperação mais intensa em casos de crises humanitárias deflagradas por desastres naturais e consequências climáticas. Uma vez que o sistema GSP não necessita de negociações porque são executados unilateralmente, o país que concede o benefício tem uma margem considerável de policy space para agir, tornando a ajuda a ser implementada uma real promotora de inclusão e direitos humanos, se assim for verdadeiramente desenhada. Dessa forma, remédios mais baratos e acessíveis aos mais pobres e aos que se encontram em situação de extrema vulnerabilidade em decorrência de migração forçada ambiental podem chegar mais facilmente às regiões de catástrofes naturais e aos países que se tornam abrigos (hosts).
Além disso, algumas iniciativas também se destacam como políticas a serem adotadas nesse caso. Em outubro de 2022, a Organização Mundial do Comércio (OMC) lançou um programa que compreende um projeto ‘trade-peace-nexus’ – Trade for Peace. Ainda que almejado inicialmente para ser aplicado a regiões de guerra e outros conflitos armados, o know-how adquirido pode se expandir também para regiões de catástrofes naturais e efeitos colaterais graves decorrentes de mudanças climáticas. O Programa da OMC Trade for Peace, dentro do qual se desenha o trade-peace-nexus, consiste em assistência a ser ofertada a países em situação de vulnerabilidade deflagrada por razões humanitárias, tendo quatro pilares centrais e de implementação: i) engajamento político e parcerias; ii) diálogos públicos e envolvimento comunitário; iii) pesquisa; e iv) treinamento e capacitação.
Dessa forma, o comércio internacional pode servir de instrumento para fazer inclusão e acalmar crises humanitárias deflagradas por desastres naturais. Esses instrumentos e pilares também podem ser seguidos para transformar o comércio internacional, quer seja no âmbito da OMC e seus acordos, quer seja em âmbito regional (PTAs, GSP ou outros arranjos), em verdadeiros instrumentos de inclusão e pacificação em momentos de migração forçada ambiental. Conforme já se pontuou: não se trata de mera medida assistencial. Trata-se da reposta dada pelo comércio internacional que é afetado diretamente, em suas cadeias de produção, em tempos de desastres naturais verificados.
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[1] No Brasil, aplicam-se a Convenção das Nações Unidas sobre Refugiados, de 1951, seu Protocolo de 1967, a Declaração de Cartagena, de 1984, e a Lei 9474/1997, dentre outros instrumentos nacionais e internacionais que complementam esses textos.
[2] A autora morou e trabalhou num acampamento de refugiados do Afeganistão, no interior de São Paulo-Brasil, por 8 meses, de 2022-23, onde teve a oportunidade de conversar pessoalmente com muitas das vítimas desses deslocamentos forçados.
[3] Andréia C Vieira, Humanitarian Crisis and Refugees: what has trade got to do with it?, JTD, India, 2023 (under submission).
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Professora, advogada, consultora e pesquisadora na área de Direito do Comércio Internacional e Desenvolvimento Sustentável, é Doutora em Direito Internacional (USP, tendo finalizado seus estudos de Doutorado na Universidade de Cambridge), Mestre em Direito do Comércio Internacional (University of Nottingham), é atualmente Consultora Internacional da TQSR Advogados Associados para a temática Comércio Internacional e ESG; residiu e trabalhou em 2022-23 em um acampamento de refugiados do Afeganistão, no Brasil, onde desenvolveu projetos de inclusão; email: andreiacostavieira@hotmail.com