José Augusto Lindgren Alves: diplomata e intelectual público

O Brasil perdeu, no dia 26/05, sua referência maior no campo dos direitos humanos da perspectiva da política internacional. José Augusto Lindgren Alves foi diplomata de carreira, galgou posições até chegar ao posto de embaixador e se projetou como intelectual reconhecido no Brasil e no exterior. Depois de aposentado e liberado das amarras impostas por uma carreira hierárquica, alçou voos ainda mais altos e deu contribuição inestimável à reflexão sobre temas candentes enfrentados pelas sociedades contemporâneas.

Lindgren reuniu, ao longo da vida, a experiência prática da diplomacia às reflexões de um intelectual irrequieto, sofisticado e com trânsito por diversas disciplinas, das relações internacionais ao direito, da filosofia à história e à ciência política. É praticamente impossível encontrar palavras que façam justiça à grandeza e importância de José Augusto Lindgren Alves, meu primeiro chefe no Itamaraty, amigo de tantas jornadas. Além de diplomata destacado e intelectual respeitado, foi ser humano generoso e solidário, que nunca esmoreceu diante dos desafios políticos e sociais de seu tempo.

Conheci Lindgren no início de 1995, quando recém-egresso do Instituto Rio Branco, a academia diplomática brasileira, pedi para ser recebido pelo então diretor do Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais (DHS), em busca de minha primeira lotação. O departamento já existia há alguns meses na prática, porém ainda não na estrutura formal do Ministério das Relações Exteriores, o que ocorreria apenas em agosto de 1995. Lindgren havia sido o pai intelectual do departamento e era seu primeiro diretor. Ele me recebeu de braços abertos e me convidou a integrar sua equipe, em um momento de novas iniciativas visando à plena inserção do Brasil nos sistemas de direitos humanos da OEA e da ONU.

A história de Lindgren com os direitos humanos teve início dez anos antes daquele encontro, por volta de 1985, quando foi transferido para a Missão do Brasil junto às Nações Unidas em Nova York. Naquele período de transição para a democracia, empolgado com as mudanças em curso, Lindgren conseguiu ser designado para trabalhar na Terceira Comissão na ONU, que se encarrega de direitos humanos e temas sociais. Essa experiência explica sua decisão de escrever uma tese pioneira de Curso de Altos Estudos (requisito para promoção ao posto de ministro de segunda classe da carreira diplomática) sobre os direitos humanos nas Nações Unidas. Nunca mais abandonou o tema que marcaria profundamente sua trajetória diplomática e intelectual.

Depois de chefiar a Divisão de Nações Unidas, entre 1990 e 1995, convenceu uma chefia relutante a criar o Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais do Itamaraty. Lindgren já se havia notabilizado por ser uma estrela em ascensão no tema. Ao lado do embaixador Gilberto Vergne Saboia, ajudou a salvar do naufrágio a Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena, em 1993. Negociador habilidoso, criativo e eficaz, fez dobradinha com Saboia para encontrar fórmulas de equilíbrio que fossem aceitáveis para todos os países. A ideia de interdependência de todos os direitos humanos – civis e políticos, de um lado, e econômicos, sociais e culturais, de outro – e a noção de legitimidade da preocupação internacional com a situação dos direitos humanos em qualquer país, princípios consagrados na Declaração e Programa de Ação de Viena (o documento final da Conferência), têm as digitais inconfundíveis de Lindgren.

Internamente, o Brasil dava passos adicionais para se inserir nos sistemas de direitos humanos. Um dos compromissos decorrentes da Conferência de Viena era lançar um Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH). Lindgren também teve papel nesse esforço, que consistiu em fazer a conexão entre as obrigações internacionais e a realidade interna, de modo a aproximar o país dos padrões adotados nos foros multilaterais. E não por uma imposição artificial de fora para dentro, mas como decisão consciente e fidedigna de uma sociedade que queria avançar e de um Estado que, impulsionado pelas expectativas criadas com a Constituição de 1988, buscava utilizar os mecanismos multilaterais como incentivo e alavanca para as mudanças internas.

Lindgren colaborou ativamente para a formulação do I PNDH, lançado em maio de 1996. Pouco antes do lançamento, a Presidência e o Gabinete do Chanceler encomendaram a ele uma minuta de discurso do Presidente da República. Lembro-me bem do dia em que me chamou para pedir colaboração na redação do discurso. Deu orientações específicas sobre principais pontos a incluir, desenhando o esqueleto, mas sem deixar de me dar liberdade para acrescentar elementos substantivos e retóricos. Apresentei uma proposta que foi por ele aprimorada, tendo sido usada na íntegra na cerimônia de lançamento do PNDH. Comemoramos muito o fato de termos “emplacado” o discurso, ajudando a moldar uma política pública essencial para gerar melhorias para a população, em particular os mais vulneráveis.

Não demorou muito, porém, para que o brilho de Lindgren ofuscasse alguns personagens palacianos. No Itamaraty, muita gente resistia ao ritmo de abertura e transparência que Lindgren imprimia ao departamento. Ainda apegados a uma mentalidade do passado, havia quem discordasse do diálogo sistemático com a sociedade civil, que era uma necessidade aos olhos de Lindgren. De fato, ele coordenou as delegações brasileiras às principais conferências da ONU em temas sociais na década de 1990 com base no pressuposto do diálogo respeitoso com as forças vivas da sociedade. Boa parte dessa sua experiência se encontra refletida no livro “Relações Internacionais e Temas Sociais: A Década das Conferências”. A sua atuação lhe valeu a admiração de parlamentares, jornalistas, membros do Ministério Público e do Judiciário, e de representantes de organizações não-governamentais e da academia.

Foi nesse contexto que Lindgren acabou sendo exonerado do Departamento e nomeado Cônsul-Geral do Brasil em São Francisco. Naquele momento de grande decepção e incredulidade da equipe que o acompanhava, Lindgren garantiu que os direitos humanos estavam nas suas veias e que seguiria dando contribuição mesmo sem ocupar cargos oficiais na área. De fato, foi o que aconteceu. Em São Francisco, travou contato com vários intelectuais. Contou-me, certa vez, que havia enviado um artigo em inglês para o filósofo pragmático Richard Rorty, então baseado em uma universidade local, sem esperança de obter resposta. Para sua surpresa, Rorty escreveu uma resposta simpática, elogiando o texto e comentando suas principais ideias. Terminava a mensagem manifestando o desejo de conhecê-lo pessoalmente.

O filósofo percebeu que se tratava não de um burocrata comum, mas de um intelectual sofisticado com compromisso e engajamento na promoção dos direitos humanos e liberdades fundamentais. Não demorou para que Lindgren voltasse ao circuito dos direitos humanos como perito independente. Com a experiência de membro da antiga Subcomissão de Prevenção da Discriminação e Proteção das Minoria da ONU (1994 a 1997), foi eleito e reeleito para vários mandatos, a partir de 2002, como perito do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD), o órgão formado por especialistas independentes encarregado de monitorar a implementação, pelos Estados-parte, de suas obrigações sob a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1968. No CERD, deixou um legado duradouro e pautou os principais debates nesse campo. Mais recentemente, Lindgren foi Secretário-Executivo do Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do Mercosul (IPPDH) e integrou o Comitê assessor do Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Deixa obra diversificada na forma de inúmeros artigos e livros (desde o seu primeiro, intitulado “Os Direitos Humanos como Tema Global” até o último “É Preciso Salvar os Direitos Humanos!”, foram sete ao todo), e deu palestras, entrevistas e conferências sobre política externa, direitos humanos, pós-modernidade e Bálcãs. Serviu em postos situados em distintos continentes ao longo da carreira. Vários de seus escritos se alimentaram não apenas de sua reflexão teórica, mas também de experiências práticas e vivência em diversas partes do mundo. Além de Cônsul em São Francisco e Barcelona, foi embaixador na Bulgária, na Hungria e na Bósnia-Herzegovina. Essa experiência nos Bálcãs ajudou-o a refletir sobre o tema das identidades e nacionalismos, ampliando seus horizontes sobre as motivações históricas e sociais para a discriminação e a xenofobia. A alta complexidade e a sensibilidade do tema não o impediram de escrever, em 2013, um livro claro e objetivo que se tornou leitura obrigatória para entender aquela região: “Os Novos Bálcãs”.

Lindgren merece todo o reconhecimento do mundo pelos serviços prestados ao Brasil, como servidor de uma carreira de Estado que nunca esqueceu que devia representar não apenas um governo, mas também a sociedade em seu conjunto. A sua importância e influência no campo dos direitos humanos no Brasil e no exterior é incomensurável. Além de grande profissional, foi também homem de humor refinado e inteligência aguçada. Gostava muito de MPB, conhecia todas as letras dos principais sucessos. Tocava violão e animava a plateia com sua simpatia contagiante. Foi modelo de diplomata e homem público. Nunca transigiu com injustiças, teve coragem de discordar de linhas oficiais em determinados momentos, pagando preço por isso. Entre o conforto do silêncio resignado e o risco do engajamento consciente, nunca hesitou em optar pelo segundo, como é próprio dos grandes espíritos críticos.

Ele andava pessimista há algum tempo com os rumos da humanidade em geral. E isso se refletiu nos seus últimos escritos, mas mantinha a esperança de que valores humanistas voltassem a figurar como uma régua para medir o grau de civilização das sociedades. Embora não tivesse ilusões em relação ao esforço hercúleo necessário para salvar os direitos humanos do ocaso, sabia muito bem que a história não segue um rumo pré-determinado. A sua experiência havia demonstrado que avanços nos padrões de direitos humanos não se traduzem em melhorias automáticas no terreno, mas requerem longa e laboriosa construção junto à sociedade e às vítimas de violações, até que se consolidem. Sabia que retrocessos faziam parte desse processo dialético, o que não invalidava os direitos humanos como uma bússola a nortear a caminhada.

Em seu último livro, emitiu alerta importante quanto à necessidade de recuperar a universalidade dos direitos humanos. A sua crítica era construtiva, embora nem todos tenham entendido assim nesta nossa época em que questões complexas tendem a ser reduzidas a “lacrações” de Twitter e em que o reducionismo maniqueísta viceja no terreno das polarizações extremadas. Lindgren não sucumbiu, contudo, à falsa equivalência, ou seja, a sua crítica a um certo exagero das políticas identitárias não o fez perder de vista que o principal desafio era a desconstrução da própria gramática dos direitos humanos por parte de forças políticas e sociais retrógradas, obscurantistas, populistas e xenófobas. Sempre deixou isso muito claro, especialmente em suas últimas entrevistas e “lives” durante a pandemia e em artigos no Boletim Lua Nova do CEDEC.

Espero que as novas gerações conheçam a contribuição de Lindgren para o Brasil e se inspirem no seu exemplo. O seu legado é inestimável. A sua perda, irreparável. Deixará muitas saudades em todos que com ele conviveram. Saudades do sorriso largo, do estilo direto, do compromisso genuíno com o Brasil, da amizade verdadeira. Tomara que sua memória nos anime a enfrentar desafios que ele enfrentou com destemor, e que sua vida e obra nos interpelem a evitar o colapso moral e o retrocesso civilizacional de sociedades que se afastam da bússola dos direitos humanos. Como diria Lindgren, no que foi a um só tempo título do último livro e misto de desabafo e chamado à ação: é preciso salvar os direitos humanos!


Este texto foi escrito a título pessoal e não reflete necessariamente posições oficiais do Ministério das Relações Exteriores.


  • Diplomata de carreira, atualmente exerce a função de Cônsul-Geral do Brasil em Chicago, Senior Fellow do CEBRI.

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