H.F. e Outros v. França: novo debate acerca da jurisdição extraterritorial na Corte Europeia de Direitos Humanos

Em 14 de setembro de 2022, a Corte Europeia de Direitos Humanos (CtEDH ou Corte) publicou nova decisão sobre jurisdição extraterritorial, relativa à crianças francesas vivendo em território sírio (H.F. and Others v. France). O julgamento é mais um de uma série de casos julgados quanto à jurisdição extraterritorial, sendo interessante por trazer uma perspectiva em relação à jurisdição territorial diferente de outros órgãos de monitoramento de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), como o Comitê dos Direitos das Crianças (CRC ou Comitê). Isso porque o mesmo caso foi submetido e julgado pelo CRC, havendo uma divergência abrupta de posicionamento entre os dois órgãos sobre o alcance da jurisdição do Estado. 

O caso concerne duas mulheres e seus filhos menores de idade que fugiram da França para se juntar ao Estado Islâmico na Síria. Posteriormente, os indivíduos resolveram deixar o Estado Islâmico e acabaram se refugiando em campos no nordeste do país. Os avós das crianças interpuseram ações no CRC e na Corte para que todos fossem repatriados ao Estado francês. 

Na sua decisão, a Corte inicia esclarecendo que a jurisdição se trata de um critério limiar (threshold criterion), necessário para determinar uma eventual responsabilidade estatal por violações de direitos dispostos na Convenção Europeia dos Direitos dos Homens (CEDH ou Convenção). Em seguida, assinala a natureza territorial da jurisdição, admitindo a possibilidade de um Estado exercer jurisdição extraterritorial sob a concepção da Convenção, ao produzir efeitos de violação de Direitos Humanos em território estrangeiro. Assim, reafirma o critério de controle efetivo sobre pessoas e/ou sobre território, estabelecido no caso M.N. and Others v. Belgium, para esclarecer as possibilidades de aplicação da extraterritorialidade da Convenção. A menção a esse caso é essencial para compreender a alegação e requerimento dos aplicantes. Isso porque foi no M.N.and Others v. Belgium que a Corte adotou uma ideia de que os direitos previstos na CEDH poderiam ser “divididos e adaptados” (“divided and tailored“) (ver para. 186). À vista disso, os aplicantes do caso H.F. and Others v. France requeriam o reconhecimento da jurisdição extraterritorial a partir do fato de que os indivíduos seriam nacionais franceses e que a França teria se recusado a repatriá-los, não exercendo seus deveres consulares sobre eles.

A Corte analisa o requerimento a respeito da repatriação dos nacionais franceses, dessa forma, considerando três óticas para o estabelecimento da jurisdição extraterritorial: um possível controle efetivo sendo exercido pela França no território onde os indivíduos estão; o reconhecimento de jurisdição a partir da abertura de procedimentos domésticos; e a possibilidade do reconhecimento de jurisdição a partir de um vínculo entre os indivíduos e o Estado, mais precisamente a nacionalidade. Sobre o primeiro, a Corte entendeu que a França não estaria exercendo controle efetivo sobre o território em que os indivíduos estariam vivendo, uma vez que suas forças militares seriam mínimas naquela região e, especialmente, nos campos de refugiados em questão. Não identificou, portanto, o exercício de jurisdição extraterritorial francesa. Na segunda consideração, a CtEDH também não reconheceu a jurisdição extraterritorial. Isso porquê os aplicantes alegavam que houve a abertura de procedimentos domésticos criminais eis que as mulheres estavam sob acusação de terrorismo; porém, essa acusação não estaria relacionada com as violações colocadas perante à Corte. Por fim, a Corte também não reconheceu a jurisdição francesa em razão do vínculo de nacionalidade existente entre os indivíduos e o Estado francês. Essa terceira consideração se torna mais interessante ao se perceber que foi essencialmente nesse ponto que o CRC encontrou um nexo suficiente para reconhecer a existência da jurisdição extraterritorial.Essa divergência abrupta tem sido observada há algum tempo em relação à Corte e aos órgãos de proteção de Direitos Humanos da ONU, como no caso do CRC e do Comitê de Direitos Humanos (CDH). Tal discrepância foi percebida, inclusive, em relação à CtEDH e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CtIDH), uma vez que, em sua Opinião Consultiva 23/2017, a CtIDH optou por um posicionamento que a CtEDH procura tenta evitar – a adoção do critério de causalidade para aplicação da jurisdição extraterritorial. É necessário, pois, se questionar em até que ponto essa falta de simetria entre os sistemas de Direitos Humanos pode ser benéfica para a proteção desses. A existência de múltiplas interpretações contribui para uma proteção mais ampla e diversificada; por outro lado, o excesso de divergência pode causar uma fragmentação do Direito Internacional quanto à matéria.

O posicionamento do Comitê dos Direitos das Crianças

Em 2021, o Comitê dos Direitos das Crianças, órgão de supervisão da ONU, admitiu as Comunicações 79/2019 e 109/2019, acerca das crianças francesas refugiadas no nordeste da Síria. De acordo com os aplicantes dessas comunicações, estariam sendo violados o direito à vida e ao desenvolvimento, a não discriminação, ao melhor padrão de saúde, entre outros, todos da Convenção dos Direitos das Crianças. As comunicações ressaltavam que as crianças estariam vivendo sob condições extremamente precárias e de miserabilidade, e que o Estado francês estaria ciente dessas condições. As forças curdas não se opuseram à repatriação das crianças e várias outras haviam sido já repatriadas pela França, não fazendo sentido, portanto, a negativa do Estado.

À vista disso, o Comitê reconheceu o exercício da jurisdição extraterritorial a partir de três elementos: o conhecimento do Estado acerca das condições vividas pelas crianças; a nacionalidade delas; e a capacidade da França de repatriá-las. Primeiramente, a decisão assinalou, a partir do que foi apresentado pelos autores, que as condições vividas por elas estariam resultando em um risco de dano irreparável. Foi utilizada, assim, como uma das questões centrais, juntamente com a nacionalidade e a capacidade, na determinação do exercício da jurisdição. Apesar desse posicionamento, alguns autores, como Raible, entendem que a questão foi utilizada apenas como um pano de fundo da situação. As condições de nacionalidade ou de capacidade, se colocadas isoladamente, não seriam o suficiente para se reconhecer um vínculo jurisdicional de forma robusta e sóbria. A concomitância dos três elementos foi essencial para a decisão do CRC.

A segunda consideração utilizada pelo Comitê foi a nacionalidade das crianças. A nacionalidade, por si só, não é comumente utilizada como critério de aplicação de jurisdição extraterritorial. Milanovic reserva quatro questões que demonstram o problema de se justificar na nacionalidade para tanto: primeiro, a nacionalidade é um vínculo determinado no momento do nascimento, sendo superficial para se fundamentar direitos para além dos políticos; em seguida, ter a ideia de que o Estado é um ator único para se proteger direitos em razão da nacionalidade é uma premissa falsa; terceiro, a nacionalidade estaria sendo utilizada em um caso que necessita de uma ação coletiva para sua resolução; e, por fim, a nacionalidade possui inúmeras formas de ser perdida, abrindo-se uma lacuna para a proteção dos Direitos Humanos. Apesar de não ser um critério estável para o estabelecimento da jurisdição extraterritorial, a nacionalidade foi um elemento fundamental para se determinar a repatriação das crianças. Assim, no caso, considera-se que a nacionalidade foi um elemento benéfico ao ser utilizado como critério, mas pontua-se seus riscos, conforme bem apontou Milanovic supra. 

Finalmente, o CRC baseia-se na capacidade do Estado francês de repatriar as crianças como maneira de se determinar a existência da jurisdição extraterritorial. Trata-se de um critério funcional de jurisdição, o qual é comumente utilizado relacionado à ideia de devida diligência (due dilligence). Contudo, no caso, a capacidade foi utilizada por si só, significando uma capacidade econômica e política do Estado francês. Por óbvio, utilizado dessa forma, é um critério temerário ao se considerar países menos desenvolvidos que a França, gerando mais uma lacuna na proteção de direitos. O critério funcional, quando bem aplicado, permite o afastamento da arbitrariedade, vez que determina que o Estado tem o dever de influenciar e evitar diretamente violações de direitos, a partir da previsibilidade e da capacidade de intervenção.

Conclusões e desdobramentos em matéria de jurisdição extraterritorial

A temática da extraterritorialidade tem sido alvo de grandes divergências nos órgãos de monitoramento de Direitos Humanos há algum tempo. Percebe-se que a discrepância reside majoritariamente no interior da jurisprudência da CtEDH, tornando-a, por vezes, até mesmo inconsistente. Conclui-se que a Corte Europeia tem se distanciado cada vez mais de um posicionamento mais amplo e sóbrio da jurisdição extraterritorial, no sentido de que esse posicionamento pode gerar lacunas de proteção dos Direitos Humanos sob a supervisão da CtEDH. Por outro lado, órgãos de monitoramento e a CtIDH têm conseguido avançar e dialogar de modo mais harmonioso quanto à matéria, aproximando-se de critérios mais modernos e desenvolvidos, uma vez que esses são trabalhados de modo a se adaptar melhor a mais situações e estabelecer uma maior proteção devida pelo Estado. Isso ocorre com a devida diligência, ao se determinar que um Estado tem a obrigação positiva de intervir e evitar que direitos sejam violados mesmo em Estados estrangeiros, ampliando a proteção dos Direitos Humanos. É plausível se analisar até que ponto essa discrepância não afeta diretamente a aplicação da norma de Direitos Humanos, como acentua Pijnenburg. Questiona-se, inclusive, se é possível falar em uma fragmentação do Direito Internacional em matéria de jurisdição extraterritorial, resultando em um forum shopping por parte da comunidade internacional, o qual diz respeito à ideia de se escolher o foro mais vantajoso para se demandar uma questão. A litigância estratégica de Direitos Humanos no que diz respeito à temática deve estar atenta a esses diferenciações e posicionamentos distintos, principalmente para que não se gere um vácuo na proteção dos Direitos Humanos.

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