Estados chegam ao Acordo sobre BBNJ

Em 4 de março de 2023, chegou-se enfim a um acordo sobre novo tratado internacional dedicado à utilização sustentável e conservação da biodiversidade marinha para além da jurisdição nacional (BBNJ), ao abrigo da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), após anos de negociações convocadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas (Resolução 72/249), tendo em conta as recomendações do Comitê Preparatório estabelecido pela Resolução 69/292. O Acordo sobre BBNJ torna-se assim o terceiro instrumento convencional de implementação da CNUDM, junto com os acordos de 1994 sobre a Parte XI e 1995 sobre estoques de peixes transzonais e altamente migratórios.

Existem lacunas no direito internacional para a proteção do meio marinho, em especial quando não há um Estado incumbido do encargo, como acontece nos espaços marítimos territoriais e de jurisdição nacional. Quando se adotou a CNUDM, em 1982, muitos aspectos da proteção ambiental não foram regulamentados de modo especifico, seja por falta de acordo, seja por desconsideração momentânea. Não havia, por exemplo, preocupações acerca dos recursos genéticos marinhos, o que se impôs posteriormente, quando da aplicação dos direitos de propriedade intelectual previstos no âmbito da Organização Mundial do Comércio.

Nos termos do texto preliminar disponibilizado, em consonância com a CNUDM, são áreas marinhas fora da jurisdição nacional o alto mar e a Área. Esta corresponde aos fundos marinhos localizados fora da plataforma continental do Estado costeiro, enquanto aquele é a coluna d’água para além das zonas econômicas exclusivas. Enquanto a Área é patrimônio comum da humanidade, sob gestão e conservação da Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (AIFM), “o alto mar está aberto a todos os Estados” (CNUDM, art. 87.1), cabendo em regra ao Estado da bandeira exercer a jurisdição sobre suas embarcações.

Apesar de extremamente biodiverso, apenas 1,2% do alto mar possui regime de proteção específico. O Acordo sobre BBNJ é, portanto, um passo à frente para a governança global do oceano e a proteção do meio marinho como um todo, incluindo aí os objetivos e metas relacionados ao oceano da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e o Quadro de Biodiversidade Global de Kunming-Montreal.

O alto mar compreende a maior parte da superfície do oceano, serve como uma importante fonte de recursos e produz um terço do oxigênio do mundo. Como o aumento da temperatura do mar, em razão da mudança climática, a acidificação, a poluição e a sobrepesca são difíceis desafios de proteção ambiental, obrigando os Estados a criarem novas estratégia jurídicas, como é o caso do Acordo sobre BBNJ, visto como a chance única na vida de proteger a biodiversidade marinha em espaços internacionalizados. Com o Acordo sobre BBNJ, torna-se possível o cumprimento do objetivo estabelecido quando da Conferência das Partes 15 da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) de proteger 30% da biodiversidade global até 2030.

O Acordo sobre BBNJ é dividido em quatro eixos: (i) recursos genéticos marinhos, incluindo repartição de benefícios; (ii) medidas tais como Area-Based Management Tools (ABMT), incluindo áreas marinhas protegidas; (iii) avaliações de impacto ambiental; (iv) Capacity Building e transferência de tecnologia marinha.

Chama a atenção o fato de que o Acordo sobre BBNJ prevê sua aplicação na Área, em conformidade com o princípio do patrimônio comum da humanidade, sem chamar a AIFM para fazer a gestão do patrimônio genético, restringindo-a aos recursos minerais. Logo, é possível haver patrimônio comum da humanidade sem estar sob a AIFM, obrigando os Estados da bandeira a partilhar os benefícios das atividades relacionadas aos recursos genéticos marinhos, o que se diferencia substancialmente do regime da pesca.

Ao deixar a pesca de fora do escopo do Acordo sobre BBNJ, tendo em vista a proximidade desta atividade com a bioprospecção, vislumbra-se a complexidade da identificação dos fatos, comparável à discussão levada à Corte Internacional de Justiça acerca da diferenciação entre caça comercial e caça científica à baleia. Aplica-se o princípio da liberdade típico do alto mar.

Acerta o Acordo sobre BBNJ ao equiparar a informação genética digital dos recursos genéticos marinhos, impedindo que a transferência de dados inviabilize a partilha de benefícios da utilização sustentável da biodiversidade marinha para além da jurisdição nacional, especialmente a transferência de tecnologia. A biopirataria marinha digital é um desafio contemporâneo.

            Avanços recentes em engenharia genética e microbiologia aumentaram o interesse por recursos genéticos marinhos. A falta de normatização específica na CNUDM ou no Acordo de 1995 sobre peixes transzonais e altamente migratórios trouxe muitas dúvidas e insegurança acerca dos direitos relativos à utilização dos recursos genéticos encontrados no alto mar e na Área.

            São recursos genéticos marinhos qualquer material de origem vegetal, animal, microbiana ou outra marinha contendo unidades funcionais de hereditariedade de valor real ou potencial”. Esta definição combina os conceitos de “material genético” e “recursos genéticos” encontrados na CDB, que, por vez, reafirma a soberania dos Estados costeiros sobre o seu patrimônio genético marinho, o que é complementado pelos instrumentos de direito do mar que preveem direitos soberanos desses Estados sobre a biodiversidade em zona econômica exclusiva e plataforma continental.

            Aplicando-se os princípios da liberdade e do patrimônio comum da humanidade, todos os Estados têm o direito de utilizar os recursos genéticos do alto mar e da Área, desde que cumpram a obrigação de partilhar de modo “justo e equitativo” os benefícios advindos das atividades. Está-se diante de um regime jurídico intermediário, que se aproxima do que se tem na Antártica, nos termos do artigo II do Tratado da Antártida combinado com artigo 6 do Protocolo de Madri. Sustenta-se, por isso, que se deve tratar tal regime por “patrimônio comum” ao invés de “patrimônio comum da humanidade”.

Os impasses sobre a partilha de benefícios talvez tenham sido o principal motivo de discordância entre países desenvolvidos e não-desenvolvidos durante as negociações, que diziam respeito aos benefícios monetários e modalidades de pagamento. Ao fim, são possíveis benefícios monetários e não-monetários, criando-se um fundo fiduciário voluntário e um fundo especial. Ainda não está totalmente claro como essas contribuições se darão, o que deve ser objeto de decisão posterior da Conferência das Partes.

As ABMT foram definidas como ferramentas, incluindo as áreas marinhas protegidas, para uma área geograficamente definida através da qual um ou vários setores ou atividades são geridos para alcançar objetivos de conservação e uso sustentável. Esta parte se concentra em delinear os procedimentos para estabelecer, implementar, monitorar e revisar tais ferramentas. Seu objetivo parece ser a conservação e uso sustentável das áreas que requerem proteção, inclusive por meio do estabelecimento de um sistema abrangente de áreas marinhas protegidas. Neste aspecto, a maior contribuição é efetivamente a criação de áreas marinhas protegidas em alto mar.

            Como muitos acordos ambientais multilaterais, o Acordo sobre BBNJ define as avaliações de impacto ambiental como o processo para identificar e avaliar os impactos potenciais de uma atividade para informar a tomada de decisões. A partir daí, operacionalizam-se as disposições da CNDUM sobre avaliação de impacto ambiental no alto mar e na Área, estabelecendo processos, limites e outros requisitos.

            A necessidade de realização dessas avaliações está consagrada nas legislações de vários Estados, incluindo o Brasil, e na jurisprudência internacional. Não se questiona, portanto, sua utilidade e necessidade como parte das atividades a serem desenvolvidas no mar, mas sim o escopo no qual se possa exigir a realização de tais avaliações.

            O Acordo sobre BBNJ consagrou a obrigação de realização de avaliações de impacto ambiental quando a atividade pode causar danos ambientais significativos em áreas fora da jurisdição nacional. Além disso, quando os efeitos de determinada atividade são desconhecidos e essa atividade pode ter mais do que um efeito menor ou transitório no ambiente marinho, deve-se realizar uma triagem, que deve ser, por sua vez, suficientemente detalhada para identificar potenciais danos ambientais.

Caro ao Brasil e aos demais Estados em desenvolvimento, o tema de Capacity Building e transferência de tecnologia continua não se materializando em cooperação efetiva, apesar dos múltiplos compromissos assumidos anteriormente. A falta de operacionalização traz consequências econômicas diretas aos Estados do Sul. Assim, a inclusão de uma parte dedicada ao reforço da capacitação e transferência de tecnologia é característica distintiva do Acordo sobre BBNJ.

Aqui, identificam-se méritos e deficiências. Por um lado, não foi possível a criação de um texto mais vinculativo, com reais compromissos para os Estados desenvolvidos. A pressão por obrigações de capacitação mais fortes, como a linguagem “deve garantir” proposta pelo G77 e pela China não foi adotada no texto final. Por outro lado, há um real avanço e tentativa de efetivar o tema com regras mais específicas e detalhadas do que em outros tratados anteriores, como a CNUDM. A criação de um comitê de especialistas para facilitar a capacitação e a transferência de tecnologia é uma inovação que ainda não foi contemplada em outros tratados multilaterais.

Como todo instrumento normativo internacional, o Acordo sobre BBNJ é resultado sintético de diversas abordagens da realidade, em um contexto de urgência climática. O ritmo da diplomacia não é controlável, embora não chegue a ser um processo espontâneo. Daí o seu mérito, constitui-se em mecanismo de proteção ambiental sem ignorar a importância da biodiversidade como estratégia de superação do subdesenvolvimento.           

O Acordo sobre BBNJ ainda não está em vigor. Os Estados precisarão se reunir novamente para adotá-lo formalmente. Em seguida, terão muito trabalho para que seja efetivamente implementado e produza os efeitos necessários para a utilização sustentável da biodiversidade marinha do alto mar e da Área.

  • Diretor do IBDMar (Instituto Brasileiro de Direito do Mar). Professor da Escola de Guerra Naval (EGN). Consultor jurídico da UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes). Doutor em Ciências Jurídico-Internacionais e Europeias pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDL). Mestre em Direito Internacional e Relações Internacionais pela FDL. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba. Graduado em Relações Internacionais pelo UNICURITIBA.

  • Vice-presidente do IBDMar (Instituto Brasileiro de Direito do Mar). Professor da Escola Superior Dom Helder Câmara. Doutor em Direito pela Université Panthéon-Assas Paris 2. Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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