Entre autógrafo e fac-símile: os compêndios de Direito das Gentes no Brasil oitocentista

Em 17 de maio de 1850, encontrava-se à terceira página d’O Commercial, jornal efêmero que circulou somente nesse ano no Recife, o seguinte anúncio:

“Vende-se o autographo da obra intitulada Direito das Gentes, pelo Dr. Autran”

(1) Autographo à época significava ‘escrito original, o mesmo que escreveu o autor’. (2) Sua origem vinha do grego, donde autos (αὐτός) e graphos (γράφος) correspondiam respectivamente a próprio e ato de escrever, ou seja, o que fora escrito da própria mão, o original. O anúncio, portanto, divulgava a venda do manuscrito da obra Elementos do Direito das Gentes [3] do professor do curso de direito, ainda em Olinda, Pedro Autran da Matta Albuquerque (1805-1881), obra que viria a ser impressa no ano seguinte. No entanto, a expressão que melhor descreveria o texto anunciado no jornal não vem do grego, mas do latim: fac simile, que, traduzida literalmente como ‘faz parecido’ carrega o sentido de cópia, reprodução. Isto porque o livro publicado em 1851 em Recife não passava de uma versão traduzida e resumida da obra Droit des Gens Moderne de l’Europe escrito pelo jurista alemão Johann Ludwig Klüber (1762-1837) algumas décadas antes. [4] Dessa obra publicada em Recife em meados do século XIX que vamos nos ocupar nas próximas linhas. A essa altura, o leitor poderá estar perguntando-se se uma cópia, ou no melhor dos casos, uma tradução mereceria um espaço na coluna sobre as Obras Essenciais do Direito Internacional no Brasil. A resposta dependerá do que entendemos por obras essenciais. Se tomarmos a essencialidade da obra não por um possível caráter de originalidade ou grandiosidade, qualidades que o livro de Autran evidentemente carece, mas pelo potencial explicativo para a história do direito internacional no Brasil, nesse caso a escolha estará plenamente justificada. Com efeito, o livro do professor Autran representa um importante capítulo na compreensão da história da disciplina de direito internacional, pois revela como o direito era concebido e qual modelo de escrita acadêmica predominara no século XIX brasileiro. Trata-se de um momento no qual a doutrina do direito internacional fora apropriada e adaptada para o contexto nacional por autores brasileiros, que o fizeram justamente através da manipulação dos textos mais em voga da disciplina. Para ilustrar esse cenário, além do compêndio de Pedro Autran de 1851, nos ocuparemos de outra obra da época que segue exatamente o mesmo arquétipo, o compêndio de Pedro Bellegarde, publicado em 1845.

Quando da criação dos cursos jurídicos no Brasil, impunha-se um dever aos professores: “farão escolha dos compêndios da sua profissão, ou os arranjarão, não existindo já feitos”. [5] Pedro Autran da Matta Albuquerque foi provavelmente o professor que mais tomou a sério a incumbência; escrevera, ao longo de quase meio século de magistério, compêndios para ao menos quatro disciplinas do curso de direito (economia política, direito público, direito natural e direito das gentes), além de manuais para uso das escolas normais (de economia política e de filosofia do direito público). Portanto, tratava-se de um livro pensado para servir de apoio às aulas de direito das gentes, que nos anos de 1850 eram lecionadas na primeira cadeira do segundo ano, dividindo o semestre com análise da Constituição e diplomacia. E de fato, o compêndio foi adotado pela Faculdade. [6] O fato de o ensino de direito das gentes dividir o semestre com análise da Constituição, que obviamente recebia maior atenção, jogava contra a disciplina, que na disputa pelo tempo do semestre, muitas vezes perdia, e deixava de ser ensinado. [7] Isso justificava a concisão do livro-texto. Seja como for, entendia-se por compêndio justamente um “resumo, que se faz de algum livro, discurso, ou outra semelhante matéria, cortando tudo o que parece superfluo e pondo em breves palavras o mais preciso”. [8] Tal como fizera Autran. Deste modo, Elementos do Direito das Gentes sintetiza em pouco mais de cem páginas as mais de quinhentas do livro original. Resumir, no entanto, implica em selecionar, em escolher aquilo que se considera importante ou essencial; e, por nenhum momento, pode ser considerado ato neutro. É no trabalho de reduzir à epítome uma obra extensa que se opera a adaptação da doutrina ao contexto nacional.

O livro de Klüber, Droit des Gens Moderne de l’Europe, pertencia a uma corrente positivista, que ao colocar o tratado como principal fonte do direito internacional, promovia a particularização desse direito, limitando-o a um fenômeno normativo estritamente europeu, como o título da obra já anuncia. Por esse motivo, o autor alemão recorre inúmeras vezes a casos concretos da prática dos estados para ilustrar determinado princípio jurídico; referências estas que na versão brasileira tiveram que ser eliminadas pelo tradutor, tanto nos títulos, quanto no texto e notas de rodapé. Ao suprimir as referências aos acontecimentos europeus – e também ao autor original -, Autran descontextualiza completamente o Droit des Gens Moderne de l’Europe para, agora com um texto asséptico de teor puramente normativo, incluir sua própria nação como parte desse direito.

Os artifícios para tornar possível o ensino de um direito preeminentemente europeu do outro lado do Atlântico, com efeito, não são encontrados apenas no livro publicado em Recife. Outro compendiador, seis anos antes, passara pela mesma situação. Pedro Alcantara Bellegarde (1807-1864) era professor na Escola Militar e, tal como Autran, fora incumbido de arranjar um manual para o ensino do direito das gentes na Escola Militar no Rio de Janeiro, como já havia preparado para o ensino de matemática e arquitetura. Assim o fez, e Noções elementares de direito das gentes: para uso dos alumnos da Escola Militar foi publicada em 1845 no Rio de Janeiro. [9] A escolha da obra que serviria de ‘modelo’ para seu compêndio – embora, ao contrário de Autran, ele mencione isso no prefácio – é bastante significativa: Précis du droit des gens moderne de l’Europe de Georg Friedrich von Martens (1756-1821). O resultado também é parecido: um livro em francês de mais de quinhentas páginas é reduzido a noventas e duas em português. Mas não somente em números residem as semelhanças. O título do livro, tal como o de Klüber, anunciava uma concepção restritiva do direito em questão; tratava-se de um direito que emergia e dependia exclusivamente das relações históricas entre soberanias europeias. Assim, Bellegarde é obrigado a lançar mão dos mesmos artifícios, eliminando igualmente todas as alusões ao contexto europeu, inclusive dos títulos. Martens, por exemplo, abre sua obra enumerando os estados europeus, afinal eles constituíam o fundamento da sua doutrina; Bellegarde não só suprime a exposição, como se vê compelido a trazer a seguinte inusitada consideração: “Debaixo da denominação de estados da Europa, comprehendemos aqui também os estados Americanos, que tendo sido formados primitivamente por colonisação europeas, reconhecem os mesmos principios do direito das gentes do que os da Europa”. [10] Em suma, o cotejo entre as dobradinhas Klüber/Autran e Martens/Bellegarde, ao revelar malabarismos como esse para estender o âmbito de aplicação do direito, torna explícito o curto-circuito gerado pela difícil tarefa de universalizar um direito extremamente particular.

Vale ilustrar com um exemplo como a adaptação ocorria durante os processos de resumo e tradução. Autran seguira sucessivamente a organização de capítulos do livro original, apenas cortando pontos mais aprofundados e ilustrações das regras; no entanto, o capítulo no qual Klüber condenava o tráfico de escravos como prática em desacordo com o direito das gentes foi deliberadamente ignorado pelo autor brasileiro, ficando de fora de seu compêndio.[11]


Bellegarde, todavia, foi além. Tendo publicado em 1845, não há como saber qual das edições do livro de Martens até então publicadas Bellegarde utilizou como referência. [12] Enquanto a edição publicada em 1801 do Précis não faz nenhuma menção ao tráfico de pessoas, a edição de 1821 acrescenta um novo parágrafo. Logo após comentar sobre o ‘Comércio dos europeus em outras partes do globo’ (Livro IV, Capítulo III, § 150a), Martens relata na segunda edição os desdobramentos do Congresso de Viena que levaram à abolição inteira e definitiva do tráfico de pessoas do direito das gentes (Livro IV, Capítulo III, § 150b). O parágrafo também aparece na edição de 1831 – comentada por Silvestre Pinheiro Ferreira. Ou seja, apenas a primeira edição do Précis du droit des gens moderne de l’Europe, a menos provável de ter sido usada por Bellegarde, é silente sobre o assunto. Quer dizer, caso tenha utilizado a primeira edição, publicada há mais de quatro décadas, Bellegarde teria acrescentado por sua conta um parágrafo validando o tráfico; caso tenha utilizado qualquer outra edição, o que é mais razoável, o militar brasileiro teria substituído a crítica do original pela legitimação. Assim, Bellegarde ao invés de tomar o mesmo caminho de Autran e ignorar o capítulo, optou por criativamente distorcê-lo de modo a tornar o tráfico lícito perante o direito das gentes, já que, nas – exclusivamente – suas palavras, “considerado como huma convenção recíproca entre dois povos, está no direito das gentes natural”, e ainda, “cada nação tem o direito de se reger por suas próprias luzes, e de ser da opinião contrária, tanto mais quanto d’ahi não resulta prejuízo de terceiro”. [13] Embora comente que algumas nações proscrevem esse tipo de comércio, dá a entender, em inventiva e ambígua argumentação, que o atual direito das gentes o permite.

A exclusão do capítulo sobre a proibição do tráfico negreiro em Autran, e a inclusão de uma possível licitude dele por Bellegarde, ambos em dissonância com seus textos originais, evidenciam as manipulações dos textos de modo a adaptá-los ao contexto nacional. Há que se lembrar que por serem compêndios adotados para o ensino público havia um certo controle censório. Tanto os compêndios para os cursos de direito, quanto para a escola militar, necessitavam de aprovação para serem adotados oficialmente. Com relação aos compêndios dos cursos jurídicos especificamente, a continuação do artigo citado no início do texto ditava que os compêndios escolhidos ou preparados pelos professores deveriam ser submetidos ao escrutínio da Congregação dos professores e da Assembleia Geral, que verificariam, dizia o artigo, se as doutrinas estavam de acordo com o sistema jurado pela nação. E de fato, a matéria ocupara as pautas de muitas sessões do parlamento brasileiro. Quer dizer, esse tipo de adaptação era, por assim dizer, forçosa para a publicação de um compêndio. Outro gênero literário acadêmico, uma monografia ou um tratado sobre a disciplina sem pretensões necessariamente didáticas por exemplo, não passaria por um controle de conteúdo – senão os editoriais -, e caso atentasse contra qualquer ortodoxia, geraria, no máximo, debates nos periódicos. Essa situação parece se alterar ao findar o século. Em 1891, os cursos jurídicos foram reformados, e a nova lei já não obrigava os lentes a preparar compêndios. Pelo contrário, previa: “os lentes farão as prelecções sobre compendios de sua livre escolha, e poderão ensinar quaisquer doutrinas”. [14] Certamente a mudança curricular não fora o único fator para a mudança que se operará na literatura do direito internacional na virada para o século XX, quando veremos os primeiros tratados de direito internacional público com pretensões de cientificidade. Não obstante, o controle de acordo com o ‘sistema jurado pela nação’ não mais existirá, pelo menos não diretamente.

Se quisermos, então, procurar alguma originalidade nesses primeiros desenvolvimentos da disciplina, nós a encontraremos nesses episódios nos quais os autores brasileiros empenharam-se para universalizar o direito internacional e forçar a inclusão do Brasil no exclusivista ius publicum europaeum. Embora não se pudesse esperar inovação ou originalidade em termos teóricos de um compêndio, cujo propósito era expor de maneira clara e concisa o estado da disciplina, a desenvoltura dos autores da época em manipular e rearranjar os textos tradicionais da disciplina para adaptá-los ao ensino no Brasil se mostrava assaz inventiva. Tomar tais compêndios como meras cópias ou traduções ignoraria o papel de intermediação que tiveram de tornar imaginável o ensino de um direito exógeno e particular em terras brasileiras. Assim, o processo de apropriação e adaptação das doutrinas europeias operado por autores como Autran e Bellegarde, e balizado também por um controle censório, preparará terreno para mais adiante, no limiar do século XIX, vermos despontar um discurso com pretensões mais universalistas, mesmo que ainda bastante eurocêntrico e hierarquizado, no qual a doutrina brasileira, aí mais consolidada, apresentará o Brasil como nação civilizada, não em compêndios resumidos, mas em tratados e monografias de direito internacional público. Por certo, entre os extremos fac-símile e autógrafo, há um mundo escrito que se produz e reproduz justamente através da intertextualidade, nos mais diversos graus, direções e modalidades, seja em manuais didáticos de meados do século XIX ou nos tratados com pretensões científicas que logo surgirão.

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[1] O Commercial. Jornal dos interesses commerciaes, agricolas, industriaes, e de literatura. Recife. 17 de maio de 1850. No. 98, Anno I. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/819271/335

[2] Silva, Antonio de Morais. Bluteau, Rafael. Diccionario da lingua portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro. Lisboa: Simão Tadeu Ferreira, 1789. Vol. I, p. 234.

[3] Albuquerque, Pedro Autran da Matta. Elemento do Direito das Gentes, segundo a doutrina dos escriptores modernos. Recife: Typographia União, 1851. Existe um exemplar na Biblioteca da Faculdade de Direito da USP. Atualmente, a obra pode ser consultada na coleção digital da Biblioteca Oliveira Lima, Catholic University of America: http://hdl.handle.net/1961/lima:27299

[4] Ribeiro, Airton. Brazilian literature on international law during the empire regime. Or the diffusion of international law in the peripheries through appropriation and adaptation. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 15, n. 3, 2018 p.49-66. Disponível em. https://doi.org/10.5102/rdi.v15i3.5715

[5] Império do Brasil. Lei de 11 de agosto de 1827.

[6] Conforme relatório publicado no Jornal Atheneu Pernambucano. Periódico Scientifico e Litterario. Recife. Vol. III, No. 1, Junho de 1858. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/819786/242

[7] Isso que relatam relatórios dos anos de 1861 e 1862 publicados em: Negócios do Império. Relatório apresentado à Assembleia Geral Legislativa. Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1862 e1863. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/720968/5754 e http://memoria.bn.br/DocReader/720968/6570

[8] Bluteau, Rafael. Vocabulario portuguez, e latino, aulico, anatomico, architectonico, bellico, botanico… : autorizado com exemplos dos melhores escritores portuguezes , e latinos, Collegio das Artes da Companhia de Jesu: Lisboa, Officina de Pascoal da Sylva, 1712-1728. Vol. I, p. 684.

[9] Bellegarde, Pedro Alcantara. Noções elementares de direito das gentes: para uso dos alumnos da Escola Militar. Rio de Janeiro: Typograhpia de Bintot, 1845. Atualmente, a obra pode ser consultada na coleção digital da Biblioteca Oliveira Lima, Catholic University of America: http://hdl.handle.net/1961/lima:27690

[10] Bellegarde, 1845, p. 11.

[11] Ribeiro, 2018, p. 59.

[12] Macalister-Smith, Peter; Schwietze, Joachim. Literature and Documentary Sources relating to the History of Public International Law: An Annotated Bibliographical Survey. Journal of the History of International Law. Vol. 1, p. 136-212. p. 200-201.

[13] Bellegarde, 1845, p. 48.

[14] Brasil (Decreto do Governo Provisório). Decreto nº 1.232-H, de 2 de janeiro de 1891.

  • Airton Ribeiro é pesquisador pós-doutoral da Universidade de Helsinki. É mestre em direito internacional pela Universidade Federal de Santa Catarina (2015) e doutor em história do direito pela Università degli Studi di Firenze (2018). Foi pesquisador convidado no Max Planck Institute for Legal History and Legal Theory, em Frankfurt, e na Escuela de Estudios Hispano-Americanos, em Sevilha. Tem interesse nas áreas de história do direito internacional, história do direito colonial e história dos livros jurídicos.

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