Direito Global, por Salem Nasser

Meus amigos e colegas, os responsáveis pela preciosa contribuição em que se transformou este blog do Ramo Brasileiro da ILA, fizeram de mim um colunista e me deram por tema e mote algo chamado Direito Global. 

A escolha da pessoa, ponhamo-la na conta de generosidade dos amigos. Já a escolha do tema não é acidental: eu ministro disciplinas assim chamadas há anos, em uma instituição que muito contribuiu para repensar o Direito que opera para além e através das fronteiras. Além disso, eu recentemente publiquei um livro que leva o mesmo título, Direito Global (Editora Almedina, 1ª ed., 2021), em que ofereço uma visão própria do universo da normatividade em contexto global. 

Evidentemente, o nome da coluna não comanda nem restringe, necessariamente, conteúdos ou orientações teóricas; a rigor, qualquer discussão da normatividade internacional ou transnacional é cabível. Inclusive, o primeiro texto que aqui apareceu, em março passado (Dostoiévski Não!), não tentava explicar o que ali havia de parentesco com alguma concepção específica de Direito Global, mas antes se referia a tendências de leitura parcial da realidade e de aplicação arbitrária de normas em contexto global e, também, a expressões do que quero chamar de imperialismo legal. 

Faço então um passo atrás, quase como quem recomeça, para pintar um quadro, um esboço das grandes linhas que vejo delimitar a ideia de Direito Global. Essas grandes linhas permitirão, por sua vez, localizar os contornos, também incertos, do que se pensa como Imperialismo Legal ou Jurídico. Por um tempo, ao menos, ou ao longo de alguns artigos, pretendo conversar sobre estas duas coisas, sem, no entanto, fazer disso um contínuo didático ou uma tese. Quero antes convidar a uma exploração contínua da realidade complexa que se vai anunciar. 

De modo quase inocente, quero simplesmente dizer que se pode entender o Direito Global como a totalidade das normas (e das instituições, na medida em que estas são produções normativas); isso mesmo, a totalidade. Penso no universo normativo em seu todo, não só aquele que existe concretamente em dado momento, mas naquele potencial e em produção permanente. A simplicidade com que se pode expressar o conceito, possível apenas porque não exclui nada que seja normativo, aparece em oposição à complexidade do real que quer expressar e que tende ao infinito; uma complexidade que pode não se fazer evidente desde o início, em decorrência do fato de que nossos olhares não estão necessariamente habituados a perceber como normativos fenômenos que escapem a conformações dadas. 

Quem me conhece sabe que eu não dispenso a centralidade da pergunta sobre as fronteiras entre o Direito e o Não-Direito para a nossa reflexão sobre a organização do mundo por normas. No entanto, quando me permito pensar, sob a etiqueta “Direito Global”, na totalidade das expressões normativas em contexto global, o que faço é reunir, com o propósito de compreender de modo tão abrangente quanto possível justamente aquilo que chamo de “a organização da vida por normas”, fenômenos normativos distintos, em que os critérios de reunião e de distinção entre as normas são diversos e podem incluir as concepções clássicas do jurídico e do não-jurídico. 

O primeiro grande movimento em direção da complexidade – como dito, potencialmente infinita – desse universo normativo é aquele da percepção do número, da enormidade, da multiplicidade, da diversidade. Esse primeiro movimento pode não provocar outro efeito que não um assombro genérico, colocando o observador desse firmamento de normas na posição equivalente a quem contempla um céu estrelado, sem, a princípio, conseguir estabelecer relações significativas entre os infinitos pontos brilhantes. 

A própria diversidade dos fenômenos normativos só pode começar a ser significativamente percebida e concebida quando se inicia o segundo movimento, uma operação permanente de distinção e identificação dos liames entre normas e de suas interações: algumas normas agirão em conjunto para criar instituições; algumas formarão, por conta de relações estruturais entre elas, sistemas jurídicos; outras se reunirão e agirão sobre temas específicos que se poderia chamar de regimes jurídicos ou normativos; normas pertencentes a sistemas jurídicos entrarão em relação com aquelas pertencentes a outros sistemas ou não; normas, jurídicas ou não, inspirarão sistemas, serão copiadas, impostas; etc. 

A realidade concreta, cotidiana, da vida dos Estados e também dos indivíduos e outros entes privados, faz prova do caráter inescapável da incidência dessas múltiplas normas enquanto se relacionam entre si sobre os aspectos mais diversos das relações humanas. É verdade que, normalmente, quando estudamos os temas relacionados ao universo usualmente chamado de Direito Internacional, somos confrontados a duas categorias de relações entre os diversos, ainda que restritos ao mundo dos sistemas jurídicos: estudamos as relações entre Direitos Nacionais, por via do Direito Internacional Privado; e estudamos as relações entre Direito Internacional Público e os Direitos Nacionais. Isso hoje se apresenta largamente insuficiente. 

Precisamos adicionar a estas duas categorias de relações a discussão da interação entre Direitos Nacionais, Direito Internacional e Direito Comunitário; das relações entre ações ditas administrativas globais (ou de governança global, se quisermos) e os diversos sistemas jurídicos e entre si; as relações da regulação privada com o direito ou com outros tipos de normatividade etc. E é preciso perceber que não só há interações entre diversos, mas que também, e isto é essencial, há diversas modalidades de interação, e que o estudo desta nova diversidade é necessário. 

Aí está, portanto, em poucas palavras, o anúncio de uma realidade complexa a ser permanentemente informada por estudos e ilustrações potencialmente infinitos. A continuar, portanto… 

Mas onde está o Imperialismo Legal em tudo isso? Ele não é, certamente, um fenômeno novo e não dependo, portanto, de uma configuração do Direito Global – enquanto diversidade dos fenômenos normativos e interações normativas em contexto global – que seja nova. A rigor, a diversidade e as interações não são fenômenos novos, mas antes são fenômenos permanentes que se apresentam sob conformações novas e renovadas. 

A conexão entre diversidade, interações e imperialismo, no que respeito ao universo normativo, está em que, no seio da diversidade, as interações compreenderão aquelas trocas, influências, imposições que decorrem das diferenças de poder e do exercício do poder. 

Ilustrações disso que se pode chamar de Imperialismo legal… Duas para começar a conversa: uma histórica, aquela dos tribunais extraterritoriais estabelecidos por potências ocidentais em países não-ocidentais, colônias ou não; uma muito atual, aquela dos efeitos extraterritoriais das normas nacionais que estabelecem sanções unilaterais. Também aqui, a continuar…

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