Conflito no Oriente Médio: lembretes à Lei das Nações

O conflito israelense-palestino está causando alvoroço entre juristas. Vários professores estão invocando os princípios do direito internacional para garantir a dignidade e a segurança das populações civis.

O texto abaixo foi publicado no dia 30 de outubro de 2023, intitulado “Conflit au Proche-Orient : rappels à la loi des nations” no website “Le Club des Juristes“, originalmente em língua francesa, no seguinte link.

Por Evelyne Lagrange, Professora de Direito Público na Université Paris 1 Panthéon Sorbonne;
Jean Matringe, Professor de Direito Público na Université Paris 1 Panthéon Sorbonne;
Anne Peters, Professora nas Universidades de Bâle, Heidelberg, e na Freie Universität Berlin, et co-Diretora do Institut Max Planck de Heidelberg ;
Thibaut Fleury-Graff, Professor de Direito Público na Université Paris-Panthéon-Assas;
Romain Le Bœuf, Professor de Direito Público na Université Aix-Marseille Université.

Desde os ataques do Hamas em território israelense – que devem ser denunciados, julgados e combatidos como atos de terrorismo, crimes de guerra e até mesmo crimes contra a humanidade – o Oriente Médio tem sido mais uma vez palco de uma espiral insuportável de violência e vingança, cujas vítimas imediatas são civis israelenses, palestinos e outros.

Esses ataques odiosos e a resposta israelense massiva na Faixa de Gaza fazem parte de um longo conflito, marcado por graves violações do direito internacional e sofrimento incalculável para israelenses, palestinos e alguns de seus vizinhos. Em vez de resolver o conflito e dar vida aos Acordos de Oslo, os esforços diplomáticos ao longo dos anos foram usados para evitar o processo de paz, privando a Palestina de perspectivas sem garantir a segurança de Israel.

Talvez ainda não tenha chegado o momento da diplomacia para a paz. A regulação da paz, sem dúvida com garantias internacionais, terá que levar em conta os princípios bem estabelecidos do direito internacional, lembrados nas resoluções da ONU e na jurisprudência da Corte Internacional de Justiça, para pôr fim à ocupação dos territórios palestinos e à política de colonização, para atender à necessidade de reconhecimento e segurança dos dois Estados, Israel e Palestina, para levar em conta os direitos dos refugiados palestinos, para esclarecer o status de Jerusalém e para resolver a questão das reparações.

No momento, a máxima prioridade é não deixar que as armas falem sozinhas. Diante da violência extrema que afeta os civis e ameaça se espalhar pela Cisjordânia e por todo o Oriente Médio, diante da arrogância de alguns e da prudência excessiva de linguagem de outros, é uma necessidade moral e política lembrar o espírito e as regras fundamentais do direito internacional.

1- Israel só pode usar a força, em conformidade com os princípios da necessidade e da proporcionalidade, para proteger sua população e seu território contra ataques contínuos ou, talvez, de forma direcionada, para libertar reféns. A legítima defesa não pode abranger todas as operações atuais e passadas de Israel como potência ocupante dos territórios palestinos. Quanto aos grupos que reivindicam a libertação desses territórios pela força, o direito internacional não pode permitir mais do que operações armadas contra a ocupação militar israelense, em nenhuma circunstância para destruir Israel ou atacar civis.

2- Quer seja motivado por legítima defesa ou pelo direito dos povos à autodeterminação, o uso da força está sujeito a considerações elementares de humanidade que inspiram e complementam as regras mais precisas do direito internacional humanitário, que também são obrigatórias para as partes e que também estão sendo manifestamente violadas. Nem essas considerações nem essas regras podem ser conciliadas com os pedidos de vingança, a tomada de reféns e os assassinatos de civis cometidos em Israel, o cerco total à Faixa de Gaza, que priva rapidamente a população de qualquer meio de subsistência, ou os bombardeios desproporcionais que não respeitam o princípio da distinção. Considerações básicas de humanidade exigem a libertação incondicional dos reféns e medidas para garantir a proteção imediata e eficaz das populações civis israelenses e palestinas.

3- O desrespeito a essas considerações básicas e as violações graves do direito internacional humanitário envolvem a responsabilidade de seus autores – Estados, grupos armados e indivíduos de todas as nacionalidades.

Relembrar e respeitar esses princípios fundamentais é a primeira condição para desescalar o conflito que finalmente possibilitará garantir a segurança e a dignidade das populações civis e seu acesso a serviços básicos em Israel e na Palestina e, em longo prazo, discussões para trazer uma solução duradoura para os povos desses dois Estados.

Ao contrário de uma crença comum, o direito internacional faz mais do que estabelecer princípios.

Por um lado, ele impõe claramente uma obrigação aos beligerantes e a todos os Estados de respeitá-los e de garantir que sejam respeitados, porque eles são, de fato, de interesse de toda a humanidade.

Por outro lado, como o respeito às regras fundamentais do direito internacional é responsabilidade de cada Estado e da comunidade internacional como um todo, esta deve considerar maneiras de proteger as populações civis se as partes em conflito não o fizerem. Da mesma forma, ela deve garantir que o direito à legítima defesa seja exercido sem abusos e que armas e métodos de guerra proibidos não sejam usados, organizar a cooperação para pôr fim às violações graves das normas fundamentais e, se os Estados não o fizerem, punir os crimes internacionais cometidos contra civis.

As instituições internacionais são competentes, em especial o Conselho de Segurança, que está dramaticamente paralisado até o momento, a Assembleia Geral das Nações Unidas, que pode assumir parcialmente seu lugar, e o Tribunal Penal Internacional. Os Estados são obrigados a cooperar para pôr fim às graves violações das normas fundamentais e podem e devem (re)colocá-las em movimento.

A ajuda humanitária a Gaza iniciada há alguns dias, que só pode estar sujeita aos princípios de humanidade, neutralidade e imparcialidade, é um primeiro passo para colocar em prática essas considerações elementares de humanidade. O próximo passo deve ser agora uma trégua humanitária – solicitada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 27 de outubro de 2023 – e a libertação dos reféns.

Uma vez que um cessar-fogo tenha sido concluído ou imposto aos beligerantes, será hora de passar para a próxima etapa: a conclusão de um tratado de paz na forma devida e apropriada. No passado, muitos conflitos de gravidade igualmente extrema encontraram soluções dentro da estrutura do direito internacional; não há nenhuma razão válida para supor que nesse não possa existir. Um “acordo de paz justo, duradouro e global” (Resolução 65/16 da Assembleia Geral da ONU, 30 de novembro de 2010), após um cessar-fogo precário, é a única maneira de trazer a paz para os povos envolvidos, para a região e para o mundo.

Vale a pena lembrar que os princípios fundamentais do direito internacional não foram pacientemente forjados para o prazer exclusivo dos juristas, nem para que os Estados possam invocá-los ao sabor de seus próprios interesses ou dos interesses de seus aliados. Sua razão de ser é proteger indivíduos, povos e Estados em todos os lugares contra a destruição de seus direitos básicos e o desprezo por sua dignidade; preservar as chances da paz; dar substância a um mínimo de consciência universal e solidariedade entre as nações; proteger, aqui, as crianças de Israel e as crianças da Palestina, ambas.

Traduzido à língua portuguesa por Lucas Carlos Lima, Professor de Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais.

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As opiniões veiculadas neste blog não necessariamente correspondem a dos membros da ILA-Brasil.

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