O tráfico transatlântico de pessoas escravizadas, o colonialismo e os legados da escravização foram os fatos históricos que resultaram na construção de estereótipos racializados e preconceitos contra as pessoas de ascendência africana. Essa foi a conclusão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, por ocasião do relatório sobre a promoção e proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais das pessoas africanas e afrodescendentes contra o uso excessivo da força e outras violações dos direitos humanos por agentes policiais.
O debate proposto por Katarina Schwarz na obra Reparations for Slavery in International Law, portanto, revela-se extremamente atual e estratégico para a implementação de políticas públicas orientadas à promoção e proteção dos direitos humanos das pessoas de ascendência africana. Na introdução, a autora adverte que o debate em torno das reparações pelo tráfico transatlântico de pessoas africanas escravizadas não é novo. A diferença repousa em um movimento que surge em meados do século XX, a partir de pesquisadores que inserem o tema da memória pública e coletiva deste fato histórico.
A autora também recorda que os debates em torno da justiça reparatória frequentemente estão concentrados nos temas da legalidade da escravização no tempo e da responsabilidade das gerações seguintes pelos danos ocorridos no passado. O texto chama atenção para o equívoco de se restringir a análise da reparação a uma dimensão jurídica, de forma a desmobilizar iniciativas que tocam reparações de dimensões simbólicas, históricas e culturais.
É sob essa perspectiva que a memória e a verdade ganham ênfase nas discussões que envolvem a reparação pelo tráfico transatlântico. Schwarz esclarece na introdução que a teoria da justiça reparatória desenvolvida no texto fornece mecanismos para analisar as injustiças históricas, tanto dentro quanto fora do Direito.
A autora identifica que a abolição da escravização e do tráfico de pessoas escravizadas foi insuficiente para promover mudanças significativas para os afrodescendentes. Por outro lado, as legislações domésticas dos Estados revelam-se insuficientes para captar a dimensão histórica do tráfico transatlântico e do colonialismo, como causa direta das sucessivas violações de direitos humanos que ainda conduzem as pessoas de ascendência africana a um cenário de desvantagem nas sociedades contemporâneas.
O obstáculo que se apresenta reside nos próprios estândares filosóficos que estruturam a teoria dominante dos direitos humanos, a qual guarda fidelidade à cosmovisão eurocêntrica e liberal. O estabelecimento de um contraponto que promova uma memória coletiva e inclusiva demanda a adoção de referenciais teóricos descolonizadores, aptos a provocar tensionamentos nas bases que edificam os paradigmas clássicos. Em outras palavras, o Direito Internacional dos Direitos Humanos, para ser efetivo em relação às medidas de reparação para as pessoas afrodescendentes, deve abandonar o mito da justiça universal.
A partir de uma perspectiva interdisciplinar, vislumbra-se a contribuição de matrizes teóricas estranhas ao pensamento jurídico clássico, como as teorias descolonial, pós-colonial, e a teoria crítica da raça. Esses referenciais apresentam categorias úteis para que o Direito Internacional dos Direitos Humanos reposicione o debate da reparação pelo tráfico transatlântico a partir de narrativas contra hegemônicas e historicamente invisibilizadas. A centralidade da vítima, outro elemento importante para a compreensão da obra de Schwarz, ganha ênfase com essas ferramentas teóricas possibilitadoras.
No primeiro capítulo, a autora destaca que o tráfico transatlântico institucionalizou os mecanismos de desumanização de africanos e afrodescendentes. Diferentemente de outras modalidades de escravização de pessoas ao longo da história, o sistema transatlântico descortina um processo de racialização, no qual se estabelece uma ideia de inferioridade das pessoas de ascendências africana. A raça, portanto, constituiu a base para que esse grupo específico fosse escravizado independentemente das condições de legitimidade previstas à época para que pessoas livres pudessem ser escravizadas. Essa perspectiva dialoga com o pensamento do teórico descolonial Anibal Quijano, para quem a ideia de raça se constituiu em uma categoria mental da modernidade, e converteu-se no “primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis, lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade” (.
Em síntese, a construção de estereótipos racializados serviu de suporte para a manutenção do tráfico transatlântico, bem como para justificar moralmente as brutalidades cometidas. A compreensão desse fenômeno e sua conexão com o colonialismo é ponto-chave para o início de um debate maduro, consistente e propositivo no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos sobre a necessidade de se estabelecer medidas de reparação para as pessoas de ascendência africana. Há um legado contemporâneo presente na manutenção de desigualdades, preconceitos e traumas intergeracionais que impede as pessoas afrodescendentes de gozar e fruir dos direitos humanos em sua plenitude.
No capítulo 4, Katarina Schwarz identifica que o direito positivo, no âmbito internacional, vem sendo insuficiente para amparar as demandas de reparação pelo tráfico transatlântico. Há necessidade de se compreender a natureza e os objetivos do instituto da reparação no direito internacional, bem como as diferentes perspectivas de justiça que se verificam em torno da teoria da justiça reparatória.
A autora apresenta algumas concepções de justiça reparatória, dentre elas a justiça corretiva, a perspectiva econômica, a justiça transformativa e a justiça distributiva. Os elementos também são pontuados, dentre eles a responsabilidade, o reconhecimento, o impacto e a forma.
As modalidades de compensação são tratadas no capítulo 5, com destaque para a satisfação, a restituição, a compensação, a cessação e as garantias de não-repetição. Ao cabo, Schwarz expõe os objetivos da reparação: resposta ao sofrimento pelo mal causado, combate às dinâmicas de invisibilização e marginalização, reconciliação entre vítima e agressor, reconciliação entre vítima e sociedade, interrupção dos ciclos de violência e envio de mensagem à sociedade.
Todas essas categorias aproximam a teoria da justiça reparatória dos mecanismos que compõem os processos de justiça transicional: o binômio memória/verdade, a reparação, a responsabilização ou justiça e a reforma das instituições. O Conselho de Direitos Humanos da ONU define justiça transicional como sendo o conjunto de mecanismos e processos associados aos anseios de uma sociedade em resolver os problemas derivados de um passado de abusos em grande escala, a fim de que os responsáveis prestem contas de seus atos, se estabeleça justiça e, ao cabo, a reconciliação.
Em virtude das expectativas e objetivos almejados, Schwarz adverte que a justiça reparatória pelo tráfico transatlântico não pode ser analisada sob uma perspectiva restrita. A reparação deve ter em conta a finalidade de transformar a sociedade, a partir do reconhecimento das violações, de forma a alcançar a igualdade em sua dimensão substancial. Por essa razão, o paradigma da justiça meramente corretiva revela-se insuficiente.
A reflexão que se propõe em relação ao tema é no sentido da necessidade de se fixar um marco histórico específico no âmbito interno dos Estados, que viabilize a abertura de um debate mais denso sobre medidas de reparação pelo tráfico transatlântico. A título de exemplo, aponta-se a abolição da escravização no Brasil, ocorrida em 1888. As violações dos direitos humanos da população afrodescendente continuaram no período pós-abolição, muitas vezes patrocinadas pelo próprio Estado (criminalização da cultura e das expressões religiosas de matriz africana, violência policial, ausência de políticas públicas para moradia, saúde e educação, por exemplo).
No Brasil, esse seria o fato histórico que estabeleceria uma conexão direta com o tráfico transatlântico e ensejaria uma discussão que tocaria não apenas as medidas de reparação, mas também a necessidade de uma justiça de transição para a abolição “inacabada” da escravização de pessoas africanas e afrodescendentes. Estrategicamente, esse debate pode ser impulsionado a partir de medidas de reconhecimento (um dos elementos da justiça reparatória apresentado por Schwarz) que confiram uma dimensão simbólica da reparação. No país, tem ganhado destaque o projeto de construção de um museu sobre a memória da escravidão na região conhecida como Cais do Valongo, na cidade do Rio de Janeiro. O local foi reconhecido pela UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade, por ter sido o principal porto de entrada de africanos escravizados nas Américas.
A segunda e última reflexão que se propõe em relação à obra de Katarina Schwarz diz respeito ao papel das instituições jurídicas. A efetivação de medidas de reparação pelo tráfico transatlântico e outros mecanismos de justiça transicional passa por uma atuação propositiva e descolonizadora das instituições do sistema de justiça. Não por acaso, a autora, ao tratar das modalidades de compensação, esclarece que o Direito Internacional tem considerado os pronunciamentos judiciais como uma forma de satisfação. No mesmo sentido, quando se trata das medidas de cessação, as autoridades judiciárias possuem uma função essencial para determinar a interrupção de determinada conduta ilícita em curso.
O tema da reparação pelo tráfico transatlântico possui intrínseca conexão com a ideia de igualdade e não-discriminação, ambos princípios estruturantes dos direitos humanos, em sua perspectiva Pós-guerra. E todo esse contexto está diretamente relacionado a ideia de democracia.
Os estudos relacionados às instituições do sistema de justiça ganham ênfase no Brasil a partir da redemocratização e da preocupação com os direitos humanos. Portanto, são os valores democráticos que conferem protagonismo às instituições jurídicas no debate público a respeito de assuntos afetos à promoção e proteção dos direitos humanos.
Ost lembra que a missão de guardião da memória social sempre foi confiada aos juristas. ( De acordo com o autor belga, a superabundância de informações geradas pelas imagens e pelos meios de comunicação provocam um declínio da memória, e relegam a um segundo plano os registros históricos produzidos a partir de uma coerência temporal.
Não se pretende defender o sistema jurídico como possibilidade única de efetivação de medidas de reparação. No entanto, identifica-se nesta institucionalidade estatal um locus extremamente relevante e estratégico para a inserção da pauta. No mesmo sentido, aponta-se a necessidade de mudança do paradigma de institutos jurídicos clássicos que, na contemporaneidade, revelam-se insuficientes para o atendimento das demandas de reparação pela escravização e pelo tráfico transatlântico. Abre-se a oportunidade para o debate acerca de outro mecanismo importante da justiça de transição: a reforma das instituições.
Schwarz, ao final do texto, reconhece a fluidez das dinâmicas de resolução dos conflitos, fato reconhecido pela literatura acadêmica da justiça de transição. A perspectiva da autora dialoga mais uma vez com Herrera Flores, para quem os resultados das lutas sociais pela dignidade são sempre provisórios.
A obra Reparations for Slavery in International Law é leitura obrigatória para pesquisadoras e pesquisadores cuja investigação científica está diretamente relacionada à promoção dos direitos humanos. É recomendável, também, a todas e todos os profissionais do sistema de justiça porque, a partir de uma reflexão crítica, Schwarz identifica os limites do Direito para garantir medidas de reparação adequadas e satisfatórias para a população afrodescendente pelas injustiças históricas. O principal impacto da obra no campo acadêmico é que ela nos permite avançar de maneira mais assertiva nos debates em torno da implementação de mecanismos orientados à erradicação do racismo. Por fim, a autora nos convida a repensar o modelo de sociedade estabelecido no âmbito do Sul Global a partir de uma perspectiva descolonizadora, que vislumbra no combate à discriminação racial uma etapa indispensável para a consolidação da democracia.
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Defensor Público Federal. Mestre em Direito Público pela Unisinos. Diretor-Geral da Escola Nacional da Defensoria Pública da União.