Book Review – Desapropriação Indireta nos Acordos de Investimento

Introdução

A desapropriação representa o tema mais discutido e certamente um dos mais controversos na trajetória do Direito Internacional dos Investimentos ao longo do século XX. Não por acaso ele está no centro do ambiente de crise que domina o campo nas últimas décadas. É este o pano de fundo que anima a leitura de Expropriação Indireta nos Acordos de Investimento, obra de fôlego oferecida à comunidade do Direito Internacional por Vivian Gabriel.

Estrutura

Logo de início Gabriel contextualiza o cenário de crise e reforma do Direito Internacional de Investimentos para afirmar que os acordos de investimento neste século tem se tornado mais claros e cooperativos. A partir desse contexto ela anuncia o objetivo da pesquisa: analisar se os acordos de investimento celebrados no século XXI, em meio à reforma geral do campo, apresentam cláusulas de desapropriação indireta mais claras, detalhadas e cooperativas (p. 31-32).

A autora realiza seu trajeto de pesquisa de modo bem estruturado. O primeiro capítulo elucida como a proteção da propriedade evoluiu ao longo da história do Direito Internacional. No segundo, ela revela como as regulatory takings, típicas do direito doméstico dos EUA, foram exportadas para o Direito Internacional dos Investimentos na forma de desapropriação indireta. O terceiro traz o arcabouço teórico da pesquisa, com uma profunda apresentação da teoria do Continente do Direito Internacional. No quarto e último capítulo, Gabriel anuncia os resultados empíricos de sua investigação, após confrontar seu marco teórico com cláusulas de desapropriação indireta extraídas de uma amostra selecionada de tratados de investimentos. Veja-se um pouco mais dessa trajetória.

Um passeio histórico sobre o Direito Internacional da propriedade

A evolução da proteção da propriedade no Direito Internacional é trazida no primeiro capítulo como produto de uma brilhante e profunda pesquisa histórica. O leitor embarca numa leitura bastante fluida, agradável, uma viagem exuberante que parte de tratados celebrados na Grécia Antiga e no Império Romano, passa pelos estudos clássicos de Vitória e Vattel, pelos tratados de amizade, comércio e navegação e pelos acordos de capitulação até chegar ao início do século XX com a proteção diplomática, a Doutrina Calvo e a Fórmula Hull. A partir dali, já na segunda metade do século, o aumento do fluxo internacional de investimentos se depararia com um cenário geopolítico mais complexo e inseguro quanto à proteção de investidores no exterior. A ONU seria palco da luta travada pelas ex-colônias contra países desenvolvidos pela soberania sobre os recursos naturais. O mundo assistiria ali a uma onda de expropriações sem precedentes (pp. 53-55). 

Na parte final deste capítulo, Gabriel se soma a uma literatura crítica que aponta a pouca propensão da CIJ para julgar disputas sobre investimentos estrangeiros, a dependência da proteção diplomática e do esgotamento dos recursos internos para se elevar disputas ao plano internacional e o fracasso nas tentativas de multilateralização do regime jurídico internacional dos investimentos como causas diretas da proliferação dos tratados bilaterais sobre a matéria (p. 73). O passeio histórico chega ao final com uma apresentação panorâmica da trajetória de formação, difusão e crise dos acordos bilaterais de investimento, em que a desapropriação indireta é cada vez mais confrontada com a proteção do direito dos Estados de regular questões legítimas de interesse público (p. 81). Ganha-se aqui a certeza de que se está diante não só de uma pesquisadora de mão cheia, mas de uma escritora que sabe entregar o produto de seu trabalho ao leitor.

Da construção americana à regulação internacional atual

Este capítulo se destaca pela visibilidade dada por Gabriel à política americana de exportação da regulatory taking, instituto concebido em seu direito doméstico, na forma de desapropriação indireta no direito internacional. A autora se soma à literatura mais atenta para destacar as diferenças entre ambos os institutos. Como ela ressalta, na falta de diretrizes normativas detalhadas, tribunais arbitrais ampliaram significativamente o rol de atos compensáveis por desapropriação indireta em comparação com seu precursor americano (p. 111-114).

Adiante, a autora nos brinda com uma formidável explanação doutrinária sobre as variantes normativas e jurisprudenciais que a desapropriação indireta tem recebido, inclusive quanto às abordagens doutrinárias vistas na jurisprudência arbitral sobre o instituto (p. 121-124). Ela reconhece que o  cenário atual, de fato, apresenta um ambiente totalmente desbalanceado em prejuízo dos Estados, já que seus elementos acarretam não só uma limitação objetiva do direito estatal de regular, mas também uma litigância abusiva por meio da arbitragem, o viés de interpretação pró-investidor e o receio regulatório dos Estados. Contudo, ela parece acreditar que a inserção de cláusulas de exceção de interesse público em acordos mais recentes são capazes de arrefecer aqueles efeitos negativos (p. 129-130).

E aqui o leitor se depara com o que talvez seja a argumentação menos convincente ao longo da obra. Sua abordagem sobre a escala evolutiva da desapropriação indireta nos tratados e laudos arbitrais de investimento parece compreendê-la como produto de um processo natural de aprimoramento, não como reação às compensações exorbitantes determinadas por tribunais arbitrais, inimagináveis ao tempo da positivação do instituto. Ao concluir o capítulo afirmando que, durante a proliferação dos tratados de investimento, era interessante que a norma sobre desapropriação indireta fosse a mais aberta possível para permitir o amplo questionamento regulatório por investidores (p. 134), a autora se distancia da literatura mais convincente que aponta justamente essa grande abertura como causa marcante do expansionismo arbitral que se viu na construção do Direito Internacional dos Investimentos. [ver Mutations of Neo-Liberalism in International Investment Law | Trade Law & Development, p. 203-232]

A teoria do Continente do Direito Internacional

No terceiro capítulo Gabriel apresenta ao leitor o seu marco teórico, a teoria do Continente do Direito Internacional, de Barbara Koremenos. Como ela mesmo anuncia, trata-se de desdobramento da teoria do desenho institucional racional, apresentada por ela logo no início. Em apresentação bastante didática, a autora introduz o leitor a uma estrutura teórica que compreende os Estados como atores guiados por uma escolha racional das opções que melhor atendam aos seus interesses, segundo uma lógica de incentivos e expectativas que busca maximizar a eficiência da cooperação entre eles (p. 139). O leitor mais atento notará como a teoria de Koremenos, bem apresentada por Gabriel, bebe em teorias muito caras ao Law and Economics, como a teoria da escolha racional, a teoria dos jogos e a eficiência de Pareto. Todas elas originadas na Economia, sobretudo na Nova Economia Institucional, a partir de autores como Ronald Coase, Douglas North e Oliver Williamson. A filiação de Gabriel à teoria de Koremenos permite, portanto, a compreensão desta obra como um trabalho de Análise Econômica do Direito Internacional dos Investimentos. Com isso Gabriel se reveste dos méritos e críticas que esse enquadramento oferece.

Talvez o ponto mais crítico do marco teórico adotado pela autora esteja na compreensão das assimetrias de poder como fator determinante da celebração de acordos de investimento. Embora Koremenos reconheça a importância dessas assimetrias como variável de impacto nos níveis de cooperação alcançados pelos acordos internacionais, como a autora reconhece (p. 177), ela relativiza sua importância ao analisá-la apenas como uma entre diversas variáveis de incidência na construção normativa internacional. Essa fragilidade não escapa aos olhos críticos de Gabriel. Ao abordar o problema da exportação das normas, a autora sutilmente aponta esse “ponto cego” na teoria do continente e afirma expressamente que as assimetrias de poder tendem a levar Estados em desenvolvimento a fazer escolhas de modo irracional em prol da alta expectativa de benefícios que a parceria com um Estado economicamente robusto pode trazer (p. 173). Ainda assim ela se mantém fiel ao marco teórico, em que a racionalidade dos agentes é pressuposto de toda a formulação conceitual. Não se trata aqui de uma crítica à autora, que bem aponta essa mitigação da teoria adotada, mas à própria teoria de Koremenos, fundada em pressupostos de racionalidade institucional típicas de um neoliberalismo cada vez menos defensável.

Em busca da cláusula ideal

No quarto e último capítulo a autora anuncia seus achados empíricos de pesquisa. Gabriel conclui que a principal característica de um modelo clausular cooperativo sobre desapropriação indireta seria a adoção de um mecanismo centralizado de monitoramento e solução de controvérsias, seguida de regras de punição, exceções de interesse público e imprecisão da linguagem (p. 223-224). Ela então aponta que uma cláusula idealmente propensa à cooperação internacional contém, entre outros elementos, uma norma precisa, com exceções em anexo, além de cláusula sobre o direito de regular dos Estados e com solução de controvérsias por arbitragem investidor-Estado, sem exceções à jurisdição arbitral (p. 234-235). Os achados empíricos mais próximos desse modelo ideal são encontrados pela autora no modelo canadense de BIT (p. 266-267).

Aqui a adoção generalizada da arbitragem investidor-Estado (ISDS, no seu acrônimo em inglês) como modelo ideal de solução de controvérsias parece dissociar-se do marco teórico adotado pela autora. Isso porque o ISDS, tipicamente ad hoc, consiste em mecanismo absolutamente descentralizado, com a formação de combinações distintas de árbitros para cada disputa. Essa é a razão pela qual o regime de ISDS tem produzido graves exemplos de incoerência e inconsistência sistêmicas, inclusive. Se a adoção de um mecanismo centralizado de solução de controvérsias é a opção mais favorável à cooperação interestatal, o estabelecimento de um tribunal permanente de investimentos, como se tem no CETA, seria a opção mais propensa à cooperação, seguida da arbitragem Estado-Estado ad hoc, como no modelo brasileiro de ACFI e, finalmente, da arbitragem investidor-Estado. A vantagem da arbitragem Estado-Estado ad hoc em comparação ao ISDS ad hoc está no fato de que os Estados usualmente adotam uma visão macroscópica das relações internacionais antes de se iniciar uma disputa sobre episódio específico. Isso estimula a adoção de soluções cooperativas entre as partes e a auto-contenção de suas capacidades de iniciar uma arbitragem, algo usualmente alheio ao mindset contencioso de escritórios de advocacia e investidores estrangeiros. A própria autora tem o mérito de reconhecer a subjetividade de sua análise e os ganhos analíticos que teria usufruído com o auxílio de outros pesquisadores (p. 235). As considerações acima são uma pequena contribuição ao rico engajamento teórico e empírico empreendido pela autora em sua obra.

Ao final, Gabriel registra que excluiu da análise o problema de cooperação causado pelas divergências entre as partes quanto à distribuição dos ganhos promovidos pelos acordos. Ela está ciente do impacto desse problema sobre as distintas metodologias de cálculo do quantum devido a título de compensação por desapropriações. A partir disso ela pugna pela adoção de normas mais precisas (p. 262). Lamenta-se essa exclusão promovida pela autora. Sua alta capacidade de pesquisa seguramente traria contribuições formidáveis ao enfrentamento desse problema, tão crucial para as críticas à desapropriação indireta quanto as variantes normativas que o instituto tem recebido.Isso porque tribunais arbitrais têm aplicado métodos econométricos distintos para o cálculo de compensações. Entre todos, talvez o mais controverso seja o método do fluxo de caixa descontado, raiz das compensações exorbitantes já comentadas acima. Suas projeções de fluxo de caixa futuro inserem no cálculo uma especulação de ganhos hipotéticos, segundo projeções econômicas claramente incertas. A maior precisão normativa pugnada pela autora poderia se concretizar com a adoção de método mais adequado ao valor presente dos ativos expropriados, o que por si só arrefeceria as críticas ao instituto da desapropriação indireta.

Conclusões

Em Desapropriação Indireta nos Acordos de Investimento, Vivian Gabriel analisa a trajetória histórica e as novas roupagens da cláusula de desapropriação indireta nos acordos de investimento. A pesquisa histórica é particularmente digna de louvor. A teoria do Continente do Direito Internacional contribui para o ineditismo de sua abordagem. Os recortes de sua pesquisa empírica, finalmente, informam adequadamente o leitor sobre os limites e potencialidades dos achados de pesquisa revelados nesta obra.

Se é que é possível delinear elementos críticos mais gerais, diria-se que a obra parece confiar de maneira exacerbada na capacidade regulatória dos negociadores estatais para superar, com novos arranjos normativos, as críticas efusivas que a desapropriação indireta tem recebido na literatura do campo. A criatividade interpretativa e o viés pró-investidor, traços marcantes da jurisprudência produzida pelos tribunais arbitrais de investimentos, desafiam essa premissa.
Isso não diminui o brilhantismo da obra de Vivian Gabriel. A capacidade de pesquisa ampla e profunda, assim como a exposição didática dos conceitos trabalhados ao longo do livro são traços marcantes desta magnífica obra jurídica. Com Expropriação Indireta nos Acordos de Investimento, Vivian Gabriel se consolida em lugar de destaque na contemporânea escola invisível dos jusinternacionalistas brasileiros.

  • Doutorando em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito das Relações Internacionais pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Membro da Associação Americana de Direito Internacional Privado (ASADIP). Membro do Núcleo de Controvérsias em Foro Estrangeiro do Departamento de Assuntos Internacionais da AGU. Advogado da União.

CONTEÚDOS RELACIONADOS / RELATED CONTENT:

Compartilhe / Share:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter