Auxílio humanitário e contraterrorismo: uma análise em vista do conflito Israel-Palestina

Por Cecília Battisti Tolotti, Luiza Cerveira Kampff e Nathalia de Castro e Souza.

A escalada no conflito Israel-Palestina, desde os ataques conduzidos pelo grupo Hamas em outubro de 2023, levantou diversas questões na comunidade internacional, principalmente no que diz respeito às reações dos demais Estados a propostas de cessar-fogo na região, idealizadas tanto no Conselho de Segurança como na Assembleia Geral da ONU. O reiterado voto negativo de países como os Estados Unidos coloca-se como obstáculo a uma mobilização do sistema ONU para o auxílio humanitário no conflito. Assim, surge o questionamento: quais são os interesses em jogo na negativa de propostas que visam ao auxílio humanitário?

 Para responder tal questão, é importante a análise de certos fatores relacionados ao direito internacional que influenciam o posicionamento dos Estados – notadamente, da relação entre contraterrorismo e auxílio humanitário, visto que existe uma tendência de que a ajuda humanitária seja criminalizada através de normativas de contraterrorismo. 

A definição de quais atos são, efetivamente, considerados terroristas não é uma questão pacificada na área do direito internacional, e, na maioria das vezes, organizações e atos são taxados como “terroristas” através de uma rotulação de cunho político. Existem atualmente 19 instrumentos jurídico-internacionais que regulam a prevenção de ataques terroristas, além dos demais instrumentos regionais que tratam da matéria – contudo, não há neles uma definição explícita do que é terrorismo, mas apenas a tipificação de condutas criminosas terroristas. Existem esforços para o estabelecimento de um significado comum, como por exemplo a decisão interlocutória emitida pelo Tribunal Especial para o Líbano, que aponta para uma formação de opinio juris e prática reiterada no que se refere à definição de terrorismo, que deve conter três elementos centrais: 1) a prática de uma conduta criminosa, ou a sua ameaça; 2) a intenção de alastrar medo na população, de modo a coagir autoridade nacional ou internacional, direta ou indiretamente, a tomar certa medida ou abster-se de tomá-la, e 3) o envolvimento de elemento transnacional. Ainda assim, não há instrumento normativo internacionalmente reconhecido e aplicável que defina o termo terrorismo.

Assim, a definição, por parte dos Estados, de quem pode ser considerado terrorista é bastante ampla e sujeita a divergências políticas. Isso se torna relevante no presente momento na medida em que Estados utilizam ostensivamente o rótulo de “terrorista” para caracterizar grupos armados partes de conflitos armados de caráter não internacional (CANI). Além das implicações políticas diretas atreladas a essa rotulação, como a inscrição do grupo armado como “organização terrorista” nos sistemas de controle domésticos e da própria ONU, há também consequências indiretas que afetam o acesso à ajuda humanitária em CANIs. 

O Brasil define como terroristas apenas os indivíduos e grupos que estão na Lista Consolidada do Conselho de Segurança da ONU. Nesse sentido, cabe destacar que tanto o Hamas quanto o Hezbollah não estão presentes na lista e, por isso, não são considerados grupos terroristas no posicionamento oficial brasileiro. Outros Estados e Organizações, como os Estados Unidos e a União Europeia, têm listas próprias.

Apesar do inerente caráter imparcial da ajuda humanitária, ela pode, assim, ser considerada como atuação criminosa, ao prestar “auxílio material e serviços” em associação e ajuda a grupos terroristas. Ao criminalizar o auxílio a organizações terroristas, os Estados conseguem negar o recebimento de ajuda humanitária em conflitos, visto que tais ações seriam similarmente caracterizadas como de apoio aos terroristas. Considerando a assimetria entre as partes de CANIs, o impedimento ao auxílio humanitário é medida que afeta de modo mais intensivo os grupos armados e aqueles sob seu poder, podendo ser interpretado como estratégia de particular interesse aos Estados.  

O CICV tem apontado suas preocupações com as restrições impostas ao auxílio humanitário pelas medidas de contraterrorismo e da necessidade de harmonização entre os esforços de agências humanitárias e os Estados. Da mesma forma, a ONU reconheceu, nas Resoluções nºs 2462 e 2482, ambas de 2019, a importância de que os Estados considerem as ramificações de suas políticas de contraterrorismo no que diz respeito ao impacto em “atividades exclusivamente humanitárias, incluindo atividades médicas, realizadas por atores humanitários imparciais, de maneira consistente com o direito internacional humanitário”. Nesse sentido, o relatório sobre o progresso da implementação da estratégia de contra-terrorismo da ONU, apresentado em fevereiro de 2023, já ressaltava a preocupação da organização com as consequências à população civil.

No presente caso, portanto, o impedimento ao auxílio humanitário na região pode ser interpretado como um interesse na manutenção da relação entre contraterrorismo e ajuda humanitária, fortalecendo precedente de negativa de auxílio humanitário quando a parte contrária do conflito é um grupo armado caracterizado como “terrorista”.

Cecília Battisti Tolotti: Estudante de Relações Internacionais na UFRGS. Coordenadora administrativa da UFRGS IHL Clinic. Estudante de Direito na FMP. 
Luiza Cerveira Kampff: Bacharela em Relações Internacionais na UFRGS e em Direito pela PUCRS. Técnica na UFRGS IHL Clinic.
Nathalia de Castro e Souza: Bacharel em Direito na UFRGS. Técnica na UFRGS IHL Clinic.

———————

As opiniões veiculadas neste blog não necessariamente correspondem a dos membros da ILA-Brasil.

  • A UFRGS IHL Clinic é a primeira Clínica brasileira voltada ao ensino, pesquisa e prática do Direito Internacional Humanitário (IHL, em inglês), também conhecido como direito do conflito armado.

CONTEÚDOS RELACIONADOS / RELATED CONTENT:

Compartilhe / Share:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter